segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Palavras de aniversário

                                                                   


     Quando a gente faz aniversário, e o celebra, as pessoas costumam pedir um punhado de palavras, um arremedo de discurso. Pelos 2 anos do Pensar, que perigo!, aqui estão suas palavras de aniversário.

    É contraditório o sentimento de fazer anos. Alegre e triste, cheio e vazio, complexamente simplório. Ficamos a nos orgulhar de tudo o que realizamos em mais este ano (e na vida), a nos envergonhar de tudo o que poderíamos ter feito e não fizemos, do que não realizamos. A matutar inutilmente o que poderíamos ter feito feito diferente, ou melhor.

    A sensação de infância não se alivia quando amadurecemos. A de amadorismo, não empalidece quando nos profissionalizamos. Ai, parecemos ainda tão irremediavelmente imperfeitos e inocentes! Com tanto mais a aprender do que já aprendido! Com um despreparo para a vida (e para a morte) que só cresce à medida que para elas nos preparamos...
   
    Em alguns aspectos, porém, melhoramos. Crescemos. Quando ficamos mais velhos, em geral falamos menos, mas nos expressamos mais. E melhor. Não precisamos de palavras em excesso, aprendemos a manuseá-las com parcimônia, com cuidado. Estancamos a verborragia da juventude, que tagarela, que desperdiça a preciosidade das palavras sem medida... deixando-as jogadas desleixadamente sobre a cama, entre o abraço, nas desculpas, nas falsidades, e até nos agradecimentos.
   
    Quando a gente fica mais velho, aprende a ter mais paciência. Entende que é preciso se engravidar da ideia, do plano, do projeto, antes de sair despejando-os pelas palavras, em papel ou em ouvidos alheios. O tempo da gestação é uma custosa espera quando somos jovens. Ao crescer, percebemos que é necessário para tudo se fortalecer, madurar e proteger dentro da gente. Até conseguimos apreciar esse tempo. Saboreá-lo.

    Quando a gente fica mais velho, nem sempre aprende a lidar melhor com os outros, mas decerto consegue lidar melhor consigo mesmo. A gente se conhece melhor, sabe das próprias fases e das crises, do que gosta e do que não gosta, do que dá prazer, causa desgosto e preguiça. Sabe dos próprios talentos e das próprias virtudes, do que sabe fazer e do que absolutamente não nasceu para.

    A gente aprende a se aceitar. Desiste de se mutilar para se enquadrar na expectativa e no aplauso dos outros. Até porque, normalmente, eles deixam de importar. Percebemos que dele não precisamos. Dele prescindimos. Estamos melhor sem.

    Quando a gente fica mais velho, aprende a não fazer perguntas demais. A tomar o que a vida nos oferece, esbanjando elegante apetite, sem botar defeito. A gente aceita, entrega, confia, agradece. E o faz sem esforço, nem esperneio, sem sacrifício.

    Quando a gente fica mais velho, por fim, e tendo sido tocado pela sabedoria da experiência, faz as pazes com o tempo. Entende e aceita suas voltas e viravoltas, convive bem com sua outrora exasperante alternância entre uma lentidão morosa e uma rapidez alucinante. Passa a caracterizá-lo como amigo, não como impiedoso. Acostuma o ouvido a seus tiques e seus chiliques, ouve as lições que ele dá em seu sussurrado silêncio, as histórias que conta na nossa hora certa, sempre certa.

    Nesse mais um ano completo de existência, gosto de pensar que o Pensar, que perigo! fez um pouco de tudo isso... Falou menos, se expressou mais; se acalmou com seus projetos, consigo mesmo, com o tempo... Ah, o tempo, esse tempo levado... Nem me deu tempo de planejar um festejo mais bem escrito desse feliz e orgulhoso aniversário...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A importância da convicção



“... nos parece que o mais importante reside na sinceridade e na força da própria convicção... e o resultado está nas mãos do destino. Só o destino pode nos mostrar se lutamos contra espectros ou contra inimigos reais [...]. Nossa tarefa é armar-nos e combater.” Ivan Turgêniev

“É o que eu digo, a gente sempre duvida se o que faz tem algum sentido. Daí decorre em grande medida a nossa fragilidade.” Rosa Montero

    Um grande perigo da vida da gente é o não acreditar. Da gente eu digo, principalmente, quem tem o triste pendor a pensar mais do que devia ou a ser exageradamente permeável às estupidezes alheias.
   
    Muitas vezes, vivemos situações em que ouvimos, de nossos peçonhentos pensamentos ou de outras peçonhentas pessoas, às ocultas ou às escâncaras, que o que fazemos não é útil. Que toda a gente pode prescindir do que fazemos, que nossa existência não é necessária, que aquilo que mais amamos e ao qual dedicamos nossas vidas é plenamente supérfluo.
   
    E o pior de tudo é que, às vezes, acreditamos. Somos balançados em nossa crença no que fazemos. Deixamos de responder às insensíveis ofensas das pessoas porque não temos argumentos bem formulados nem para convencer a nós mesmos nesse respeito, quem dirá a elas.
   
    Em nosso íntimo, temos a certeza, que mais se sente do que se explica, de que o que fazemos é importante, mas não sabemos exteriorizá-lo em racionais palavras, não sabemos fazer esquemas de explicação. Não conseguimos defender nossa causa e isso nos abala.
   
    Esta pode ser a nossa perdição. Isto pode ser a tesoura que poda um gênio ainda germinando, a lâmina que corta uma pulsante existência ainda amadurecendo. E o contrário disso, a crença firme e convicta, de uma fidelidade canina e religiosa, antes da alma que da mente, é frequentemente a chama que alimenta a vida e faz arder todo o potencial, o motor que inspira o sonho e propulsiona a obra.
   
    Acima de tudo, antes de mais nada, mais primordialmente que qualquer coisa, é preciso acreditar no que se é e no que se faz. E não admitir que alguém desacredite. Não permitir que se insinue a necessidade de justificação. Seguir, dia após dia, com paciência e com fervor, munido de paz e inflamado por ganas, sendo o que se é e fazendo o que se faz. Por, principalmente, dois motivos:

    Primeiro, porque jamais saberemos realmente se o que fazemos é mesmo importante. Se somos essenciais ou acessórios, marcantes ou absolutamente passageiros. Só a distância do tempo e da ampliada perspectiva dirá. Só o olhar de cima. Só o véu da posteridade.

    Dom Quixote lutou contra gigantes disfarçados de moinhos de vento; Hamlet, contra fantasmas. Para ambos, seus inimigos eram reais, e isso os fez existir. Quem de nós pode dizer que suas lutas eram fictícias e inúteis?

    Quem de nós ousa decretar ao outro que o que faz não importa, não move, não inspira, não contagia, como se houvesse critérios objetivos para avaliá-lo, parâmetros concretos e exatos para medi-lo?

    Segundo, e o tenho dito repetidamente porque cada vez mais nisso acredito, não podemos ir contra nossa natureza. Isso é tão tolo quanto, ao imaginar uma história, querer que um personagem loiro se torne moreno no meio do caminho.
   
    É tão vão e tão estúpido quanto tentar transferir um peixe de água salgada à água doce. Em poucas horas, ele morrerá. Sendo incapaz de modificar seu novo ambiente, de moldá-lo a si ou de moldar-se a ele, dentro em pouco expirará.
   
    Só é possível viver como si mesmo, e não tentando ser nenhuma outra pessoa. Só é possível fazer, extraordinariamente ou apenas bem, o que cabe à sua natureza. Estamos, todos e cada um de nós, condenados perpetuamente a ser quem somos. Cumprir essa pena, aproveitando-a ao máximo, em sua delícia e em sua dor, é nossa única e mais sábia opção. A fuga só existe na morte.

    Assim, seja qual for o nosso ofício, a nossa arte, a nossa paz e ao mesmo tempo a nossa guerra, armemo-nos. Acreditemos. Tomemos nossos instrumentos, enchamos o peito de ar e confiança e vamos à luta. É nosso caminho, nosso inferno e nossa salvação. 

sábado, 17 de dezembro de 2016

A contemplação do escravo

                                                               
                                                                
    A conjuntura política atual de nosso Brasil, ao contrário do que muitos dizem, não é complexa - no que tange à dificuldade de seu entendimento. É simples. Assim como é simples, bem simples mesmo, a compreensão da opinião pública maioritária em respeito à esta conjuntura.

    Não, as pessoas não estão sofrendo um surto de esquizofrenia coletiva, de visão alucinada da realidade. Na verdade, estão sofrendo de algo parecido, mas que não se deve a um problema psíquico e sim a um desvio de perspectiva, estimulado pela mídia que a alimenta e a quer mansinha, adestrada. Estão sofrendo da síndrome do escravo que se contempla pelos olhos do amo.

    Em outras palavras, sofrem por não reconhecer sua posição oprimida. Afinal, esses escravos (a classe trabalhadora brasileira) são da casa-grande, têm liberdade de trânsito dentro dela, um trabalho leve que começa antes do sol e com ele não termina, têm roupas que cobrem seu corpo e o mínimo conforto negado a outros. Têm muitas vantagens se comparados aos escravos-mais-escravos da lavoura, que têm um trabalho pesadíssimo, coitados, não tem direito de morar bem, comer e viver como eu. Eles, sim, são escravos.

    Sofremos, em suma, da síndrome do escravo que, por sofrer menos que alguns outros de seu mesmo status, não se considera escravo. Apenas um criado sem direito algum, que não é pago e pode ser vendido.

