quarta-feira, 29 de abril de 2015

Endeusamentos, relativismo e pobreza

                                                                
            
    No Egito Antigo, os faraós eram considerados deuses. O povo todo os venerava não só como líderes e governantes, mas também como deuses vivos.

    Em Roma, os imperadores não eram oficialmente considerados deuses, mas queriam sê-lo. Tentavam à toda custa associar-se às figuras de alguns dos inúmeros deuses cultuados por eles, inventar em sua linhagem um ancestral deus, truques afins. E, na prática, certamente eram respeitados e adorados quase como se fossem tais, e depois da morte alguns foram divinizados.

    Já na era moderna, o tempo dos reis absolutistas, tivemos figuras como Henrique VIII, o homem das seis esposas; Luís XIV, o rei sol; e pensadores muitos que escreveram longamente sobre o poder divino dos reis, legitimando sua posição sobre a sociedade, seus mandos e desmandos, sob a ideia de que eles eram figuras divinas. Figuras que deviam ser seguidas e servidas e adoradas e, sobretudo, obedecidas, pois desrespeitá-los seria o mesmo que afrontar Deus o próprio.

    Hoje, nós não veneramos governantes (Ô, glória!) mas temos os nossos alvos de adoração e endeusamento também, o que é igualmente cômico ou igualmente trágico. Estou me referindo aqui a algumas parcelas da nossa tribo humana que escolhemos para colocar num pedestal, prestar a nossa reverência e a nossa baba: por exemplo, o povo do branco, o povo da toga, o povo do uniforme. Entre outros, é claro.

     Todo mundo entendeu, certo?

    Pois é, hoje, a nossa adoração é mais diversa e mais terrena. Nós nos ajoelhamos e colocamos submissos a um mais variado rol de deuses, humanos endeusados, pessoas que ganham essa posição relativa pelo poder, prestígio e respeito que - não raro, tolamente - nós, tão humanos quanto, damos a eles.

    Posição relativa, eu digo, porque de fato o é. Relativa. Construída. Não absoluta, não natural, não fundamental. E que, tão facilmente quanto foi erguida e concordada entre a boiada e os boiadeiros, pode ser desconstruída, desfeita, questionada, reformulada.

    O que estou querendo dizer aqui é que o príncipe não é especial de alguma forma, ele é feito especial pelo nosso comportamento perante a ele, diante dele. Não existe algo que está nele que é diferente. O que existe é uma reação para com ele que o torna assim. Todo o poder, a magia, a aura quase mística e o prestígio do príncipe, assim, é dado a ele, literalmente de bandeja, por nós, estúpidos súditos, por meio da nossa adoração, da nossa submissão, do nosso ato de ajoelhamento perante a ele. Tudo o que ele tem é dado. Da mesma forma com os faraós modernos: o doutor, o meritíssimo, o fardento a quem submissamente reverenciamos.

    Em todas as sociedades supracitadas, o critério utilizado e a natureza do poder dado eram ligados à religião e à religiosidade. Não podia ser diferente, já que aqueles povos eram muito religiosos, tinham parte fundamental de suas vidas, o centro de seus imaginários e explicações para tudo, regidas por e embasadas em religiosidades, mitos e crenças. Essa esfera da vida era muito importante para eles, e por ela eles escolhiam seus endeusados.

    De acordo, no mundo de dinheiro e aparências que vivemos hoje, os nossos endeusados o são por causa disso: eles são, na avassaladora maioria das vezes, aqueles cujas contas bancárias inspiram o maior suspiro; e, também e principalmente, são aqueles que - em matéria de falar, de andar, de vestir, de dirigir, de “viver” - podem fazer o melhor show, exibir o maior, mais imediato e vistoso espetáculo. O que nos impressiona à submissão, à reverência, à pequenez.

    Não me entendam mal. Não pretendo aqui fazer algum deboche, alguma provocação ou desconsideração. Nem atingir diretamente alguma religião específica, como o culto do jaleco. Tenho orgulho em dizer que me considero muito polida e civilizada para cometer barbaridades dessas. E suficientemente consciente do perigo das generalizações, também. O que pretendo aqui, na verdade, é só iniciar uma reflexão acerca da fluidez dos tempos, da maleabilidade constante dos paradigmas, o efêmero poder da convenção que vigora e o perene poder que o humano tem de construí-la. Desconstruí-la. Destruí-la. Reconstruí-la. Reformá-la. Adequá-la. Relativizá-la.

    O que pretendo aqui, ademais, é propor um questionamento: se tudo passa - e passa mesmo -, se tudo de aceitação geral que consideramos hoje uma verdade inquestionável provavelmente será amanhã ridículo, mitologia pura, ficção incientífica, por que fazemos as coisas que fazemos, sem pensar muito? Por que reverenciamos o que e quem reverenciamos?

    Será que não estamos sendo pobres demais, pequenos demais, tolos demais ao simplesmente seguirmos o rumo do trilho? O trilho cujo rumo alguém determinou, e que outro alguém pode facilmente desdeterminar e redirecionar? Será que não estamos indo aquém de nossa “natureza” - justo nós, humanos, que, dizem, somos os únicos animais racionais, e dessa forma temos o privilegiado lindo tesouro, poder e capacidade de criarmos razões para nós mesmos, de questionarmos o que existe e pensarmos independentemente, de não sermos governados por nada nem ninguém além de nossa própria cabeça?

