segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Palavras de aniversário

                                                                   


     Quando a gente faz aniversário, e o celebra, as pessoas costumam pedir um punhado de palavras, um arremedo de discurso. Pelos 2 anos do Pensar, que perigo!, aqui estão suas palavras de aniversário.

    É contraditório o sentimento de fazer anos. Alegre e triste, cheio e vazio, complexamente simplório. Ficamos a nos orgulhar de tudo o que realizamos em mais este ano (e na vida), a nos envergonhar de tudo o que poderíamos ter feito e não fizemos, do que não realizamos. A matutar inutilmente o que poderíamos ter feito feito diferente, ou melhor.

    A sensação de infância não se alivia quando amadurecemos. A de amadorismo, não empalidece quando nos profissionalizamos. Ai, parecemos ainda tão irremediavelmente imperfeitos e inocentes! Com tanto mais a aprender do que já aprendido! Com um despreparo para a vida (e para a morte) que só cresce à medida que para elas nos preparamos...
   
    Em alguns aspectos, porém, melhoramos. Crescemos. Quando ficamos mais velhos, em geral falamos menos, mas nos expressamos mais. E melhor. Não precisamos de palavras em excesso, aprendemos a manuseá-las com parcimônia, com cuidado. Estancamos a verborragia da juventude, que tagarela, que desperdiça a preciosidade das palavras sem medida... deixando-as jogadas desleixadamente sobre a cama, entre o abraço, nas desculpas, nas falsidades, e até nos agradecimentos.
   
    Quando a gente fica mais velho, aprende a ter mais paciência. Entende que é preciso se engravidar da ideia, do plano, do projeto, antes de sair despejando-os pelas palavras, em papel ou em ouvidos alheios. O tempo da gestação é uma custosa espera quando somos jovens. Ao crescer, percebemos que é necessário para tudo se fortalecer, madurar e proteger dentro da gente. Até conseguimos apreciar esse tempo. Saboreá-lo.

    Quando a gente fica mais velho, nem sempre aprende a lidar melhor com os outros, mas decerto consegue lidar melhor consigo mesmo. A gente se conhece melhor, sabe das próprias fases e das crises, do que gosta e do que não gosta, do que dá prazer, causa desgosto e preguiça. Sabe dos próprios talentos e das próprias virtudes, do que sabe fazer e do que absolutamente não nasceu para.

    A gente aprende a se aceitar. Desiste de se mutilar para se enquadrar na expectativa e no aplauso dos outros. Até porque, normalmente, eles deixam de importar. Percebemos que dele não precisamos. Dele prescindimos. Estamos melhor sem.

    Quando a gente fica mais velho, aprende a não fazer perguntas demais. A tomar o que a vida nos oferece, esbanjando elegante apetite, sem botar defeito. A gente aceita, entrega, confia, agradece. E o faz sem esforço, nem esperneio, sem sacrifício.

    Quando a gente fica mais velho, por fim, e tendo sido tocado pela sabedoria da experiência, faz as pazes com o tempo. Entende e aceita suas voltas e viravoltas, convive bem com sua outrora exasperante alternância entre uma lentidão morosa e uma rapidez alucinante. Passa a caracterizá-lo como amigo, não como impiedoso. Acostuma o ouvido a seus tiques e seus chiliques, ouve as lições que ele dá em seu sussurrado silêncio, as histórias que conta na nossa hora certa, sempre certa.

    Nesse mais um ano completo de existência, gosto de pensar que o Pensar, que perigo! fez um pouco de tudo isso... Falou menos, se expressou mais; se acalmou com seus projetos, consigo mesmo, com o tempo... Ah, o tempo, esse tempo levado... Nem me deu tempo de planejar um festejo mais bem escrito desse feliz e orgulhoso aniversário...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A importância da convicção



“... nos parece que o mais importante reside na sinceridade e na força da própria convicção... e o resultado está nas mãos do destino. Só o destino pode nos mostrar se lutamos contra espectros ou contra inimigos reais [...]. Nossa tarefa é armar-nos e combater.” Ivan Turgêniev

“É o que eu digo, a gente sempre duvida se o que faz tem algum sentido. Daí decorre em grande medida a nossa fragilidade.” Rosa Montero

    Um grande perigo da vida da gente é o não acreditar. Da gente eu digo, principalmente, quem tem o triste pendor a pensar mais do que devia ou a ser exageradamente permeável às estupidezes alheias.
   
