domingo, 30 de outubro de 2016

Redes sociais, diários digitais?

                                                              
 
 Muito tenho ouvido discutir ultimamente sobre o potencial memorialístico das redes sociais. A revolução digital, argumenta-se, que está mudando radicalmente nosso modo de ascender ao conhecimento, de nos relacionarmos com os outros e consigo, com o tempo, também altera a forma como construímos lembranças e registros.
   
    Não o contesto. Os registros nas redes são sim um modo de erigirmos memórias e nos relacionarmos com o presente e a perspectiva de posteridade. De fato, eles podem revelar ao olho atento e interessado círculos de sociabilidade, lugares frequentados, hábitos, comportamentos e formas de pensar, momentos escolhidos para serem especialmente guardados - ou compartilhados. Contudo, há fatores que devem ser levados em conta antes de se considerar a sequência de postagem pessoais de alguém seu depósito de memórias, através do qual se lê sua história.

    Em primeiro, é preciso enxergar a dimensão pública que a vida privada mostrada ali ganha. Ou seja, a presença do outro, ou de vários outros, a tudo ver. Isso é fundamental. O fato de que sabe-se que está sendo observado faz o postador adequar-se a isso. Talvez acrescente um comentário que catalize a visível popularidade/aprovação de sua postagem; talvez deixe de registrar uma vivência que não deseja entregar à vigilância virtual; talvez omita preferências, gostos, opiniões que sabe que serão pouco apreciados ou muito depreciados ali. Inclusive, a seleção das marcantes ocasiões exibidas e o modo como o são por vezes não dizem tanto respeito aos momentos em si ou à importância que eles tiveram ao vivente, mas ao potencial deles enquanto ícones promotores de quem posta aos olhos alheios.
   
    O tempo todo nas redes, percebo, existe uma competição de aparências (fabricadas). Uma ansiedade suscitada pelo constante estado de patrulha que a corrida das aparências provoca. Eu invejo e quero ser invejado, de uma inveja vazia que se gera a partir de impressões ilusórias que as pessoas deixam acerca da própria vida.
   
    Ademais, o veículo principal das novas memórias - a foto - tem seus limites e seus perigos enquanto contadora de histórias. Afinal, ela é o sequestro de um instante de sua natural efemeridade, a cristalização imagética de um átimo. Sendo assim, não conta nada a respeito de como se sentia a pessoa fotografada naquele momento, qual era o contexto dele, a história daquela vivência.

    Por vezes, se está sorrindo quando, na verdade, está se sentindo miserável. Por vezes, excede-se numa algazarra pelo simples prazer dela, da molecagem, pelo embalo muito natural da farra, e se é eternizado num feixe de imagem, ou de interpretação, como um babaca, fazendo algo que ganha conotação muito diversa da inicialmente pretendida e vivida. A leitura estreita e imediata que as imagens compartilhadas pedem e permitem faz parir interpretações equivocadas. O manejo incauto, descortês e antiético da imagem de alguém por outrem por vezes envergonha, cola estigmas, sela tóxicos rótulos de modo quase indelével.
   
    Por fim, há de se contar com a aceleração do tempo provocado pela experiência digital. Montanhas de memória são nessas plataformas produzidas todos os dias. Desde um evento inusitado que se presencia na praça, um protesto no qual se toma parte, passando por aquilo que se está lendo no presente, até o novo corte de cabelo e o que se toma no café da manhã são não raro registrados. Como quase tudo é eleito para ser eternizado, perde-se o critério de filtragem, a seletividade. O que é realmente importante? O que foi mais intenso, o que foi mais marcante? Quais foram os eventos chave daquele período de tempo vivido?

    Nesse frenesi, a vida acaba ganhando aspecto de borrão, em que não se distingue pontos ou linhas ou formas com nitidez. Nesse frenesi, o quadro de nossa existência perde a mínima organização de cenas, diálogos, pessoas que figuram em primeiro, segundo e terceiro plano. Tudo se uniformiza e se perde, esvaído num esquecimento que anseia mais por criar novas lembranças que por manter as velhas, e assim funciona como um cofre furado.