    Se todos e cada um de nós, humanos, racionais, tem a sua própria cabeça (pelo menos, segundo reza a teoria), por que não usá-la, na prática? Por que não tirar a viseira e ter olhar mais amplo? Por que não distanciar-se da situação e pensar “fora da caixinha”? Por que não, como estou sugerindo aqui, comparar diferentes convenções de diferentes culturas e assim talvez enxergar como a nossa pode ser ridícula, como a nossa deve ser - na mais suave das hipóteses - problematizada, relativizada?

    Gostaria de lembrar aqui que a mesma lei que hoje tem o racismo por crime inafiançável já permitiu a escravidão. E a mesma lei que dentro em pouco explícita e oficialmente condenará a homofobia já teve a homossexualidade como crime - quase com status de pecado -, crime que recebia não só punição e expurgo mas "cura".

    E, não menos importante, gostaria de dizer que alguns daqueles que reverenciamos de fato merecem respeito e admiração. São profissionais verdadeiros, que fazem seu trabalho com disposição, alegria e entrega; pessoas íntegras que procuram levar a vida da forma mais digna possível. Mas, alguns outros, ou muitos, daqueles que reverenciamos... digamos que, não raro, se pararmos para pensar e observar a fundo, merecem muito mais o nosso desprezo que o nosso respeito. 

    Como eu disse no texto das moedinhas, nós temos um hábito lamentável de escolher muito mal os nossos heróis. Ou os nossos deuses...

    Pensar, que perigo! Repensar, que hecatombe!

    Ou não, né? Se nós vivemos a era do progresso, não a do retrocesso, tudo o que fazemos é no sentido de evoluir, certo?

    E quanto a endeusamentos... Ah, por favor, nós já devíamos ter passado dessa fase.
   

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Sim, eu sou feminista

                                                                  
    Eu sou feminista e com muito orgulho me declaro assim. (E não estou sendo pleonástica nessa frase, porque as duas coisas não são uma mesma.) Tenho ouvido muitas visões distorcidas e equivocadas acerca do que é feminismo, o que muito me aborrece e entristece, o que vou canalizar para um breve e sintético esforço de conserto e esclarecimento nas próximas linhas.

    Tem gente que acha que o feminismo é um machismo inverso, um machismo ao contrário, que busca uma “supremacia feminina” em lugar de uma “supremacia masculina”. Tem gente (estes são feministas sem perceber e sem entender) que diz que o feminismo é um enorme absurdo porque “todas as pessoas devem ser tratadas igualmente” ou porque, em contrário, “todas as pessoas são diferentes, homens e mulheres inclusive, e devem assim ser consideradas”. Tem gente que acha, ainda, que o feminismo é um “grande inimigo das mulheres” na medida em que reza uma bonita ladainha em favor da liberação da mulher e dessa forma vai contra a realização “do instinto natural da espécie, o sacerdócio feminino maior” da maternidade e da família. Ai, meu coração.

      Gente, vamos conversar. Feminismo não é nada disso.

    Antes de mais nada, primeiro e principalmente, porque não existe O Feminismo, doutrina dogmática unificada, imutável, perpétua, que defende um corpo de leis rígidas e severas e excomunga ou exila todo aquele seu “membro” adepto que “desrespeita” ou discorda de uma delas. Existem feminismos, feminismos diversos, e algo mais amplo que escolhemos chamar de feminismo, que nada mais é que um conjunto de ideias que giram em torno de um eixo e culminam, mais ou menos, em um objetivo aglutinador e conjunto, em motes de luta semelhantes e comuns.

    Esse feminismo do qual estou falando (com o qual muita gente se identifica ou o qual dispensa muitas vezes sem nem saber bem o que é) não prega um novo sorrateiro sistema de dominação, não é um machismo invertido. Pelo contrário, ele rejeita toda e qualquer coerção, dominação e submissão, opõe-se a elas, e não busca implementar uma nova. O feminismo é contra o machismo, sim, mas não é um pólo oposto a ele. O feminismo é contra o machismo enquanto mentalidade que "legitima" opressão e subjugação e manipulação, mas não é contra homens - algo a que, muitas vezes, infelizmente, o movimento está associado. Até porque, meninos, nós amamos vocês, e queremos vocês do nosso lado, pensando, lutando e protestando. Homens podem (e devem) ser feministas também.

    (A única postura radical que o feminismo de fato adota em relação aos homens, e sua relação com as mulheres, é esta: em vocês, nós não queremos senhores, queremos companheiros. É pedir muito? É tão revolucionário assim? Não, é feminista. E é apenas justo, afinal.)

    A nossa luta (a luta feminista) não precisa, nem deve, ser uma luta só de mulheres. E muito mais facilmente ela alcançará as justiças que almeja se tiver homens, também, junto, dentro e ao lado. Pois, muito mais efetivo é o trabalho de um time se ele não divide forças, mas soma; se não coloca, entre si, uns contra outros, mas todos juntos, aliados, parceiros, principalmente em vista daquilo que é um bem e um avanço para todos.