    Muitas vezes, vivemos situações em que ouvimos, de nossos peçonhentos pensamentos ou de outras peçonhentas pessoas, às ocultas ou às escâncaras, que o que fazemos não é útil. Que toda a gente pode prescindir do que fazemos, que nossa existência não é necessária, que aquilo que mais amamos e ao qual dedicamos nossas vidas é plenamente supérfluo.
   
    E o pior de tudo é que, às vezes, acreditamos. Somos balançados em nossa crença no que fazemos. Deixamos de responder às insensíveis ofensas das pessoas porque não temos argumentos bem formulados nem para convencer a nós mesmos nesse respeito, quem dirá a elas.
   
    Em nosso íntimo, temos a certeza, que mais se sente do que se explica, de que o que fazemos é importante, mas não sabemos exteriorizá-lo em racionais palavras, não sabemos fazer esquemas de explicação. Não conseguimos defender nossa causa e isso nos abala.
   
    Esta pode ser a nossa perdição. Isto pode ser a tesoura que poda um gênio ainda germinando, a lâmina que corta uma pulsante existência ainda amadurecendo. E o contrário disso, a crença firme e convicta, de uma fidelidade canina e religiosa, antes da alma que da mente, é frequentemente a chama que alimenta a vida e faz arder todo o potencial, o motor que inspira o sonho e propulsiona a obra.
   
    Acima de tudo, antes de mais nada, mais primordialmente que qualquer coisa, é preciso acreditar no que se é e no que se faz. E não admitir que alguém desacredite. Não permitir que se insinue a necessidade de justificação. Seguir, dia após dia, com paciência e com fervor, munido de paz e inflamado por ganas, sendo o que se é e fazendo o que se faz. Por, principalmente, dois motivos:

    Primeiro, porque jamais saberemos realmente se o que fazemos é mesmo importante. Se somos essenciais ou acessórios, marcantes ou absolutamente passageiros. Só a distância do tempo e da ampliada perspectiva dirá. Só o olhar de cima. Só o véu da posteridade.

    Dom Quixote lutou contra gigantes disfarçados de moinhos de vento; Hamlet, contra fantasmas. Para ambos, seus inimigos eram reais, e isso os fez existir. Quem de nós pode dizer que suas lutas eram fictícias e inúteis?

    Quem de nós ousa decretar ao outro que o que faz não importa, não move, não inspira, não contagia, como se houvesse critérios objetivos para avaliá-lo, parâmetros concretos e exatos para medi-lo?

    Segundo, e o tenho dito repetidamente porque cada vez mais nisso acredito, não podemos ir contra nossa natureza. Isso é tão tolo quanto, ao imaginar uma história, querer que um personagem loiro se torne moreno no meio do caminho.
   
    É tão vão e tão estúpido quanto tentar transferir um peixe de água salgada à água doce. Em poucas horas, ele morrerá. Sendo incapaz de modificar seu novo ambiente, de moldá-lo a si ou de moldar-se a ele, dentro em pouco expirará.
   
    Só é possível viver como si mesmo, e não tentando ser nenhuma outra pessoa. Só é possível fazer, extraordinariamente ou apenas bem, o que cabe à sua natureza. Estamos, todos e cada um de nós, condenados perpetuamente a ser quem somos. Cumprir essa pena, aproveitando-a ao máximo, em sua delícia e em sua dor, é nossa única e mais sábia opção. A fuga só existe na morte.

    Assim, seja qual for o nosso ofício, a nossa arte, a nossa paz e ao mesmo tempo a nossa guerra, armemo-nos. Acreditemos. Tomemos nossos instrumentos, enchamos o peito de ar e confiança e vamos à luta. É nosso caminho, nosso inferno e nossa salvação. 

sábado, 17 de dezembro de 2016

A contemplação do escravo

                                                               
                                                                
    A conjuntura política atual de nosso Brasil, ao contrário do que muitos dizem, não é complexa - no que tange à dificuldade de seu entendimento. É simples. Assim como é simples, bem simples mesmo, a compreensão da opinião pública maioritária em respeito à esta conjuntura.