    Esse escravo que não se vê como tal não só apoia como aplaude medidas que o oprimam ainda mais. Admira os modos dos senhores e tenta arremedá-los, pois se imagina praticamente um deles. Não enxerga por que alguns de seus semelhantes (escravos) estão insatisfeitos e ousam reivindicar. Não só discorda da atitude de seus protestos mas tenta sabotá-los, e muitas vezes consegue.
   
    Está no fundo do poço, é chicoteado por sua realidade seguidas vezes, sob o véu do disfarce, e ainda assim sinceramente acredita que as leis dos senhores estão certas, têm razão. Os escravos (entre os quais ele não está, é claro) são sujos, podem muito bem passar sem as regalias que andaram negociando a custo, suportam tranquilamente mais algumas horas de trabalho, já que as catorze diárias são leves, deixam até tempo para vadiar antes de dormir. Suportam também algumas centenas de gramas de comida a menos, porque comem muito.   

    Já é hora de a classe escrava do Brasil de hoje libertar-se dessa dissociação e enxergar-se em seu lugar, em sua condição. Já é hora de deixar de lado essa aspiração sonhadora a ser o que não se é, esta vivência autoenganadora como se fosse o que não é e situar-se no mundo, arrasador e difícil como ele está.

    Situar-se ativamente, tendo clareza quanto ao muito precário e precarizado espaço que ocupa e a necessidade de armar-se até os dentes para lutar por seus interesses, por si e pelos seus.

    Pois, os nossos dominantes - dominantes para dentro, dominados de fora - como já bem disse Eduardo Galeano, já o fazem e muito bem.


Imagem: Execução de castigo de açoite. Negros ao tronco. Jean-Baptiste Debret.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Perfumaria

                                                               

Tanto me acusam
De perfumeira
De boticária
História afim

Pois eu não tenho
Avental fresco
Máscara velha
Luva marfim
Meu uniforme
é muito outro
é desnudado, é literário
escritartista
é aguerrido

Em conteúdo
Tenho fragrâncias
Tântras ao cheiro
Pura mistura
Lindezas mil
Muito me alegra
Mais que a tristeza
Tanta beleza
Que aspira ao fim

Fim das mazelas
Fim das tragédias
De todo dia
Tão desiguais

Fim das surdezas
Fim dos mutismos
Fim dos tampões
Viva aos motins!

Mais que o debate
Tanto me bate
Um outrossim
É a gastura das cem palavras
Sem meio ou fim
É a eloquência
De tantos gestos
Num teatrado
Vazio tinto
Falácia ao sol

Quanto mais vejo,
Quanto mais ouço,
Mais acredito
nisto que digo:
Perfumaria
Mui formidável
E mais do que isso
Essencial

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Personalidades centrífugas e centrípetas

                                                                      

     Esta reflexão pariu-se na conversa com um amigo. Portanto, embora torneada em palavras por mim, talvez seja de autoria compartilhada.

    Quanto ao comportamento para com o outro, creio que podemos ver duas tendências gerais: a personalidade centrípeta e a personalidade centrífuga. Como já assinalam os adjetivos, uma é orientada por e para si; a outra, por e para fora de si.

    A pessoa de personalidade centrífuga é aquela que prefere levar calote a deixar o outro em prejuízo. Aquela cuja convivência consigo mesmo se torna um tormento quando fez - ou imagina ter feito - algum mal a alguém. Ela não suporta o sequer pensamento de ter se portado de forma descortês, indelicada, menos que exemplar para com outra pessoa - seja ela bastante próxima ou relativamente distante, estimada ou apenas conhecida -, nem de que lhe saíram dos lábios algumas palavras espinhosas por extravio. Ela mói e remói o sucedido em pensamento, repetida e excruciantemente, e de pronto procurará modos de fazer reparação.

    A pessoa de traços predominantemente centrífugos por vezes contrariará a própria vontade para apaziguar ânimos, satisfazer ou consolar a outrem. Se colocará em situações desagradáveis para si a fim de agradar, ou não desagradar, alguém. Perderá um jogo qualquer - e também um que muito lhe importe - só para ver o sorriso brilhante no rosto de quem nunca vence, desaguando sua paixão em compaixão, ou gentileza, o ponto de vista dirá.

    Terá grande dificuldade de superar relacionamentos findados, amores ou amizades incorporadas ao domínio do passado. Afinal, ela se importa com o impacto que as pessoas têm em sua vida, não só, mas também e principalmente com o efeito que ela tem na vida das pessoas. Assim, a menos que consiga convencer-se de que fez bem àquela pessoa de quem se apartou, ajudou-a a evoluir dalgum modo, deu-lhe alegrias e momentos gratos dos quais se lembrar, ela não estará em paz. Não passará a página.

    Por fim, quem tem essa maneira de ser tem também, pela minha percepção, uma dificuldade extra ao procurar por e encontrar, digamos, sem drama ou eufemismo, o sentido de sua vida. Aquilo que lhe motiva e encanta. Pois, não lhe basta a sua própria realização e satisfação, não lhe basta que algo lhe agrade, somente. A pessoa de orientação centrífuga precisa sentir-se útil, precisa servir, ter sua importância ao outro - ou não se sente digna de sua felicidade, das oportunidades e dos retornos que tem.

    Tudo isso opostamente ao indivíduo de tendência centrípeta. Ele não se importa demasiado em levar calote, se ele não o deixa completamente destituído e se o aborrecimento do processo da recuperação não valer o prejuízo. Tampouco, se martiriza, tortura ou cobra se por ventura aflige perdas a alguém - no âmbito financeiro, relacional, emocional... Pois, não o fez sem uma boa razão! Acredita que a lástima imposta ao outro é preferível à lástima imposta a si mesmo, e a primeira não se pratica gratuitamente mas para própria proteção.

    No tocante ao seu comportamento em relação a outrem, tampouco é o caso em que imponha tristezas, pratique indelicadezas ou rejubile-se em tratar mal, mas que seja simplesmente indiferente. Em lugar de ver em cada pessoa alguém de muita importância por sua simples existência, como seus contrários centrífugos, o indivíduo centripetamente dirigido vê cada outro com igual imparcialidade, até que algum deles mostre que vale sua parcialidade. Ele não dispende sua energia, cortesia ou atenção com ninguém gratuitamente. Ele as investe naqueles que mostram dignos disso, com quem considera ter afinidades, ou poder vir a ter algum tipo de relação significativa. Interesseiros, podem chamá-los alguns, sábios utilizadores de seu tempo e suas atenções com parcimônia, outros.

    Fato é que, se sua conduta respinga negativamente em alguém, essas pessoas em geral nem o notam. O que pensam os outros dela, como ela os faz sentir, como reagem à sua presença... Isso nem resvala as esquinas de seus olhos, menos ainda os recantos de seu espírito.
   
    Fato também é que a pessoa de personalidade centrípeta está em posição que se machuca menos se comparada àqueloutra centrífuga. Suas cicatrizes decorrentes de relações chegadas à sua estação final não carecem do outro para sarar; a motivação de seus dias e sua vida dispensa o atendimento de necessidades alheias para justificar-se. Ela se basta. Ela nada faz para agradar o outro, e não lhe molesta em nada que desagrade - impossível agradar a todos, impossível não machucar a alguém no meio do caminho! Crê que deve estar em paz, bem resolvida e plena consigo mesma para poder prestar qualquer serviço ao todo, e assim não vê razão em buscar utilidade imediata e visível na sua existência para outros, mas prioriza seu próprio bem estar e satisfação. Estando bem e satisfeita, afinal, ela já está prestando um favor à humanidade!

    Quem é melhor, caro leitor? Quem é mais feliz e mais admirável? Logicamente, gabarito mais preciso não poderia haver! Entre centrífugos e centrípetos, menos bons, felizes e admiráveis são aqueles que, ao olharem para si, não se enxergam como são; ao se enxergarem, não se aceitam, tentam tolamente fugir de si mesmos, agir em desacordo consigo - o que é inviável. Melhores, mais felizes e admiráveis são aqueles que enxergam-se com simpleza e claridade, aceitam-se, vivem afinados com sua essência tentando ser o melhor que podem.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Desligando: uma experiência de sociabilidade

                                                                             

    Dia desses, uma percepção atingiu-me arrabatadoramente. O senhor leitor pode surpreender-se com o quão óbvia ela é. Mas eu diria que sua obviedade é parte fundamental do pânico que me causou.
   
    Atentei, num desses clarões de entendimento que nos chegam sem convite ou aviso e nos deixam atarantados, para o tanto de perguntas que eu fazia quase diariamente às ferramentas de busca na internet nas várias telas ao meu redor. Que horas passaria o ônibus para tal lugar, ou que direção eu precisava tomar para chegar em outro a pé. A previsão do tempo para aquele dia, os recintos da cidade em que procurar por tal produto ou tal serviço, a avaliação maioritária do estabelecimento que abriu mês assado. A recomendação de um livro para ler agora, um CD para embalar meu tranquilo final de semana.
   
    Ora, não são essas todas perguntas que eu poderia fazer para pessoas ao meu redor? Gente de verdade, de carne e osso, que me responderia com um sorriso surpreso à indagação ou uma voz alegre, que contorceria o rosto em concentração para pensar numa resposta e seria tímido e medroso, que me daria um gentil aceno de cabeça em retornou ao meu agradecimento e ficaria contente por ter tido a chance de ser útil a alguém.
   
    Perturbada por essa percepção e por pensar no que eu estava perdendo substituindo pessoas por telas, resolvi emendar-me. Fiz o experimento em um inteiro marcante dia de abordar pessoas - que estavam aos montes em minha volta naquela fervilhante segunda-feira - para fazer-lhes quaisquer perguntas que me ocorressem ao invés de buscá-las na internet.
   