    E não estou blefando quando digo que o feminismo é para todos: o feminismo considera o homem, também, muito mais justa e gentilmente que o machismo. Se alguns dizem que homem não chora, que isso é sinal de fraqueza, nós dizemos que homem chora sim, e nem por isso é fraco. É sensível, e é humano. Pois, homem também é gente, chora, tem medo, tem angústias, tem limites, tem forças e fraquezas. E qualquer tentativa de negar isso só aponta para um psicopata ou um ogro brutamontes - nenhum dos quais, aliás, é muito bem visto ou desejado por olhos femininos...

    O feminismo nasceu visando principalmente à igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres nas esferas sociais, econômicas, políticas - civis, todas as possíveis - o que pode ser explicado também pelo contexto de seu nascimento. Em fins do século XIX, a disparidade de direitos entre os gêneros era muito grande, muito maior do que é hoje, inclusive. A mulher não podia votar, participar do cenário político de forma alguma; trabalhar era visto com maus olhos e severas reservas, era restrito a certos postos aos quais “a natureza feminina” era adequada, e sempre recompensado com salário abismalmente menor que o do homem, ainda que, igualmente a ele, ela tivesse que prover para a sua casa e sua família. Em termos legais, ela era literalmente um ser inferior, em muitos países, sendo considerada incapaz de gerenciar seus próprios bens, de tomar decisões por si própria, estando submetida à tutela e assinatura e boa-vontade de seu pai ou marido. A universidade era praticamente território proibido, e mesmo a escolaridade básica não era de amplo acesso ao “belo sexo”, entre quem um “exemplar” que fosse culto ou sabedor de muitas coisas era taxado de “pouco feminino”. Em suma, a mulher não era independente, não vivia em iguais condições às dos homens, e ficava na frustrante dependência deles para, oficialmente, tudo.

    Hoje, muitos obstáculos e desigualdades já foram superados, enquanto muitos outros, em contrapartida, ainda restam a ser vencidos - e por isso a conquista dessa igualdade ainda é um objetivo principal, um forte mote de luta.

    E no entanto, reparem, o feminismo almeja a igualdade de direitos entre homens e mulheres, não a igualdade entre homens e mulheres. Isso não existe. Isso, como eu já disse em texto anterior, é uma colocação equivocada de linguagem - para não falar de um completo e perfeito delírio. E o feminismo (como, realmente, qualquer pessoa com cérebro) reconhece isso. Homens e mulheres são iguais enquanto seres humanos, mas são essencialmente e felizmente diferentes enquanto... bem, homens e mulheres. Há diferenças marcantes, particularidades indeléveis e inescapáveis que caracterizam de modo distinto cada um dos sexos, e nada jamais pode (nem deve) mudar isso.

    Além do que, meus amigos, convenhamos, não é possível falar em uma identidade feminina - bem como não é possível falar de uma identidade masculina. Isso é algo heterogêneo e não pode ser considerado como o contrário. Não existe um bloco uniforme, algo único que está presente em todas as mulheres do mesmo modo e que as define de jeito absolutamente igual. Não existe a mulher, existem as mulheres. Mulheres diversas, variadas, diferentes entre si, que se identificam particularmente com coisas diferentes. Há aquelas que adoram um futebol, aquelas que o detestam, aquelas indiferentes; como há aquelas que amam a cozinha, aquelas que fogem dela. Aquelas românticas, aquelas desapegadas; aquelas que se aquietam com um homem só, aquelas que desfrutam mais quantitativamente de sua solteirice.
    E o feminismo é muito centrado nisso também, nessas singularidades, e na luta pelo reconhecimento e respeito a elas, indistintamente. O feminismo é uma luta pelas igualdades necessárias e também pelo reconhecimento das diferenças, as diferenças entre os sexos e “dentro” dos sexos, dos indivíduos entre si. E as duas prerrogativas não excluem-se entre si - pelo contrário, se complementam e se completam.

    Por isso mesmo - por considerar as múltiplas identidades, a singularidade que há em cada mulher - o feminismo não é, nem pode ser, “contra a maternidade e a família”. Gente, para alguns de vocês pode parecer idiota (é!), mas tem uma galera considerável por aí pensando nesses termos, e eu gostaria aqui de desmistificar essa noção errônea. O feminismo não é nem “a ideologia das vagabundas” nem, com efeito, “a ideologia das ‘puritanas’”. Muitos relacionam a agenda feminista à “libertinagem feminina”, à liberação “exacerbada” da mulher, e assim, acabam tendo-a como uma “doutrina” anti-maternidade, anti-família, até anti-Deus. (?!)

    Nada disso procede. O feminismo busca e prega, sim, a emancipação da mulher - de modo que ela, assim, possa fazer o que quiser de si mesma, agir como entender melhor, se tornar quem quiser. O feminismo, no fundo e na verdade, tenta desconstruir a ideia de “natural” no que é cultural, convencionado, e dessa forma libertar a mulher dessas amarras para ela própria escolher seus caminhos. Para ela, livre, escolher como deve ser a própria vida.

    Por exemplo, só a mulher pode ser mãe. É verdade, homens não podem ser mãe (que pensamento estranho). Mas isso não significa que toda mulher nasceu para ser mãe, que toda mulher será mãe em alguma altura da vida. Ser mãe é uma escolha, deve ser uma escolha, uma opção que se decide por abraçar ou não.