    Não, as pessoas não estão sofrendo um surto de esquizofrenia coletiva, de visão alucinada da realidade. Na verdade, estão sofrendo de algo parecido, mas que não se deve a um problema psíquico e sim a um desvio de perspectiva, estimulado pela mídia que a alimenta e a quer mansinha, adestrada. Estão sofrendo da síndrome do escravo que se contempla pelos olhos do amo.

    Em outras palavras, sofrem por não reconhecer sua posição oprimida. Afinal, esses escravos (a classe trabalhadora brasileira) são da casa-grande, têm liberdade de trânsito dentro dela, um trabalho leve que começa antes do sol e com ele não termina, têm roupas que cobrem seu corpo e o mínimo conforto negado a outros. Têm muitas vantagens se comparados aos escravos-mais-escravos da lavoura, que têm um trabalho pesadíssimo, coitados, não tem direito de morar bem, comer e viver como eu. Eles, sim, são escravos.

    Sofremos, em suma, da síndrome do escravo que, por sofrer menos que alguns outros de seu mesmo status, não se considera escravo. Apenas um criado sem direito algum, que não é pago e pode ser vendido.

    Esse escravo que não se vê como tal não só apoia como aplaude medidas que o oprimam ainda mais. Admira os modos dos senhores e tenta arremedá-los, pois se imagina praticamente um deles. Não enxerga por que alguns de seus semelhantes (escravos) estão insatisfeitos e ousam reivindicar. Não só discorda da atitude de seus protestos mas tenta sabotá-los, e muitas vezes consegue.
   
    Está no fundo do poço, é chicoteado por sua realidade seguidas vezes, sob o véu do disfarce, e ainda assim sinceramente acredita que as leis dos senhores estão certas, têm razão. Os escravos (entre os quais ele não está, é claro) são sujos, podem muito bem passar sem as regalias que andaram negociando a custo, suportam tranquilamente mais algumas horas de trabalho, já que as catorze diárias são leves, deixam até tempo para vadiar antes de dormir. Suportam também algumas centenas de gramas de comida a menos, porque comem muito.   

    Já é hora de a classe escrava do Brasil de hoje libertar-se dessa dissociação e enxergar-se em seu lugar, em sua condição. Já é hora de deixar de lado essa aspiração sonhadora a ser o que não se é, esta vivência autoenganadora como se fosse o que não é e situar-se no mundo, arrasador e difícil como ele está.

    Situar-se ativamente, tendo clareza quanto ao muito precário e precarizado espaço que ocupa e a necessidade de armar-se até os dentes para lutar por seus interesses, por si e pelos seus.

    Pois, os nossos dominantes - dominantes para dentro, dominados de fora - como já bem disse Eduardo Galeano, já o fazem e muito bem.


Imagem: Execução de castigo de açoite. Negros ao tronco. Jean-Baptiste Debret.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Perfumaria

                                                               

Tanto me acusam
De perfumeira
De boticária
História afim

Pois eu não tenho
Avental fresco
Máscara velha
Luva marfim
Meu uniforme
é muito outro
é desnudado, é literário
escritartista
é aguerrido

Em conteúdo
Tenho fragrâncias
Tântras ao cheiro
Pura mistura
Lindezas mil
Muito me alegra
Mais que a tristeza
Tanta beleza
Que aspira ao fim

Fim das mazelas
Fim das tragédias
De todo dia
Tão desiguais

Fim das surdezas
Fim dos mutismos
Fim dos tampões
Viva aos motins!

Mais que o debate
Tanto me bate
Um outrossim
É a gastura das cem palavras
Sem meio ou fim
É a eloquência
De tantos gestos
Num teatrado
Vazio tinto
Falácia ao sol

Quanto mais vejo,
Quanto mais ouço,
Mais acredito
nisto que digo:
Perfumaria
Mui formidável
E mais do que isso
Essencial