     Portanto, pergunto: será que os ambientes sociais virtuais são mesmo como nossas novas dispensas de memórias? A nossa história está sendo conservada ou dissipada ali? Até que ponto são as redes sociais os modernos álbuns de lembrança ou os modernos vales de esquecimento?

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

A arte do improviso


    Sabe, algumas coisas que nos ensinam na escola - ou o modo como nos ensinam - podem ser de grande valia para nos fazer pensar. Eu me lembro como, em química e física, a maioria dos cálculos nos fazia ignorar quaisquer possíveis poréns. Tomávamos a força da gravidade como 10 m/s2, porque com o número arrendondado tudo ficava mais simples. Ignorávamos forças de atrito, resistência do ar e similares. Para trabalhar com gases, volumes e afins, a orientação era sempre tomar como base as CNTP - condições normais de temperatura e pressão - ou seja, um cenário ideal para a situação, completamente blindado de interferências indesejadas, naturais oscilações e imprevistos. Em outras palavras, somos chamados a trabalhar num quadro desprovido de realidade.

    Na vida da gente, não raro pensamos assim também. Fazemos nossas escolhas pautados em cenários imaculadamente regulares, lisos e suaves que engendramos mentalmente - com frequência ignorando obviedades ásperas, amarrotadas e cheias de arestas que se apresentam a nós na real. Planejamos viagens magníficas, para um terreno plano por inteiro e um dia de sol generoso e constante, e somos desnorteados e mortalmente desapontados pela surpresa de uma chuva fina, um vento caudaloso e um chão ondulado. Treinamo-nos com antecedência e esmero para um espetáculo, nos preparando para dançar tango, e a vida vem, risonha e sem vergonha, nos convidar para um frevo.
   
    E aí? O que fazemos? Estamos despreparados, não é mesmo? Antecipamos algo completamente diferente do que o que nos aconteceu, planejamos numa esfera mui distinta daquela em que as coisas de fato tomariam lugar - o terreiro da concretude, da prática existência. Falhamos em contar com o inesperado, o imprevisto, as necessárias intervenções da imperfeita e caprichosa Realidade.

    Mas não adianta choramingar nossa falha previsão, nem espernear porque ela não se concretizou. Não adianta ficar desejando que nossas expectativas fossem melhor atendidas, que tudo não acontecesse como aconteceu. A Realidade é uma deusa que ri de nossos esbravejos e tem tanto mais acentuada sua natureza volúvel, inconstante e instável quanto mais metódicos e ritualísticos e contínuos somos em nossa relação com ela. Fora que a vida vai passar enquanto lamentamos, emburrados porque tudo não se deu na exata reprodução de nosso estéril e não raro impermeável laboratório mental.

    Capitular, portanto, é o que não podemos fazer. Precisamos fazer o magnetismo da vida nos puxar ao solo, mesmo que ela suceda numa torrente de novidades que queira nos tirar do chão. Precisamos resistir. Precisamos improvisar. Precisamos nos adaptar. Relaxar o corpo e deixá-lo apto a balançar instintivamente, segundo a melodia que toque, dançando qualquer música, qualquer ritmo. Não esperar que a estreia da peça seja gêmea idêntica do ensaio; que a partida da verdade seja a perfeita mímica do treino ideal. Saber que é possível cozinhar divinamente mesmo que não se siga à risca a receita, que o tempero disponível seja diferente daquele recomentado.

    Não perder de vista que nossos cálculos raramente serão um redondo bingo. Terão quebrados, aproximações e irracionalidades. Que as condições exatas, as perfeitudes ideais provavelmente não ocorrerão, e que isso não é o fim do mundo. É apenas o desafio da vida que nos convida a reinventarmo-nos, a moldarmo-nos, a sorrir plenamente diante do que temos, do que somos, do que acontece e não desperdiçar energias em rancores pelo que gostaríamos de ter, de ser, que acontecesse.
   