    E é isso, em última instância, o que é o feminismo, o que o feminismo prega e objetiva: escolhas, o poder de escolher, a possibilidade de a mulher definir o que quer da sua vida e não tê-la definida, não ser definida por seu gênero, por simplesmente ser mulher.

    E, assim, ao contrário do que muitos pensam, mulheres que optem por serem mães e esposas em tempo integral podem ser feministas, e simbolizam muito bem o que é o feminismo. Como eu disse, o feminismo não prescreve uma receita, um caminho a ser seguido por todas, uma cartilha a ser obedecida - pelo contrário, ele liberta a mulher para que cada uma delas opte, decida, escolha por um ou outro caminho, nas várias ramificações que encontra ao longo da trilha da vida.

    O feminismo hoje, então, toca em questões como a saúde das relações que travamos, consentimento e abuso, os efeitos variados das variadas pornografias. Os salários (des)iguais pelo mesmo trabalho, a representatividade das mulheres, sexismo - por exemplo, no futebol.

    (Aliás, francamente, levantam-se bandeiras em oposição à homofobia e ao racismo, mas ninguém fala nada de sexismo, não é mesmo? E todos sabemos que ele existe, que uma jornalista esportiva infelizmente não vai trabalhar livre, leve, solta e tranquila como um jornalista esportivo, bem como acontece com as árbitras, as auxiliares, as médicas que entram no campo. As motoristas de ônibus, as engenheiras, as mecânicas. E os insultos, as provocações, os deboches afetam e incomodam, sim, mesmo que se passe por eles de cabeça erguida, como se fossem parte do vento; e eles não precisam ser tolerados dessa maneira, não podem existir com a aceitação ampla e geral como se fossem algo normal.)

    O feminismo, em resumo, é sobre a igualdade e sobre a diferença, sobre o respeito, o reconhecimento, a escolha, as escolhas. O feminismo, por si mesmo, é uma escolha, uma escolha em construção. Uma construção que eu apoio, cujas manchas eu tento clarear e esclarecer, uma construção na qual eu me orgulho de ser panfleteira e aguerrida operária.
    Porque eu sou feminista. Eu sou feminista, sim.

                                                      


quarta-feira, 15 de abril de 2015

As coisas valem pelas pessoas que nos trazem

                                                                   

    Quando o coração está em desassossego...

    Suas pernas andam a esmo, e não encontram um rumo, nem meio.

    Você chega a todos os lugares, e não está em nenhum.

   O peito angustia, aperta, e parece impossível desfazer o nó, suavizar a sensação tão próxima de se estar perdido, longe.

    A cabeça martela, o pensamento lateja, tudo a seus olhos é estranho, nada lhe parece familiar, importante, sequer mesmo real.

    Você está como que preso num limbo, em que voluntariamente se colocou.

    O sentido de tudo, do todo, de estar e não ser, é confuso, sufocante, intoxicante.

  Você se enlabirinta tentando encontrar um sentido, um outro sentido, querendo justificar-se, explicar-se a si mesmo. E, para seu desespero, sua tontura, seu choro, não consegue.

    Você mudou de endereço, mas ainda não o tornou o seu lar.

   E assim, você hiberna e flutua, você não tem mais ao mesmo tempo que ainda não tem... o seu lugar.

    Mudança.
 
   
    Eu acredito muito na importância das pessoas. Apesar de todo o engano que tem havido nessa órbita, de todo o distanciamento da gente quase toda dessa tão rústica verdade, tão simples e funcional consciência, eu ainda acredito na força e no valor do humano. A vida é feita muito mais de pessoas do que de coisas, pois as coisas não têm sentido sem as pessoas: as ideias precisam de alguém que as tenham, os planos de alguém que os realize, as posses e os bens e as conquistas e as coisas perdem a graça se você não tem pessoas com quem dividi-las, pessoas que vão fazer você querê-las por elas, para tê-las junto com elas.

    Ou não é fato que é tão mais gostoso ver um filme quando se tem alguém com quem discuti-lo, debatê-lo; alguém ao seu lado que pipoca comentários ao longo da exibição e ouve os seus, com quem se compartilha impressões ao final dele e constrói-se uma leitura - ou não se constrói nada, no feliz silêncio, além da conclusão de um tempo passado em alegria e delícia?

    Ou não é fato que a mesmíssima comida tem gosto diferente quando provada em situações distintas, sozinho e acompanhado? Não tem muito mais graça o ritual da refeição quando compartilhado, com a mesa completa, voz e riso e conhecido carinho em redor; não é muito mais lento, conscientemente sentido, percebido, regozijado o ato do levar o garfo à boca quando o ambiente preenche-se por presenças e não por ausências; não é muito mais gostosa, realmente, a própria comida, se saboreada com o tempero da companhia?

    Não é tão mais completa uma viagem, memorável sua experiência, se o seu lado por todo o trajeto não está vazio, se as malas são duplas, também as fotos, e os risos; se você tem com quem rir por todas as gafes, todos os erros, as direções enganadas, com quem relembrar os bons momentos, a visita inesquecível ao lugar que tanto adorou?