    Foi uma experiência mais que adorável. Abordei várias pessoas ao longo do dia, em diferentes lugares, escolhendo sempre aquelas que mais abertas se mostravam ao contato. Sem fones de ouvido ou sequestradores similares de atenção, sem expressão grave ou emburrada ou compenetrada, sem aquela pressa maníaca que não raro adoenta gentes por aí. Abordei completos desconhecidos, sempre tentando aliar certo grau de polidez à conversa casual.
   
    Com algumas pessoas, a conversa fluiu para além da inicial indagação. Descobrimo-nos vizinhos e compartilhando opiniões e gostos, trocamos contatos. Com outras, a interação cessou com a resposta ao perguntado, talvez por reserva ou timidez, talvez por uma incompatibilidade natural mesmo, sentida pela poderosa via da intuição no muito breve átimo que precisamos para percebê-lo.
   
    Ora fui recebida com muito calor e admirada curiosidade, ora com receio e distância, ora com franca e indisfarçada estranheza pela ousadia. Algumas vezes, fiquei até estonteada pelas tantas sugestões e possibilidades  oferecidas à minha inocente interrogação. Noutras, a pessoa também não sabia o que eu perguntava e recorria ao recurso virtual. Nessas ocasiões, eu procurava enxergar a positividade da coisa: estávamos interagindo no plano real da existência e juntos fazendo passeio pelo plano virtual, mirando a mesma tela.

    Se a percepção que me agonizou e provocou-me a este experimento também se verifica em você que me lê, recomendo que tente fazer algo parecido. Nem que seja só por um dia. Você pode se surpreender com a receptividade das pessoas e descobrir que abordá-las e conhecê-las é muito mais fácil que difícil, muito mais gostoso que custoso. Basta deixar de lado a internet um pouquinho e tomar a iniciativa da abordagem, de preferência portando um sorriso como cartão de visita. Basta dar o primeiro passo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O temperamento das ideias

                                                                             

   Publicitário, escritores, compositores, artistas de modo geral sabem o quão ardiloso é o temperamento das ideias. E que lindo é o desafio de trabalhar com ele - desafio que pode transformar-se em delícia ou em tormento, dependendo de como for trabalhado.
       
    As ideias são assim... indisciplinadas. Anticapitalistas. Não sabem trabalhar batendo ponto. Têm um parentesco com o modo vulcânico de ser, na medida em que podem passar longo tempo adormecidas, aparentemente falecidas, e também entrarem em atividade inesperadamente, de modo intenso e quase incontrolável.

    Apesar de indisciplinadas, elas não são indisciplináveis, como os vulcões. Há certos jeitos de lidar com elas que fazem-nas mais comportadas, regulares até. De fato, as danadas são ariscas, caprichosas, escorregadias. Mas não são indomáveis. A meu ver, a abordagem que deve ser feita com as ideias não é muito distante da conquista, da sedução. Temos que seduzir as ideias.

    E seduzir, sabemos, não é sinônimo de correr atrás de. Pelo contrário, quanto mais permanentemente insistentes somos, mais esquivas as ideias se tornam. Quanto mais fixamente pensamos nelas e mais fixadamente as rodeamos, menos interessadas elas parecem estar em acercarem-se de nós.

    Por outro lado, é claro, se nada fizermos, nada conseguiremos. É preciso ter atitude. Mas qual atitude? Preparar o terreno, agindo carinhosa e cautelosamente. Em primeiro lugar, mantermo-nos de bem com a vida, de bom humor, com o espírito leve, distraído até. Afinal, quem quer fazer companhia a alguém preocupado, tenso, sisudo e mal humorado? Ninguém, nem mesmo as ideias. Assim, aborrecer-se porque elas não vem, xingá-las ou àqueles à nossa volta não é um meio inteligente de atraí-las. Pessoas ou ideias. Isso as bloqueia, as afasta.
   
    Em segundo lugar, alimentar-se bem, no sentido literal e principalmente no figurado. Nutrir-se ricamente de elementos próximos a ela, referências relacionadas. Isso nos estimula e as atrai. Pois, embora não estejamos pensando nelas diretamente (o que é um erro fazer com insistência) estamos com ela no fundo, ou no canto de nossa mente. E estamos recebendo nutrientes que, batidos no nosso liquidificador mental, aos pouquinhos ou de repente, podem fazer surgir uma ideia. Ou ser o substrato rico que ela carecia para florescer.

    Quando enfim atraímos uma ideia que vale a pena e vemos que ela se encaminha a nós... Ah, é uma alegria que entorna! Contudo, não podemos ser ansiosos com ela. Por descuido, distração ou negligência, ela se vai. Toma chá de sumiço, foge, desaparece, despeitada. É preciso cuidar-lhe com afinco. É preciso ter paciência com ela, que, quando muito verde, fresca, imatura, toma ares de adolescente.
   
    Queremos acariciá-la, e ela não deixa. Queremos conversar, e ela não diz palavra, nem parece escutar. Faz um silêncio irritante, atrevido, de birra. Empaca, faz greve. Se vamos lhe dar um conselho para que melhore, então, vixi... Aí é que a perdemos de vez.

    Outras vezes, como criança pequena que teve pesadelo, ou jovem que percebe o quanto é frágil e precisa de ajuda para crescer e evoluir, ela sobe mansinha à nossa cama, querendo aconchego. Sim, não raro, a melhor solução é dormir com a ideia. Deitar com ela, fazendo-lhe pegar no sono serenamente, ninando-a... E levantar com ela, olhando-a nos olhos. Dando-lhe um bom dia transformado, seguro e forte.


    É... Conviver com as ideias, tê-las como necessárias colegas de trabalho... Não é mesmo fácil. Seu temperamento é dos mais capciosos. Mas a jornada de conhecê-lo e lidar com ele, nas diferentes fases do conhecimento e da aproximação... Também é das mais saborosas.

domingo, 30 de outubro de 2016

Redes sociais, diários digitais?

                                                              
 
 Muito tenho ouvido discutir ultimamente sobre o potencial memorialístico das redes sociais. A revolução digital, argumenta-se, que está mudando radicalmente nosso modo de ascender ao conhecimento, de nos relacionarmos com os outros e consigo, com o tempo, também altera a forma como construímos lembranças e registros.
   
    Não o contesto. Os registros nas redes são sim um modo de erigirmos memórias e nos relacionarmos com o presente e a perspectiva de posteridade. De fato, eles podem revelar ao olho atento e interessado círculos de sociabilidade, lugares frequentados, hábitos, comportamentos e formas de pensar, momentos escolhidos para serem especialmente guardados - ou compartilhados. Contudo, há fatores que devem ser levados em conta antes de se considerar a sequência de postagem pessoais de alguém seu depósito de memórias, através do qual se lê sua história.

    Em primeiro, é preciso enxergar a dimensão pública que a vida privada mostrada ali ganha. Ou seja, a presença do outro, ou de vários outros, a tudo ver. Isso é fundamental. O fato de que sabe-se que está sendo observado faz o postador adequar-se a isso. Talvez acrescente um comentário que catalize a visível popularidade/aprovação de sua postagem; talvez deixe de registrar uma vivência que não deseja entregar à vigilância virtual; talvez omita preferências, gostos, opiniões que sabe que serão pouco apreciados ou muito depreciados ali. Inclusive, a seleção das marcantes ocasiões exibidas e o modo como o são por vezes não dizem tanto respeito aos momentos em si ou à importância que eles tiveram ao vivente, mas ao potencial deles enquanto ícones promotores de quem posta aos olhos alheios.
   
    O tempo todo nas redes, percebo, existe uma competição de aparências (fabricadas). Uma ansiedade suscitada pelo constante estado de patrulha que a corrida das aparências provoca. Eu invejo e quero ser invejado, de uma inveja vazia que se gera a partir de impressões ilusórias que as pessoas deixam acerca da própria vida.
   
    Ademais, o veículo principal das novas memórias - a foto - tem seus limites e seus perigos enquanto contadora de histórias. Afinal, ela é o sequestro de um instante de sua natural efemeridade, a cristalização imagética de um átimo. Sendo assim, não conta nada a respeito de como se sentia a pessoa fotografada naquele momento, qual era o contexto dele, a história daquela vivência.

    Por vezes, se está sorrindo quando, na verdade, está se sentindo miserável. Por vezes, excede-se numa algazarra pelo simples prazer dela, da molecagem, pelo embalo muito natural da farra, e se é eternizado num feixe de imagem, ou de interpretação, como um babaca, fazendo algo que ganha conotação muito diversa da inicialmente pretendida e vivida. A leitura estreita e imediata que as imagens compartilhadas pedem e permitem faz parir interpretações equivocadas. O manejo incauto, descortês e antiético da imagem de alguém por outrem por vezes envergonha, cola estigmas, sela tóxicos rótulos de modo quase indelével.
   
    Por fim, há de se contar com a aceleração do tempo provocado pela experiência digital. Montanhas de memória são nessas plataformas produzidas todos os dias. Desde um evento inusitado que se presencia na praça, um protesto no qual se toma parte, passando por aquilo que se está lendo no presente, até o novo corte de cabelo e o que se toma no café da manhã são não raro registrados. Como quase tudo é eleito para ser eternizado, perde-se o critério de filtragem, a seletividade. O que é realmente importante? O que foi mais intenso, o que foi mais marcante? Quais foram os eventos chave daquele período de tempo vivido?