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O sentido da poesia

                                                             


Poesia não tem que ter sentido
A poesia, no mor e melhor das vezes,
não tem sentido
Não tem coerência
Só tem carência

Poesia não tem enredo
Espaço, tempo, uma voz condutora
Começo, meio e fim
Um conflito e uma solução

Vozes? Poesia tem várias. É uma orquestra.
É polifônica.
Conflitos? Também infinitos.
Sobretudo entre palavras que não se dão,
que saem e sobressaem
que guerreiam na hierarquia do ritmo
na cadência desigual da rima,
guerrilha do som, da pausa.
Palavras que, contudo, a tal carreira belamente beligerante
se doam
se entregam
e assim fazem estrondoso espetáculo.
Absurdamente poético.
Sem aposentar-se.

Soluções? Vixi!
Logicamente, poesia não tem nenhuma.
Não é narrativa
Nem problema matemático

Mas é conforto a alma
é tanto espanto dos males como o canto deles.
A expressão deles
O alívio do recalque
A resistência à repressão
O conforto da luta
A antítese da resignação
Beleza teimosa, necessária.

Começo? Sim, este poesia tem.
Mas não é começo a começar
Ponto de partida oficial
Marco zero.
É começo começado
Começo que, muitas vezes, parece uma morte
A dor do parto, o delírio da febre,
as cinzas do renascer, suspiro último da agonizante fênix

Poesia brota, calmamente embrenhada no território da dor
Na espera vazia da desesperança
na cegueira do pessimismo
Ou na gloriosa terra do amor
na comarca do desejo
na província do carinho
no distrito da amizade
da alegria, do simples júbilo de viver
da quietude, da plenitude, da paz.
No verde da esperança
dos olhos de lágrimas
escorrendo coloridas e risonhas de arco-íris

O município poderoso da arte
É cosmopolita. Universal.
É tabacaria. É o mundo inteiro. É poliglota

É língua que se fala em todo canto,
e em qualquer lugar se entende.
Responde

E por que não se entende mais o sentido da poesia?
Porque ela perdeu a partida decisiva no campo das letras ao time da prosa?
Porque poesia é para ser ouvida, não lida
Falada, cantada, declamada, declarada!
Não lida.

Poesia é para ser ajoelhada
com uma aliança em aguardo e emoções fortes lustrando os olhos
retumbando no peito com o hino arrepiante da expectativa.

Poesia é para ser suada, sofrida, perguntada
no não saber da correspondência,
do sentimento sentido sozinho
pedido desejosamente expedido na impotente e sôfrega metrópole
sem certeza de acolhimento na imprevisível colônia.

Poesia é para ser carnavalesca nos recintos da rua
nos espetáculos das gentes
todas juntas a viver alegremente pertencendo umas às outras
e à causa de vencer essa chata quaresma que quer nos ver vencidos
jejuando da existência.

Poesia é água profunda, funda demais
para um mergulho que não seja
muito sensível
muito treinado
muito acostumado na natural estranheza poética
É mergulho perigoso,
pode sufocar com as bolhas do desconhecido
provocar mal estar com as espécies exóticas
exuberantes
e ainda obscuras
de sensações com as quais povoa o território que invade

Poesia é arte deturpada pela estéril precisão da ciência.
Ah, ciência!
Ela que reina soberana em nossa época
e sufoca com simples despotismo
quaisquer esboços de revolta
e de poesia.

Meio? Fim?
Roma? Amor?
Espelho? Reflexo?
Sentido? Para ser sentido? Entendido?
Subentendido? Desentendido?
Desmascarado?
Sentido somente? Com todos os sentidos? Sem nenhum sentido?

Poesia,
equação cuja ordem dos fatores altera o produto
mistura em que as substâncias reagem
sonho em que o sentido está
imanente
transcendente
dentro de si
e além.



Foto: Trânsito, 1970. Ana Letycia. Serigrafia em cores, 60 x 34, 1 cm.