    Não é até mais suave a derrota, menos dolorida a queda, quando se tem aqueles com quem sofrê-la, aqueles que vem ao seu apoio e consolo, e te fazem rir mesmo nesse momento logicamente tão pouco propício ao riso? Não é muito mais significativa a vitória, a conquista, quando há com quem celebrá-la, aqueles que estiveram com você ao longo do caminho, e agora muito sentem contigo também a sua alegria?

    Eu poderia encumpridar isso aqui praticamente ao infinito. Poderia ser interminável em mais exemplos, comentar mais e mais situações com as quais todos se identificam, sensações pelas quais todos já passaram, das quais todos com certeza conhecem o gosto, o amargo e o doce. Mas já passei minha mensagem. Ela é simples, quase infantil, mas nem por isso perde, para mim, sua validade e seu valor.

    Machado de Assis disse assim “as coisas valem pelas ideias que nos trazem”. Eu digo que as coisas - os objetos, as artes, as viagens, os acontecimentos, os lugares - valem pelas pessoas que nos lembram, pelas pessoas  que nos trazem.

    Estou puxando o fio do lugar porque ele é o que agora experimento, mas ele é só um dos que podem exemplificar a situação de mudança e deslocamento de apego, desenrolar o novelo do apelo e do sentido das coisas para nós. Enquanto não criamos laços com as pessoas de um novo lugar, enquanto ainda não amamos a rotina que temos em torno delas, vivemos momentos memoráveis com elas, então igualmente tênue e frágil é a nossa relação com esse lugar, igualmente vazio de valor, desprovido de sentido e significância ele é. Ainda não aprendemos a amá-lo porque não amamos as suas pessoas. E quando, somente quando, elas tiverem significado para nós, tornarem-se queridas, únicas e insubstituíveis, assim também será o lugar seu enredor, o lugar em que as encontramos, o lugar que nos trouxe a elas, e assim nascerá o afeto que teremos para com ele.

    As coisas, os lugares, as vivências, valem - também e principalmente - pelas pessoas que nos trazem.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

O crime da prosperidade

                                                                       
    “Eu o vi dar um rápido, clandestino olhar por toda a minha sala; ele registrou seus limites estreitos, sua mobília escassa. Em um instante, ele havia compreendido o estado das coisas - havia me absolvido do crime da prosperidade. Estou moralmente certo de que se ele tivesse me encontrado em um cômodo elegante, deitado em um macio sofá com uma esposa bonita e rica ao meu lado, ele teria me odiado. Uma visita breve, fria, distante teria sido em tal caso o extremo limite de suas civilidades, e ele não mais me procuraria pelo tempo todo em que a onda da fortuna me mantivesse em sua crista. Mas a mobília pintada, as paredes nuas, a triste solitude da minha sala relaxaram seu rígido orgulho, e uma mudança suavizante havia tomado lugar em sua voz e em sua postura quando ele falou de novo.”

    O trecho acima reproduzido é uma passagem do líndissimo romance ‘O professor’, de Charlotte Brontë. A cena, de dois amigos se reencontrando depois de algum tempo distanciados, sintetiza genialmente esse que é um mal moderno que corrói amizades, aparta familiares, distancia enamorados e, sim, instaura-se sorrateiro em nós, tornando corrompida e falsa a nossa cordialidade: o crime da prosperidade.

    Quantas vezes já não nos deparamos com a roda da fortuna em movimento produzindo abruptamente substancial mudança nas circunstâncias daqueles próximos de nós. Dinheiro vai, dinheiro vem; portas se abrem, oportunidades se criam, conquistas vêm, merecimentos são reconhecidos, empreendimentos ousados ou tímidos dão muito certo, ou muito errado, e cabum - aparentemente da noite para o dia os vemos (ou, realmente, a nós mesmos) de repente com finanças e meios significativamente diferentes daqueles de uma tão recente outrora. As reações, apesar de oscilarem, sobretudo em níveis de efusão e demonstração, costumam ser normalmente as mesmas, e lembram-se umas às outras.

    No caso de um pioramento da situação daqueles próximos de nós, tudo corre fantasticamente bem. Desperta-se em nós o tão belo senso de solidariedade e repetidamente brindamos a nós mesmos como somos excelentes pessoas ao estendermos a mão, sem um momento de hesitação ou segundo pensamento, ao nosso irmão em necessidade. Fazemos todo o possível e o impossível e, sorridentes, asseguramos ao camarada em questão que temos certeza que, fosse o contrário, ele faria o mesmo por nós, igualmente apoiador em sua presteza em ajudar e estar incondicionalmente presente e disponível.

    Ah, se não é realmente admirável o instinto do ser humano em ajudar seu semelhante! Nós somos todos, realmente, um espectro de bondade!

    Se acontece, porém, um melhoramento das condições deles - que venha a cabo e manifeste-se nos mais variados meios - tudo muda de figura. Nosso ‘rígido orgulho’, como brilhantemente ironizou a mais velha das irmãs Brontë, não nos permite entreter o conhecimento e manter a convivência nos mesmos termos de outrora, pois - convencemo-nos que estamos pensando assim - não queremos que o amigo vislumbre, por um momento, a noção de que estamos próximos por querendo ‘aproveitar’ sua condição privilegiada, deixando que ele pague a conta do barzinho, nos dê presentes generosos, nos apresente a importantes contatos para que possamos ascender por meio dele, subir como ele, apenas para depois passá-lo para trás, jogado de lado, na comum vala do esquecimento, terminada toda a amizade.