    Nesse frenesi, a vida acaba ganhando aspecto de borrão, em que não se distingue pontos ou linhas ou formas com nitidez. Nesse frenesi, o quadro de nossa existência perde a mínima organização de cenas, diálogos, pessoas que figuram em primeiro, segundo e terceiro plano. Tudo se uniformiza e se perde, esvaído num esquecimento que anseia mais por criar novas lembranças que por manter as velhas, e assim funciona como um cofre furado.

     Portanto, pergunto: será que os ambientes sociais virtuais são mesmo como nossas novas dispensas de memórias? A nossa história está sendo conservada ou dissipada ali? Até que ponto são as redes sociais os modernos álbuns de lembrança ou os modernos vales de esquecimento?

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

A arte do improviso


    Sabe, algumas coisas que nos ensinam na escola - ou o modo como nos ensinam - podem ser de grande valia para nos fazer pensar. Eu me lembro como, em química e física, a maioria dos cálculos nos fazia ignorar quaisquer possíveis poréns. Tomávamos a força da gravidade como 10 m/s2, porque com o número arrendondado tudo ficava mais simples. Ignorávamos forças de atrito, resistência do ar e similares. Para trabalhar com gases, volumes e afins, a orientação era sempre tomar como base as CNTP - condições normais de temperatura e pressão - ou seja, um cenário ideal para a situação, completamente blindado de interferências indesejadas, naturais oscilações e imprevistos. Em outras palavras, somos chamados a trabalhar num quadro desprovido de realidade.

    Na vida da gente, não raro pensamos assim também. Fazemos nossas escolhas pautados em cenários imaculadamente regulares, lisos e suaves que engendramos mentalmente - com frequência ignorando obviedades ásperas, amarrotadas e cheias de arestas que se apresentam a nós na real. Planejamos viagens magníficas, para um terreno plano por inteiro e um dia de sol generoso e constante, e somos desnorteados e mortalmente desapontados pela surpresa de uma chuva fina, um vento caudaloso e um chão ondulado. Treinamo-nos com antecedência e esmero para um espetáculo, nos preparando para dançar tango, e a vida vem, risonha e sem vergonha, nos convidar para um frevo.
   
    E aí? O que fazemos? Estamos despreparados, não é mesmo? Antecipamos algo completamente diferente do que o que nos aconteceu, planejamos numa esfera mui distinta daquela em que as coisas de fato tomariam lugar - o terreiro da concretude, da prática existência. Falhamos em contar com o inesperado, o imprevisto, as necessárias intervenções da imperfeita e caprichosa Realidade.

    Mas não adianta choramingar nossa falha previsão, nem espernear porque ela não se concretizou. Não adianta ficar desejando que nossas expectativas fossem melhor atendidas, que tudo não acontecesse como aconteceu. A Realidade é uma deusa que ri de nossos esbravejos e tem tanto mais acentuada sua natureza volúvel, inconstante e instável quanto mais metódicos e ritualísticos e contínuos somos em nossa relação com ela. Fora que a vida vai passar enquanto lamentamos, emburrados porque tudo não se deu na exata reprodução de nosso estéril e não raro impermeável laboratório mental.

    Capitular, portanto, é o que não podemos fazer. Precisamos fazer o magnetismo da vida nos puxar ao solo, mesmo que ela suceda numa torrente de novidades que queira nos tirar do chão. Precisamos resistir. Precisamos improvisar. Precisamos nos adaptar. Relaxar o corpo e deixá-lo apto a balançar instintivamente, segundo a melodia que toque, dançando qualquer música, qualquer ritmo. Não esperar que a estreia da peça seja gêmea idêntica do ensaio; que a partida da verdade seja a perfeita mímica do treino ideal. Saber que é possível cozinhar divinamente mesmo que não se siga à risca a receita, que o tempero disponível seja diferente daquele recomentado.

    Não perder de vista que nossos cálculos raramente serão um redondo bingo. Terão quebrados, aproximações e irracionalidades. Que as condições exatas, as perfeitudes ideais provavelmente não ocorrerão, e que isso não é o fim do mundo. É apenas o desafio da vida que nos convida a reinventarmo-nos, a moldarmo-nos, a sorrir plenamente diante do que temos, do que somos, do que acontece e não desperdiçar energias em rancores pelo que gostaríamos de ter, de ser, que acontecesse.
   

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O sentido da poesia

                                                             


Poesia não tem que ter sentido
A poesia, no mor e melhor das vezes,
não tem sentido
Não tem coerência
Só tem carência

Poesia não tem enredo
Espaço, tempo, uma voz condutora
Começo, meio e fim
Um conflito e uma solução

Vozes? Poesia tem várias. É uma orquestra.
É polifônica.
Conflitos? Também infinitos.
Sobretudo entre palavras que não se dão,
que saem e sobressaem
que guerreiam na hierarquia do ritmo
na cadência desigual da rima,
guerrilha do som, da pausa.
Palavras que, contudo, a tal carreira belamente beligerante
se doam
se entregam
e assim fazem estrondoso espetáculo.
Absurdamente poético.
Sem aposentar-se.

Soluções? Vixi!
Logicamente, poesia não tem nenhuma.
Não é narrativa
Nem problema matemático

Mas é conforto a alma
é tanto espanto dos males como o canto deles.
A expressão deles
O alívio do recalque
A resistência à repressão
O conforto da luta
A antítese da resignação
Beleza teimosa, necessária.

Começo? Sim, este poesia tem.
Mas não é começo a começar
Ponto de partida oficial
Marco zero.
É começo começado
Começo que, muitas vezes, parece uma morte
A dor do parto, o delírio da febre,
as cinzas do renascer, suspiro último da agonizante fênix

Poesia brota, calmamente embrenhada no território da dor
Na espera vazia da desesperança
na cegueira do pessimismo
Ou na gloriosa terra do amor
na comarca do desejo
na província do carinho
no distrito da amizade
da alegria, do simples júbilo de viver
da quietude, da plenitude, da paz.
No verde da esperança
dos olhos de lágrimas
escorrendo coloridas e risonhas de arco-íris

O município poderoso da arte
É cosmopolita. Universal.
É tabacaria. É o mundo inteiro. É poliglota

É língua que se fala em todo canto,
e em qualquer lugar se entende.
Responde

E por que não se entende mais o sentido da poesia?
Porque ela perdeu a partida decisiva no campo das letras ao time da prosa?
Porque poesia é para ser ouvida, não lida
Falada, cantada, declamada, declarada!
Não lida.

Poesia é para ser ajoelhada
com uma aliança em aguardo e emoções fortes lustrando os olhos
retumbando no peito com o hino arrepiante da expectativa.

Poesia é para ser suada, sofrida, perguntada
no não saber da correspondência,
do sentimento sentido sozinho
pedido desejosamente expedido na impotente e sôfrega metrópole
sem certeza de acolhimento na imprevisível colônia.

Poesia é para ser carnavalesca nos recintos da rua
nos espetáculos das gentes
todas juntas a viver alegremente pertencendo umas às outras
e à causa de vencer essa chata quaresma que quer nos ver vencidos
jejuando da existência.

Poesia é água profunda, funda demais
para um mergulho que não seja
muito sensível
muito treinado
muito acostumado na natural estranheza poética
É mergulho perigoso,
pode sufocar com as bolhas do desconhecido
provocar mal estar com as espécies exóticas
exuberantes
e ainda obscuras
de sensações com as quais povoa o território que invade

Poesia é arte deturpada pela estéril precisão da ciência.
Ah, ciência!
Ela que reina soberana em nossa época
e sufoca com simples despotismo
quaisquer esboços de revolta
e de poesia.

Meio? Fim?
Roma? Amor?
Espelho? Reflexo?
Sentido? Para ser sentido? Entendido?
Subentendido? Desentendido?
Desmascarado?
Sentido somente? Com todos os sentidos? Sem nenhum sentido?

Poesia,
equação cuja ordem dos fatores altera o produto
mistura em que as substâncias reagem
sonho em que o sentido está
imanente
transcendente
dentro de si
e além.



Foto: Trânsito, 1970. Ana Letycia. Serigrafia em cores, 60 x 34, 1 cm.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Conhecendo gente nova

                                                                  

      Muitos de nós, quando perguntados, dizemos que adoramos conhecer gente nova. Gente diferente, gente que não pertence ao nosso rol de conhecidos e convivência, gente com quem não teremos as conversas de sempre, com as exclamações de sempre, as reticências de sempre, os trejeitos de sempre. Os assuntos de sempre. Gente cujos traços não foram ainda esquadrinhados por nossa vista, gente cujas inflexões da voz não são ainda familiares aos nossos ouvidos, gente cujos movimentos e gestos, ações e reações temos atenção para observar, curiosidade em decifrar, porque ainda não nos são inteiros conhecidos, previstos e previsíveis. Gente que ainda nos são um mistério, cujo caráter, personalidade, temperamento ainda estamos a tatear. Não é verdade? Não é essa toda a graça de conhecer uma pessoa nova?

    Pois claro que não! Está é parte da graça, mas de modo algum toda ela. Talvez, não é nem mesmo a graça mais fundamental!

    A graça fundamental de conhecer gente nova não está nas pessoas que conhecemos. No novo que encontramos nelas. Está em nós mesmos, nas pessoas que podemos nos tornar quando estamos com elas. No novo que está contido em nós, então, apenas esperando para aflorar-se. Na possibilidade de nos reinventarmos que encontramos nesse terreno movediço e ainda a mapear da conhecença. 