    Pois, nós somos puríssimos! Somos íntegros demais para sequer cogitar agir dessa abominável forma; somos amigos fiéis, pessoas praticamente incorruptíveis, e a mera possibilidade disso passar pela cabeça de nosso amigo - ou parente, par, enfim - nos ofende e incomoda-nos em nosso brio. Uma salva de palmas à nossa pureza de caráter, ao nosso senso ético dos mais inabaláveis!

    Entretanto, meu leitor, na verdade, o que sucede é que esse rígido orgulho é uma ironia bastarda, soberbamente implicitada por Brontë, uma ficção, um conto dos mais lindos que impercebidamente inventamos para persuadirmo-nos a nós mesmos de nossa mais profunda bondade e humildade. Para persuadirmo-nos, ludibriosamente, que é mentira a mais pura verdade de que ressentimos o sucesso dos outros e mil vezes preferimos estar, sempre, em posição superior a eles. Pois, convenhamos, a verdade é essa. A verdade pura, despida de todo falso pudor e desinfetada de toda demagogia, é que nós ressentimos o sucesso do outro (enquanto de forma alguma dispostos a honestamente admitir sua virtude, admirar sua persistência e mérito na conquista, a seguir seus passos para igual êxito) e nos regozijamos estupendamente com sua desgraça.

    Tanto isso é verdade que nós somos excelentes voluntários - a toda boa ação para o necessitado, mesmo que desconhecido, estamos prontos. E os noticiários são verdadeiros campeões de audiência, nossa parte predileta da decadente programação - eles que são a reunião última de todo exemplar da desgraça humana. Nós nos entupimos de noticiários, sempre ávidos por mais, enchendo os olhos e inundando o ambiente com o infortúnio, a dificuldade e a tragédia alheia.

    Tanto isso é verdade, querido leitor, (eu sei que você me compreende) que nas mais sutis manifestações o percebemos descaradamente: não é fato legítimo e verdadeiro, ainda que lamentável, que quando um nosso colega, por exemplo, passa num belo concurso ou consegue aquela promoção pela qual tanto trabalhou, a nossa congratulação é dada da mais forçada forma, com um sorriso amarelo, um frouxo abraço, ou murcho aperto de mão, com uma voz que denota em seu tom o quanto é insincera, fabricada, a nossa alegria pelo êxito dele.

    Nós, meus amigos, ou a maioria de nós (prefiro pensar que algumas almas por aí salvam-se, são genuinamente diferentes e isentas desse defeito) somos seres invejosos, e sofremos de uma síndrome muito da cínica que é o horror pela inferioridade. Gostamos de sermos olhados com respeito, cumprimentados com reverência, impondo uma aura de valor que muitas vezes nem temos. E, por outro lado, detestamos absolutamente a mera ideia de estarmos, em contrário, na ponta mais baixa de qualquer hierarquia - velada ou palpável.

    É por isso que enchem-se, abarrotam-se, as turmas, por exemplo, de medicina e direito, cursos que no senso comum e na prática social que o segue dão acesso a profissões de prestígio; e por isso são renegadas - esquivadas até da possível consideração de nossos alunos do ensino básico - profissões tão importantes, mas reles e degradadas, como aquela do pedreiro, do padeiro, do professor...

    (Não me odeiem médicos e advogados em formação lendo-me. Não estou falando que a profissão de vocês não é nobre, porque é sim. Estou falando que não nobre é a atitude de muitos para com ela, a sua estigmatização como distintivo social, a retirada de sua virtude para encará-la unicamente sob lógica de mercado e poder.)

    É por isso, também e principalmente, que dos nossos amigos, “coitadinhos”, subitamente desafortunados nos aproximamos incondicionalmente, amparando-os, auxiliando-os, protegendo-os até, de todas as formas possíveis, aguerrida e lealmente, com o maior afinco, a maior das doações. E dos nossos amigos, “grande coisa”, que tornam-se importantes ou vitoriosos, triunfam de alguma maneira, nos distanciamos drasticamente. Não podemos mais estar nos intermédios de sua presença porque, em verdade, não suportamos o seu sucesso.

    Que bicho esquisito não é esse ser humano! Com esse tão grande poder de iludir-se, enganar-se perfeito... E tão imperfeito, tão demasiadamente humano, tão invejoso... Pronto a acusar no outro, mesmo que louco por cometer por si mesmo, o crime da prosperidade.

sábado, 4 de abril de 2015

Contra a escola integral

                                                                   
 
     Eu gosto de fugir do óbvio. Enquanto tantos falam de redução da maioridade penal e de corrupção, proponho que falemos aqui de algo diferente, embora igualmente relevante e intrinsecamente relacionado: a educação. Se tivéssemos uma educação excelente, quem sabe corrupção e crime juvenil não seriam temas que debatemos tão urgente e corriqueiramente.

    Há uma forte tendência, hoje, em favor da escola de tempo integral. Caminhamos a passos razoavelmente largos para uma difusão crescente deste modelo de instituição-ensino que absorve os alunos por um mais comprido correr de relógio, redimindo assim os pais dessa “obrigação”, e da preocupação com “o que os filhos se ocupam” durante as horas em que não estão na escola, ‘estudando’. Não bastasse essa disseminação estar acontecendo efetivamente, parece contar com a aprovação de muitas pessoas.

    Alguns dizem que a escola integral é uma opção admirável porque nela os jovens não têm tempo para ficar à toa, pensando de acordo com aquela velha máxima “cabeça vazia, oficina do diabo”. Outros dizem que ela é uma opção vantajosa porque nela (na maioria dos casos), os jovens têm acesso a diversas atividades - esportes, xadrez, lego, música, robótica, inglês - as quais, de outra forma, os pais teriam que procurar e contratar mesmo, por fora, com um gasto maior e o problema da mobilidade. Outros, ainda, argumentam que a alternativa é não só muito boa, em vários sentidos, como também correta, porque não devemos ficar mimando os nossos filhos, facilitando a vida para eles, dando-lhes tempo, atenção e conforto, sendo que o mundo não lhes dá nada disso, é cruel, exigente e competitivo, e o melhor que os pais têm a fazer é preparar seus filhos para ele, doa o que doer.

    Eu discordo plenamente de tudo isso.

    O primeiro fator que explica minha reserva, meu franco desgosto, em relação à escola integral remete justamente a esse último argumento favorável citado acima: o mundo já é cruel o suficiente sem que precisemos adicionar aí alguma impiedade dos pais para com os filhos. Não é questão de mimá-los, e sim de amá-los e querer para eles a mais feliz juventude possível. Não é questão de cair no extremo mimo, na desmedida proteção, e sim de alcançar um meio termo. Eles têm que criar responsabilidade? Sim, é evidente. E criarão. Criarão aos poucos, com nosso auxílio, nossa orientação, sob nossa tutela e acompanhamento.

    Mas, não vejo cabimento em submetê-los a tamanha pressão, sobrecarga e cobrança enquanto são tão novos. Não há necessidade. Tudo tem seu tempo. Não devemos esperar que crianças de 13, 14 anos lidem com carga horária e volume de deveres e informações semelhante àqueles que alguém de 21, 22 está acostumado. Depois dos 18, tudo aperta mesmo, e chega uma hora em que a vida de cada um está em suas mãos, somente, e não há nada que os pais possam (ou, realmente, devam) fazer para “aliviar” isso. Porém, até lá, é justo que deixemos as crianças serem crianças. A infância é um tempo precioso que passa rápido e não volta jamais, então por que maculá-la e manchá-la ao tentar "adultificar" as crianças, fazê-las crescer cada vez mais (desnecessariamente) cedo?

    Em segundo lugar, creio que mesmo as palavras “vantajosa” e “admirável” aplicadas à escola integral podem ser relativizadas. Quanto a reunir em um pacote só várias atividades, isso é vantagem e conveniência para quem, para os pais ou para os alunos? Para os alunos, certamente que não, pois muito mais beneficia uma criança ou jovem - qualquer pessoa, na verdade - uma diversidade de sociabilidades do que uma concentração delas. Passar prolongado tempo na companhia das mesmíssimas pessoas, no mesmo espaço, pode ser não somente cansativo e difícil como também, em alguns casos, desmotivante e danoso.

    Às vezes, o ambiente não é tão saudável quanto parece, tampouco as convivências são tão profícuas, e expor a criança a tudo isso torna-se até perigoso. E num contexto de escola integral, descobrir que este é o caso é mais difícil, tanto pela demagogia que não raro existe na escola - que também é um negócio e, como tal, naturalmente não deseja perder seus ‘clientes’ - quanto pelo escasso e breve tempo que é passado com qualidade entre pais e filhos. Quero dizer, das 6 às 10 da noite, digamos, todos os dias, pais e filhos, cansados da batida do dia, querendo sossego e descanso, e não mais preocupação, para já prepararem-se para o seguinte... Que espécie de diálogo existe aí? E não é justamente por causa disso - falta de diálogo - que muitas vezes acontecem episódios de auto-mutilação, desordens alimentares, bullying, depressão, sem que os pais saibam, percebam e possam ajudar senão quando já é tarde demais? Passar tempo além da conta fora de casa, longe da família, numa fase em que tanto precisa-se de ambos, pode provar-se bastante negativo.

    Numa escola integral, o aluno não tem tempo para “fazer nada” - de fato não tempo nem para si mesmo. Não pode ficar ocioso ao passo que, em contrapartida, também não consegue ficar produtivamente ocupado em outras coisas. Não é possível para ele, por exemplo, inscrever-se em um clube de escoteiro, de trilha, de poesia; dedicar-se a algo que ele simplesmente gosta, seja a leitura de romances, assistir a um bom seriado. Participar de encontros de jovens em seu entorno, fazer um trabalho voluntário ou estudar uma nova língua - além daquela (não raro, mal e porcamente) oferecida pela escola, que já dominam. Pois, quando chegam em casa, estão tão cansados que não querem devotar seu tempo a mais nada, a não ser ao mais puro e imperturbado descanso.

    Mesmo quando a escola é inquestionavelmente excelente, e o tempo ocupado da forma mais saudável, em todos os sentidos, quem disse que isso é bom? Que passar tanto tempo aplicado, cheio do que fazer, é desejável? Que um pouquinho de ócio não é, também, um investimento, afinal?