      Pois, em companhia de gente que nos conhece, nós somos uma certa pessoa. Uma pessoa com certos padrões de comportamento, de pensamento e opinião. Uma pessoa que detesta portas batendo e ouve forró de raiz. Uma pessoa que prefere comida bem salgada e que interdita qualquer conversa de política que começa a se esboçar. Uma pessoa que lê sonetos e tem pavor de modernismos. Uma pessoa que pisa mais com o calcanhar que a ponta dos pés, se veste muito com cores frias e não entende de religião. Uma pessoa que ao fazer careta, puxa o canto direito  da boca para trás e amiuda os olhos. Uma pessoa que só põe a alça direita da mochila nas costas.

    Quando estamos diante de pessoas que não nos conhecem, e não esperam isso de nós, podemos nos reinventar. Temos a chance de não nos plagiarmos pela força do hábito e da expectativa alheia, de sermos uma versão original e inédita de nós mesmos, com pouca ou nenhuma semelhança àquela mais tradicional.
   
    Podemos ser alguém que não se importa com portas batendo e é pouco dado a irritar-se, de modo geral. Alguém que ouve hip-hop ou música flamenca. Que prefere comida sem tempero, e o doce ao salgado. Que é interessado em política e entendedor de poesia pós-moderna. Que pisa com leveza, apenas resvalando o chão, se veste combinando cores estrondosas e sorrisos devotados. Que admira a fé e estuda com fervor as religiões todas. Que troca caretas por sorrisos distraidamente divertidos e, por não gostar da mochila, usa bolsa transversal.
   
    Podemos ser alguém que não cometeu os erros que cometemos, nem carrega as culpas que carregamos. Podemos ter perspectivas de futuro e sonhos e desejos que nossos conhecidos jamais associariam a nós. Podemos reescrever nosso passado, acidentalmente borrando da memória partes que queremos esquecer, dando ênfase a outras que não é nosso costume lembrar. Podemos ter uma personalidade algo diversa daquela em que nos descrevemos usualmente, talvez um senso de humor que até então não nos caracterizava.

    Um dos grandes encantos de conhecer gente nova, portanto, é poder adentrar um território estrangeiro que ansiamos por conhecer com uma identidade que não é necessariamente aquela que carregamos em nosso país. É a liberdade de ser quem se quer ser naquele momento.



Foto: Manhã no porto, Antônio Garcia Bento. Óleo sobre tela. 46, 6 x 56, 2 cm.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Grandes e pequenos

                                                                   
     
      Quando eu era pequena, o mundo parecia grande e eu tinha medo dele. Tinha medo do escuro e não gostava quando me diziam que não existe essa bobeira de fantasmas. Não gostava de ficar sozinha e ficava feliz com qualquer companhia.

       Quando eu era pequena, me alegrava quando passava no céu do dia um avião de barriga branca e braços vermelhos plainando calma e barulhosamente. Gritava para ele os presentes que queria para o natal, com toda a força de meus pulmões de moleca e toda a cacofonia de meus primos em volta fazendo o mesmo. Achavamos que aquele era o avião do papai noel, porque... O trenó é mesmo um transporte muito antigo e agora o papai noel deve ser mesmo mais moderninho.

        Quando eu era pequena, tinha pesadelos engraçados que me atormentavam ainda quando eu acordava em que eu chutava uma bola, sozinha num campo, e em vez de seguir em frente ela vinha para trás, me fazendo um trágico gol contra de cobertura. E quando me sentia triste, olhava para o céu da noite, como o rei Leão, em busca da estrela mais brilhante, que eu acreditava ser meu avô. Ele era mesmo como uma estrela, assim calado, quieto e com uns olhos que viam tudo. Eu acho que ele me ouvia.

        Quando era pequena, não entendia porque as pessoas viviam em casas nos morros, se elas sabem que dali elas podem cair quando chove. Por que não vão para outros lugares? Tem lugares mais retos sem casas na cidade!
      Também não entendia porque quando dois meninos da rua brigavam, a brincadeira acabava, ia todo mundo murcho pra casa, e só quando as mães vinham com eles pela orelha, eles se pediam desculpas. Pedir desculpas não pode ser tão difícil assim, tão difícil ao ponto escabroso de fazer a gente perder o dia de brincadeira.

       Quando era pequena, queria mesmo crescer. Porque a água do chuveiro deve ser mais quentinha lá em cima do que aqui embaixo. Porque é tão mais elegante ser grande e ter pernas que alcançam o chão quando se está sentado, em vez de ficarem balançando bobamente, incapazes de alcançarem o chão a não ser que me eu me deite na cadeira. Porque quando se é grande, o céu está mais perto, e vai ficar mais fácil de o vô me ouvir e o papai noel também. Vou até poder alcançar as nuvens, se der um pulo bem forte e me esticar bastante. Porque vou poder usar a faca para cortar o queijo e passar a água fervendo no pó para virar café.

     Agora que sou grande, não estou tão crescida assim. Ainda não me dou muito bem com o escuro e acredito piamente em fantasmas. Ainda não faço gosto em passar muito tempo sozinha e tenho o hábito de, quando isso acontece e não pode ser evitado, sair só pra ver gentes.

      Agora que sou grande, não grito para o papai noel os presentes que quero para o natal, porque... Bom, o céu continua longe, e ele não vai me ouvir. Só a voz da criança tem o timbre exato do som que os ouvidos de papai noel vão escutar. Mas ainda olho para o céu estrelado da noite para fazer minhas confidências e pedir por guia.

       Hoje, boa parte de meus pesadelos - dormidos e acordados - ainda envolvem a vida me surpreendendo com seus truques e me levando a situações que não estavam em meu estrito roteiro e com as quais não sei lidar. Isso ainda não superei. Por mais que tenha me acostumado a tomar gols de cobertura na quadra.

      Hoje, entendo porque certas pessoas moram em casas nos morros. Não é escolha delas, é necessidade. Mas ainda não entendo como as pessoas, as outras pessoas, que moram em casas bem melhores e bem maiores, especialmente aquelas que vão de vez em quando trabalhar numa casa velha, franzida e severa que é batizada de "câmara municipal", conseguem ver isso acontecer e não fazer nada a respeito.

      Hoje, ainda acho um grande pecado as pessoas perderem tempo que podiam estar de bem estando de mal só porque não podem dizer algumas poucas palavras. Ainda lamento a dificuldade dos meninos em dizer certas coisas, principalmente as coisas boas. Mas já entendo melhor como um pedido de desculpas pode custar para sair da boca, parecendo machucar os lábios, cortar a língua, como um ácido. Entendo porque sou uma menina e aprendi que, ao contrário do que imaginava, as meninas normalmente têm mais dificuldades para pedir desculpas que os meninos.

       Hoje, me alegro quando vejo em mim vestígios de minha versão pequenina. Felicito-me pela geometria básica do universo que orquestra que o grande pode conter o pequeno, mas o pequeno não contém o grande. Alegre do grande que tem em si o pequeno. E mais alegre ainda o pequeno, que, mesmo sem saber, não tem em si nada do grande.
        Afinal, as pessoas grandes são mesmo muito bobas.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Quem sou eu?

                                                                  

  Dia desses, me foi pedido que eu me apresentasse. Dizesse "quem sou", e não estando valendo a tríade simples de meu nome, idade, enquadramento ou desenquadramento profissional. Era preciso que eu esclarecesse quem sou eu, de verdade. Quem sou eu, de verdade?

    Ah, pergunta difícil! Mais difícil pra mim mesma que para aqueles ao meu lado. Mais difícil para os meus próximos que para meus distantes. Mais difícil para os que me conhecem à distância que para os que não me conhecem, nem assim.
   
    As várias camadas de nós confundem-se, fundam-se, abraçam-se, deitam-se... se encontram e se perdem, e não há escavação que as delimite todas na mais perfeita fronteira, que as enxergue e recrie na mais perfeita clareza.

    Quem sou eu? Eu sou boca que come, sou come que baba, sou boca que beija. Sou voz que canta, sou voz que encanta, sou voz que nina, sou voz que emudece. Voz que oscila. Sou olho que olha, olho que fecha, olho que escancara, olho que lacrimeja e que deságua. Sou ouvido que escuta, ouvido que ouve, ouvido que tampa e destampa. Sou riso que ri, sorriso que sorri - por vezes sem ser sorridente. Ah, cordialidade!

    Sou peito que suspira, peito que soluça. Coração que bombeia, coração que sangra, coração que infarta. Coração que desembesteia, coração que para e suspende. Intestino que peristalteia e estômago que refluxa.

    Sou mãos que tocam, que manuseiam, que massageiam, mãos que manufaturam. Mãos que afagam, mãos que arranham, mãos que espalmeiam, batem e machucam. Mãos que sovam massas de palavras e as põem no forno. Mãos que perdem o ponto, deixam cru demais, duro demais, intragável demais. Mãos que passam do ponto, deixam mole demais, macio demais, enjoativo demais. Sou pés que pisam, que revolucionam, que andam em linha, sou pés que sustentam, pés que tanto aguentam, que correm, que cansam. Pés que param, que permanecem.

    Eu sou toda a natureza que há em mim e toda a minha interna sociedade. Sou todo o meu texto e todo o meu contexto, e todo o meu prefácio. Um dia, serei todo o meu epílogo.

    Eu sou a Vitória, a derrota, o empate. Mais vitórias que derrotas, prefiro pensar, e mais derrotas que empates. Empates não se mexem. Empates só empatam. Empates não fazem mexer. É melhor que a inércia, decerto, o abismo da queda, e sua talvez escalada de retorno. E esse talvez é um provocador irresistível!

    Eu sou o conjunto de minhas escolhas, de minhas renúncias; de meus sucessos, de meus fracassos; de meus excessos, de minhas faltas; de minhas presenças, de minhas ausências; de meus eufemismos e de minhas hipérboles. Sou uma história muito apaixonada e convicta, uma geografia confusa ainda a mapear, uma filosofia logicamente inexplicável, uma arte muito mais que abstrata, em moldes paradoxalmente clássicos. Sou uma grande prosopopeia.

    Eu sou filha, irmã, neta. Sou colega, e raramente amiga. Queria ser mais amiga que colega, e não em estatística. Eu sou amiga, sim, no entanto, e como tal semideusa. Porque toda amizade tem seu quê de divino, e seu acento de humano.

    Eu sou amante, ouso dizer, do indeciso Destino que, normalmente, faz muito do que eu lhe direciono, falando ou silente. Tendemos a gostar daqueles que fazem o que nós queremos que eles façam, e a desgostar daqueles que não o fazem. Grande burrice, da qual não escapo. Pois, os passos e caminhos que meu amante toma são muitas vezes sussurrados a ele por mim. Sou eu quem dito a mor parte de seu rumo. Uma outra parte, porém, ele faz obedecendo seu capricho. E esse capricho, então, me leva a lugares e me presenteia com sensações e experiências que eu jamais podia esperar. Às vezes na vitória, às vezes na derrota, as vezes infelizmente no empate. Sempre no jogo da vida, que dá ao seu jogador um oscilante quinhão das três recompensas.

    Amante do destino, sou, e casada a mim mesma, em aliança eterna. Pode ser que eu contraia outra, e outra, e tantas mais, porque a monogamia me exigiria um único cônjuge, mas eu não posso abrir mão de mim mesma. É um abandono inconcebível, uma traição que não estou disposta e não me acho capaz de fazer. Esta é mesmo, como dizem, uma união indissolúvel. Nem a morte separa.

    Sou filha, irmã, neta, colega, amiga, amante e casada. Eterna estudante. Aluna, não. Não sou ainda mãe. Tenho os elementos de mãe dispersos em mim, acho, e de quando em vez por circunstâncias ativados. Mas não tenho o essencial de mãe pois não gerei. Escrevi minhas palavras, borroquei meus textos, sonhei meus sonhos e fiz minhas lambanças, mas por mais vivos que tenham sido todos eles, em certa medida gerados por mim, ninados por mim, alimentados por mim... por mais que todos eles venham, na justeza da autoria, a carregar meu sobrenome, e na polifonia do silêncio e da conversa contar histórias minhas e a minha história... por mais que vários por mais... não são ainda humanos completos, com boca, voz, olhos, ouvidos, peito, coração, riso, sorriso, peito, coração, intestino, estômago, mãos e pés. São fruto de mim, mas não são meus filhos. Sou assim mãe em potencial.
        
    Posso dizer que sou, creio, um corpo, um espírito, uma alma, uma mente, uma consciência. Um quebra-cabeças ainda em processo de montagem.

    Quem sou eu? Ah, esqueci de responder. Rodeei e rodeei e não respondi. Desculpem, sempre preferi a figura do círculo ao quadrado. Eu sou, talvez, este texto. E escrevo sobre mim por isto ser tanto minha grande falta de assunto quanto meu assunto favorito.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O semáforo da intuição

                                                              

    Intuição, pressentimento, instinto, sexto sentido... Chamem lá como queiram. Não posso me furtar de acreditar que isso é um grande farol, um semáforo iluminando as vielas da nossa existência. Uma fonte de sinais que, tão imprudentes transitantes, nós costumamos ignorar.
   
    Sim, vítimas de uma tradição demasiado racionalista, materialista, nós tendemos a não dar ouvidos ao que nos diz uma vozinha que não sabemos bem definir como surge e vem nos murmurar certas cousas de quando em quando. Castramos essa dimensão de nós mesmos, esse raciocínio do sentimento e da sensação, da energia. Esquecemos que essa parte de nós também é uma importante forma de conhecimento e contato com o mundo, uma capacidade de que somos naturalmente dotados para o nosso bem, nossa sobrevivência.

    Assim, tomamos decisões pautados em valores e parâmetros (não raro muito questionáveis) importados do mundo exterior, em detrimento dos talvez inexplicáveis apelos do nosso interior.
   
    Ao nos depararmos, por exemplo, com dois apartamentos muito diferentes sendo alugados pelo mesmo preço, escolhemos aquele maior e mais novo, que enche os olhos de nossos satisfeitos pais mas que nos transmite algo impronunciável de carregado e perigoso em vez daqueloutro antigo, menor e apertado que tão aconchegante e caloroso recebe a nossa presença. Afinal, tal escolha faz muito mais sentido. E o bom senso - esse péssimo conselheiro sob cuja guia ninguém faz amor ou guerra - aponta para tal opção! A escolha não pode mesmo ser outra.
   
    E quanto mais se põe a pensar, mais parece bobagem, cisma, criancice aquela ruim sensação sorrateira que se apossou da gente, tão logo pusemos os pés na deslumbrante habitação. A intuição é espasmódica. Moda raio, ela vem, alumia e estrondeia, e logo some, para não mais aparecer. Ela não gasta sua sabedoria com repetições. Não fala a mesma coisa duas vezes.
   
    Ao sermos apresentados àquela pessoa de sorriso fácil e rosto tão prontamente simpático que de modo inexplicável desperta uma luz amarelenta no nosso semáforo interior, balançamos os ombros. Sacudimos a cabeça. “Que cisma, hein? Preciso deixar de bestagem!” Essa pessoa não é tão querida por todos à sua volta? Não é recomendada por fulano e ciclano, indivíduos cujo julgamento eu aprecio e ouço? Todos gostam dela, admiram-na até, como posso eu sentir diferente? Como posso eu querer distância dela? Como posso me sentir tão ressabiada à sua presença? Mais ainda que ressabiada, arredia e horrorizada à sequer perspectiva de sua proximidade?
   
    Quantas vezes já não aconteceu de uma oportunidade aparecer do absoluto nada, sem anúncio qualquer, apresentada a nós à queima roupa, e nós não a deixamos passar porque fomos medrosos demais para abraçá-la? O primeiro impulso até nos impeliu para ela, mas ah... quem pode confiar no seu primeiro impulso? E não tive tempo de considerar todos os prós e contras, todas as questões que precisariam ser avaliadas antes de tomar a decisão de me jogar nisso...

    De minha parte, reconheço que cometo essa atroz burrice. A burrice de ponderar demais, de analisar fria e meticulosa e demoradamente, de abafar as frestas de luz sinalizadas a mim por minha intuição. Está provado cientificamente que é mais provável acertar uma questão de múltipla escolha no primeiro chute, no impulso, que na opção se marca em lugar deste, depois de muito titubear e balançar e pensar... Se não enxergamos as luzes da intuição, talvez deveríamos ouvir a voz decerto sábia da ciência!

    Afinal, qualquer dia desses, seremos atropelados pela vida ao atravessar suas pontes sem obedecer o semáforo e nosso guia particular e invisível da intuição. Ou, pior, ficaremos colecionando as passagens dessa vida só observando, empacados no mesmo lugar, por esquecermos de avançar no momento em que a luz verde abriu...
   

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Divórcios

                                                                  

    Não. Não estou aqui para discutir o delicado processo de separação entre duas pessoas que se uniram por livre e espontânea vontade, se não por livre e espontâneo sentimento. Não é desta espécie de divórcio que escreverei. Pois, este é divórcio de uma união que foi decisão tomada por dois indivíduos, não nasceu pronta, não é natural e inerente à condição de sua existência.
   
    Quero falar desses divórcios. Os divórcios que contrariam a ordem mais simples das coisas, os divórcios contra os quais a juíza natureza aconselha e que normalmente pune.
   
    Por exemplo, o divórcio entre o corpo e alma. Quem nunca passou pela experiência da queda de braço entre os dois, quem nunca sofreu deste conflito? O conflito no qual, às vezes, a alma quer que seu corpo não queira, mas ele quer. Simplesmente quer, desesperadamente quer. E outras vezes, ela quer que ele queira, mas ele não quer. Ele teima, insiste, não será obrigado.

    Além desse, o divórcio entre tempos. O nosso tempo e o tempo exigido de nós. O relógio que bate como um chicote, nos movendo sempre para frente, insistindo que continuemos, que emendemos suas horas sem percebê-las quando tudo o que queremos é uma pausa, um momento de meditação e solitude e silêncio. Da imobilidade que não raro é necessária para que notemos a nossa vida: a leve ondulação da respiração, o ritmado rugir da pulsação, o fugidio piscar dos olhos.
   
    O divórcio entre o ser humano e seu hábitat, seu lar. Entre o social e o natural. Vez e outra que nos sentimos angustiados sem aparente razão, sinto que esta pode muito bem sê-la. Esse chisma não pode fazer bem.

    Quanto tempo passamos apartados da natureza, enfurnados em salas condicionadas sem perceber o escoar do dia, os azuis do céu, os humores de sua temperatura? Quanto tempo passamos contrariando o contraste claro e escuro que foi pintado pela mestra mão do universo, e ao qual nosso organismo é naturalmente compatível? Quanto tempo atuando em cenários fabricados, cobertos de concreto, que nem sempre favorecem o espetáculo da vida?

    E quanto tempo misturados à harmonia simples da beleza pensada pelo mundo, não por nós? Quanto tempo expostos e dispostos a beber e brindar das paisagens esculpidas com carinho e paciência pelas eras, a socializar com os outros animais que povoam este reino tão próspera da terra? Quanto tempo passamos enxergamos motivo e júbilo na nossa existência pelo simples fato de que ela é uma parte importante desse lindo todo, e de que é um privilégio contemplá-lo, sorvê-lo, tanto quanto participar dele minimamente?
   
    Creio que boa ideia seria embargar todos esses processos de divórcio em nossas vidas. Fazer a união funcionar de novo. Respeitar as vontades, os desejos e limites de nosso corpo ao invés de submetê-lo. Ouvir com atenção o que ele nos diz, em vez de calá-lo. Enfrentar a tirania do relógio que querem nos impor, não acatá-lo. Fugir do domínio do artifício e celebrar no quilombo do natural. Aceitar as belezas que o mundo sorrateiramente nos faz todos dias em vez de recusá-las sem uma hesitação .

    Curar essa síndrome de deus que nos acomete, perceber a nossa pequenez. Deixar de pensar que somos senhores de tudo à nossa volta e tudo dentro de nós, perceber que somos miúdas partículas incrustadas no complexo da natureza, não mestres magnânimos a quem esse complexo existe para servir e satisfazer. Alinhar os desalinhos, aproximar o que se distanciou, harmonizar as partes que fizemos brigadas. Fazer as pazes nos duelos que inventamos e ficar em paz.


                                                             

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Humanidade - dois pesos e duas medidas

                                                                 


    Creio que todos nós, em certo momento ou outro, nos pegamos no erro muito sério de utilizar parâmetros diferentes para avaliar elementos semelhantes. Isso é ruim não só porque borra o nosso julgamento e o torna já de antemão desigual mas também porque pode acarretar danos graves. No que estou pensando ao dar esse exemplo? Em mim mesma. Vou explicar melhor.
   
    Eu sofro da muito perigosa síndrome do perfeccionismo, da intolerância ao que não encaixa-se nos meus altos padrões. Contudo, essa síndrome só afeta ao que eu mesma faço, não se estende aqueles ao meu redor, sejam eles os meus mais próximos ou mais mais distantes. Eu não consigo lidar com meus erros. Sobretudo, não suporto a consciência que depois de cometê-los me tortura lenta e poderosamente.

    Não é que eu não consiga lidar com as repreensões de outras pessoas. Elas me desconcertam enormemente também, quando as julgo justificadas. Contudo, as repreensões mais difíceis de aceitar são aquelas vindas da minha própria consciência. À minha própria maneira, sou vítima e algoz de mim mesma.

    Aceito sem dificuldades os erros alheios, reconhecendo neles um sintoma de sua natural condição de ser humano, falho e faltoso, imperfeito. Balanço os ombros, rio deles sem uma mácula de tristeza no rosto ou no peito. Afinal, acontece. Todo mundo erra. E quanto melhor aceitarmos isso, menos sofreremos desnecessariamente. No entanto, a mim mesma não rogo tal piedade.
   
    Não justifico meus próprios erros pautada na minha humanidade. Na minha impossibilidade de acertar sempre. No fato de que eu também estou aqui para aprender, não nasci sabendo e muito proveito posso tomar dos meus próprios erros. No meu esquecimento, na minha limitação a um só corpo e uma só mente, que não podem se desdobrar em mil, que não podem atender a todos, a todas as demandas, em todos os momentos.

    Em vez disso, me martirizo. Porque eu deveria ter lembrado. Deveria ter sido ainda mais maleável. Deveria ter antecipado o imprevisível imprevisto. Deveria ter contado com a velocidade em que corre o relógio. Poderia ter me portado melhor. Poderia ter mantido a calma. Poderia ter me esforçado um último pouquinho a mais, excedendo o já exagerado muito que tinha solicitado o professor. Poderia ter adiado minha viagem ainda algumas horas para aliviar a barria de um colega que não estava pensando em mim ao, por pura falta de compromisso, atrasar sua entrega do trabalho para além do prazo combinado. Poderia ter sido ainda mais explícita ao demarcar o prazo da entrega. Poderia ter me desdobrado um pouco mais. Poderia... Deveria...
   
    Em verdade, eu deveria mesmo é aliviar meu próprio sofrimento ao suavizar a dose de autocobrança. Deveria aprender a lavar minhas mãos, com água limpa e sabonete, sem a poluição da culpa. Deveria calar com firmeza minha própria consciência quando ela insiste em ser desmedidamente mais dura comigo que com qualquer um outro na mesma situação. Deveria não ser tão severa comigo mesma, e fazer as pazes com minha própria humanidade.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

A arte de criar problemas

                                                              
   
      Nós seres humanos deste tempo tresloucado parecemos nascer doutos na arte de criar problemas para nós mesmos e ficarmos insanamente dependentes das soluções para eles. Isso mesmo. Não, eu não estou enlouquecendo. Talvez, para os parâmetros da época em que vivemos, só um pouco. Já disse que ela é que é tresloucada. Mas, que fique avisado, este texto é contra indicado no caso de suspeita de normalidade, ausência inteira de loucura. Pois, se a loucura é o desvio completo do normal, acho que ela é o estado mais saudável para se viver neste mundo maluco.

    Do que estou dizendo quando digo que nós criamos problemas para nós mesmos? Estou dizendo que criamos padrões. O cabelo liso, por exemplo, colocado como apogeu e ideal de cabelo torna o cabelo destoante, enrolado, um problema. Cria um problema (que em verdade não existe, já que a mesma natureza planejou que fôssemos variados uns dos outros até para nos tornamos mais fortes) e ficamos dependentes da delirante “solução”: alisar o cabelo. Até que essa solução se torna um problema, já que bem nenhum pode fazer um acúmulo enorme de estranhos materiais combinados e agressivos aplicados continuamente em nosso lindo corpo. E aí, vamos aos hospitais a fim de tratar do câncer que provocamos em nós mesmos.

    Isso mesmo. Não, repito, e com ênfase. Não estou delirando. Você que está, se não o percebeu ainda. Quer outro exemplo? Protetor solar. Quem disse que temos que usá-lo? Uma indústria que se interessa por vendê-lo. Certo? Certo. Mas, você pode dizer, é uma indústria que prima por cuidar de nós. E em resposta, eu posso dizer, você que não cuide de você mesmo, corpo e mente, e vai passar a acreditar nas amassadas e aparentemente apetitosas abobrinhas que te oferecem generosamente e sofrerá as consequências de aceitá-las e digeri-las.

    Mas e o câncer de pele? Ele também é um problema criado? É. O sol também faz parte do plano harmônico e bem dirigido da natureza para a vida da gente. Você tente escapar dele, estando sob efeito das abobrinhas estragadas que te deram sob a atraente roupagem da propaganda, e terá falta de vitamina D. E vai procurar um médico, o mesmo que te receitou o protetor solar - que contribui para você desenvolver câncer de pele, ao invés de evitá-lo -, para receber dele um suplemento artificial de vitamina D. Caríssimo, com certeza, o tal medicamento será. E você pagará com seu tempo para resolver um problema que criou para si mesmo. Que poderia nem existir se você tivesse tomado uma boa dose dessa embriagante maravilha que é o sol sem borrocar-se de protetor solar antes.

    Está vendo? Eu estou fazendo sentido. Não estou inventando problema, enxergando-o onde ele não existe. Os psicólogos é que estão. Isso mesmo. Você já parou pra pensar que até pouco tempo as pessoas passavam a vida inteira sem cogitar ir em um psicólogo, psicoterapeuta, psicanalista e as demais varianças? E que mais antigamente ainda as pessoas nem cogitavam a ideia de que precisavam de tais profissionais e suas ajudas? Parando pra pensar a respeito, eu concluí que nós passamos a pensar que precisávamos disso no momento em que isso foi inventado.
   
    Não é que a vida moderna seja mais complicada que a antiga. Nem que nos evoluímos e nos tornamos mais complexos e agora precisamos de tratamento. Na verdade, o que acontece é que um dia nos disseram que esses profissionais existem e devem ser parte fundamental de nossa vida é nós passamos a acreditar, e a criar necessidades para serem atendidas por eles. Só isso.

    As pessoas sempre tiveram questões com as quais precisaram lidar que às vezes (muitas vezes) lhes traziam angústias e dificuldades. E elas lidavam com isso. Em diários, em conversas, trabalhando e dirigindo energias e pensamentos ao seu trabalho, interagindo com aqueles à sua volta, com seu deus e a natureza. E nós de modo algum podemos dizer que hoje lidamos com nossos problemas melhor do que as pessoas de antes o faziam. Só podemos dizer que agora carecemos (ou pensamos carecer) de ajuda profissional pra isso. Terceirizando a nossa conversa com nosso íntimo.

    (Que fique claro: não estou dizendo que não existem pessoas que precisem de ajuda profissional, e que esses profissionais não tenham um papel importante a fazer. Porém, acredito que a maioria das pessoas que realmente precisa de ajuda, não a recebe, não pode tê-la, não tem acesso a ela. E a maioria das pessoas que recebe essa ajuda não precisa dela. Pensa que precisa.)

    De cabelo à protetor solar aos médicos da mente, à comida de todo dia. Tantos são os problemas que inventamos para nós mesmos - problemas que não raro provém de elementos absolutamente naturais de nossa vida que transformamos artificialmente em problemas e defeitos, aos quais procuramos soluções que acabam trazendo novos problemas... Talvez seja bom parar pra pensar na relação que mantemos com as pequeninas coisas à nossa volta, e no poder que nós mesmos temos de torná-las problemas e dores de cabeça... Ou, pelo contrário, belezas e delícias (ou dificuldades) que fazem parte da nossa vida, e as quais podemos desfrutar e experimentar em sua plenitude.

    É, minha gente... Pensar é mesmo um perigo. Mas, mais perigoso, eu acho, é não pensar. É deixar que os outros pensem por nós e nos deem de presente alguns probleminhas que não existem para resolvermos.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Os vários afluentes da bacia do amor


     O amor, podemos dizer, é como um rio. Um rio que, por tão longo alcance, tão imensa profundidade, tão fértil poder, é necessária água para sobrevivermos e bem vivermos na estepe da vida. É necessária inundação para o pantanal da existência.

    O amor, como um rio, pode ser considerado de modos diferentes por suas características. Pode ser perene, de tão firme volume e fluxo, constante mesmo na seca e na escassez, na aridez da paisagem, no desespero do frio escaldante e do calor capaz de evaporar. Ao contrário do que ocorre com os rios, porém, creio, a maioria dos amores do mundo não pode ser presenteada com o qualitativo de perene. Até porque, aqueles que de fato mais perene são têm o dom de passarem discretamente presentes e impercebidos. Quase nunca entram nas estatísticas.

    Mais percebíveis são, na verdade, os amores intermitentes. Aqueles que desaparecem na estiagem e reaparecem na estação chuvosa. Aqueles que precisam da irrigação da conveniência, ou do desespero, para voltarem à vida. Aqueles que precisam sofrer a ameaça de extinção ou a festa da abundância para aflorarem à superfície. Ou aqueles que, apenas tímidos, embora muitíssimo genuínos, existem somente no subterrâneo e não mostram-se e demonstram-se à luz senão esparsamente. Pode haver um tipo de perenidade nos amores intermitentes. Como pode haver também um fundo e caudaloso egoísmo.
   
    Os mais comuns de todos, porém, são os amores efêmeros. Aqueles que, incapazes de penetrar a terra e o reino do coração, ficam na passarela da superfície e da pele. A maioria de nós, contudo, não é impermeável a ele. Bebemos de sua água com frequência. Ele acontece a nós quase que inevitavelmente. E é praticamente impossível resistir à sua cascata, deixar de nutrir-se de seus doces filetes, quando aparecem. A passagem dessas águas efêmeras do amor pode ser refrescante delícia - contanto que, é claro, não se torne demasiado áspero, seco, árido, dolorido e sofrido seu natural escoamento a outras terras, ou sua simples evaporação.

    Há também, como rios, amores efluentes e influentes. Os primeiros são os mais belos e os mais difíceis de viver, ao passo que os segundos, os mais arrebatadores e por isso mesmo, fáceis de morrer.

    Amores efluentes são amores práticos, amores que viram corrente volumosa e robusta no curso de todo dia. Amores, portanto, difíceis mas importantíssimos de se manter. São os amores que, saídos do esconderijo do subterrâneo e do devaneio para existirem na exterior realidade, sujeita a intempéries e predadores, permanecem. Amores que avolumam-se e engrandecem-se em seu curso ao saírem do subsolo. Amores que continuam.
   
    Amores influentes, por seu turno, são aqueles, como já adiantado, menos difíceis de se viver e mais frequentes e fáceis de ver morrer. São os amores platônicos, amores que existem nas cordilheiras do desejo e da distância. São os amores que, ao desfilarem do fino lençol do devaneio para subirem o despenhadeiro da vida concreta e real... terminam. Perdem volume ao invés de ganharem. Diminuem sua vazão, morrendo antes de chegar ao mar.

    Por questão de sobrevivência, sua existência deve mesmo confinar-se às cavernas do pensamento, do sonho, da imaginação. Por questão igual de sobrevivência, entretanto, sua existência em alargada dose pode ser um perigo, e deve ser balanceada com a presença de alguns amores efluentes.
   
    A moral da história - ou, aliás, da geografia do amor? Ela confunde-se a uma das lições mais primárias da biologia, se não me engana a traiçoeira memória. Do que são feitos os rios, afinal, bem como os lagos e as lagoas, os mares e oceanos? De água. E a água é um elemento essencial da vida. Uma condição indelével de existência. Sem ela, nada se cria e nada se transforma. Tudo se despedaça.

    Assim também é o amor, esteja ele em qualquer de suas formas de expressão, quaisquer de suas configurações. 70% do nosso corpo, pelo menos, deve ser feito de amor, e de amor continuamente abastecido. No mínimo, de 2 litros de amor devemos nutrir o nosso organismo todos os dias. E o planeta terra - água - é azul... Tem 3/4 de sua superfície cobertos de amor. O amor é azul, já nos disseram Djavan e Clara Nunes

    A ecologia do amor, portanto, é uma das quais devemos muito nos empenhar em proteger e preservar. Sem ela... não há vida que seja possível.


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Lições do renascimento

                                                             
                                                              
    Ah, minhas leituras acadêmicas! Elas furtam-me das minhas leituras literárias e dos escritos literários... Aliás, dos escritos todos − ou nem todos já que este está aqui. Mas elas fazem-me pensar. Cobram tributo do meu tempo, mas dão recibo em pensamento. Acho que está valendo.

    Dia desses, li cousa muito bonita, que me levou a pensar muito além da nuvem acadêmica. Um autor que gigantescamente me agrada, Peter Burke, ao perguntar sobre os possíveis porquês de a Itália ter sido o berço do renascimento, diz que um destes está no desprendimento italiano ao gótico. Ou seja, a arte na terra da bota desenvolveu-se magnífica, intensa e vastamente para frente porque tinha-se ligado menos aferrada e intimamente ao que houvera antes.

    Se não é isto uma escultura em palavras de uma verdade dispersa e opaca na realidade, nos corações e nas mentes da gente!

    Sempre pensando nesse respeito, não tinha até essa leitura tido sobre ele um estalo de compreensão tão claro, tão preciso. Só abre-se para receber (ou dar) abraço apertado e caloroso do futuro quem despediu-se bem resolvido e leve do passado. E só se põe nesse movimento também quem está inteiramente inteiro, em um único e concentrado pedaço, presente no presente.

    Cada vez mais acredito que esse é um dos mais importantes e decisivos − e talvez por isso mesmo um dos mais difíceis − desafios da nossa existência: aprender a lidar com essa belezinha mágica, linda, temperamental, esquiva e pirracenta que é o tempo. O tempo em suas várias esferas, seus vários planos, seus vários volumes e suas várias arestas.

    O tempo do relógio das obrigações; o tempo do calendário, das metas e dos balanços; o tempo do agora e das livres borboletas; o tempo dos corações, dos ferimentos e das cicatrizes; o tempo da realidade social da qual somos pequenina e vital partícula; o tempo da vida da gente, da história de cada um de nós. O tempo de lembrar, o tempo de esquecer, o tempo de somente - sem pensar - sentir e viver. O tempo: passado, presente e - quem sabe? - futuro.

    Mais especificamente falando do casamento entre o tempo do qual temos flutuante sensação de certeza (passado) e aquele que nos instiga perpétua certeza de dúvida (futuro), creio que, como em todas as relações, deve-se procurar aí um equilíbrio. Como nos chama a pensar Peter Burke, é preciso desvencilhar-se das sedutoras e confortáveis chamadas do passado para jogar-se nos braços do futuro, e vivê-lo magnificamente. É preciso, caso necessário, deixar morrer a morte do medíocre para viver o renascimento do sublime.

    Do contrário, corre-se o risco de prender-se ao passado numa amarra cega e fazê-lo durar mais tempo do que deveria. Corre-se o risco de - ao estar voluntária e conscientemente amarrado e vendado - não ver passar um futuro e um presente que... ó! passaram. Num instantinho terão passado. Serão passado, sem que nada de lindo se tenha feito deles, sem que nenhuma intensa vida se tenha vivido. Serão um passado que se acumulará pesado nas costas, como um fardo, fardo que grande tem volume, sem nenhum valor.

    Por outro lado, é também preciso deixar na ponta dos dedos, ao alcance dos olhos, alguns nós bem atados do passado, para jamais nos permitimos esquecê-lo por completo. Pois, quem se liberta muito rebelde e radicalmente do passado, torna-se justamente refém dele. Comete sempre os mesmos erros, cai sempre nas mesmas armadilhas, vagueia sempre pelos mesmos caminhos. Quem extremisticamente se desgarra, realisticamente se agarra. Empaca.

    Em suma, é preciso andar pra frente, ser para frente, fazer para frente. A fênix é parte de nós, o renascimento chama, é preciso renascer. E para tal, é mister esquecer e deixar o passado passar, ir descansar bem calminho nas profundezas de sua lápide. Contudo, não se pode querer demolir essa lápide para substituí-la por qualquer comum e virgem pedra. É para o fundamental ato de lembrar que servem as necessárias inscrições esculpidas na lápide.

    Todavia, acima de qualquer coisa, antes de tudo e de mais nada, não podemos deixar que passado e futuro em seu cabo de guerra, sua sedução altamente persuasiva pelos sussurros da lembrança e do projeto, vençam o apelo do presente e façam-no mumificado pelas cordas do devaneio.

    É preciso fazer do frustrantemente fugaz momento presente uma atração inelutável e perpétua. Um vício, sanado e alimentado contínua e constantemente, sem fim. É preciso sim, como nos dizem os sábios conselheiros num já muito sabido conselho, viver intensamente o agora. Viver intensa, descarada, exaltada, atrevida, curiosa, sedenta e regaladamente o presente. Ser insaciável por ele e fartar-se dele na mais indiscreta gula, na mais declarada paixão.

    Como não me deixam esquecer minhas volumosas leituras acadêmicas...