    Não é desconhecido o palpite de muitos cientistas de que não vemos tantos gênios hoje quanto antigamente não porque não os temos, mas porque não os deixamos florescer. Temos talvez milhares de gênios em potencial andando pela Terra, mas não os permitimos desenvolver todo esse potencial. Criar é inventar algo que não existia antes, e como alguém pode fazer isso quando passa a maior parte de seu tempo carregado com coisas que lhe são ensinadas por métodos padronizados e sistemas fechados, quando o tempo todo lhe ditamos o que ele deve memorizar e REproduzir?

    Steve Jobs esteve na faculdade por apenas seis meses e largou-a, mais tarde dizendo sobre isso que “desistir foi a melhor coisa que eu fiz. Pude me dedicar a coisas que eu realmente queria fazer”. E pessoas como Mozart (na foto, compondo, em cena do filme Amadeus), por exemplo, só foram quem foram porque tiveram permissão, liberdade e tempo para dedicarem-se intensamente ao seu talento, à sua paixão. Nossos filhos podem ser potenciais artistas soberbos - cozinheiros, pintores, músicos, escritores, inventores - e nós podemos (sem saber, equivocadamente) estar enterrando todo a sua potencialidade, desperdiçando seu talento e sua vocação, ao conduzi-los, por mais e mais tempo, a aprender aquilo que foi convencionado em algum ponto ao longo da história como o que todos devem saber.

  Ou deixamos as nossas cabeças brilhantes abraçarem sua genialidade, ou as corrompemos e diminuímos, fazendo-as acatar e resignadamente seguir as obrigatoriedades do mundo moderno, que, em aparente paradoxo, parece progredir num curioso retrocesso.

    Não me entendam mal, não estou advogando a ninguém que tire seus filhos da escola, do acesso a qualquer educação formal (nem estou dizendo que a universidade é algo ruim, apenas que devemos deixar que as pessoas se descubram, ao invés de dar a elas caminhos forçados). Estou, sim, esclarecendo minhas razões para ter extremo receio quanto ao custo e ao benefício da escola em período integral - ela que, pelo simples fato de acontecer em período integral, mais ainda cerceia as liberdades e capacidades criativas de nossos filhos na medida em que mais coisa ensina-os condicionando-os a um sistema, um sistema de fixas respostas e não de perguntas. Ela que, pelo simples fato de acontecer em período integral, pede mais adulteza dos jovens que o necessário, e reduz a um mínimo muito perigoso o tempo passado desses jovens com sua família, tempo este que - nesta fase da vida, mais do que nunca - precisa ser longo, constante e bom. Como é justo e necessário; como a vida, pouco mais tarde, já não permitirá.
   
    Pessoal, comentem aí embaixo! Gostaria muito de saber se alguém pensa semelhante (ou pensa o contrário) e acho que esse é um assunto - tanto quanto a corrupção e a redução da maioridade - que merece nossa atenção, preocupação, consideração, e tempo de debate. Não é coisa pequena pensar no futuro que queremos para o nosso país, futuro este que só construímos cuidando bem da formação, também a nível pessoal, completa, dos nossos pequenos.
   

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O poder da arte - música ao longe

                                                                 

    Às vezes, topamos com perguntas que nos apertam enquanto nos abraçam. São perguntas como aquelas que tão frequentemente nos fazem as crianças, perguntas que parecem bobas e contudo se mostram as mais profundas e mais difíceis - de imediato percebemos e em posterior concluímos que a elas não temos respostas. Às perguntas mais simples, nós simplesmente não temos respostas.

    Uma dessas perguntas - capciosas ao passo que (parecendo) rústicas - eu me fiz recentemente: por que fazemos arte?

    Eis o mistério da arte. Qual é seu porquê, a sua razão de ser? Por que perdura entre nós o seu apelo e a sua tentação? O que explica seu poder, sua perenidade? É algo a se pensar sobre que, em um mundo tão corrido, nós ainda nos prestemos gratamente a parar o tempo por alguma porção dele para nos dedicarmos a algo tão ‘supérfluo’ quanto a arte. Algo que, paradoxalmente, enquanto tão acessório, é também tão necessário, tão fundamentalmente essencial - aparentemente, nós não podemos viver sem ela, mesmo que, no estrito sentido da palavra, não precisemos dela para viver.

    Pois, meus amigos, uma casa não é ainda uma casa sem a firula do desenho ou a fissura do detalhe? Se desprovida de qualquer incremento sutil que de nada realmente serve senão para agradar os olhos, ou tocar a sensibilidade? Se furtada - ou libertada - de qualquer pequeno encanto, talvez um jardim ou uma graça no gesso, que no fundo só possa prover, além de mais beleza, mais trabalho? Por que, além de projetar uma edificação, em seu esqueleto, um arquiteto também desenha sua decoração e seu corpo, nos mais infimozinhos elementos, de menor e menor instância em termos de necessidade?

    Não se poderia rezar da mesma forma num galpão imenso que numa suntuosa, trabalhosamente pensada e construída catedral?

    Não se poderia vestir da mesma forma um grande pano encapando-nos que um conjunto de roupas escolhidas, particularmente selecionadas?

    Por que enfeita seu bolo o cozinheiro, se poderia deixá-lo simples? Por que borda sua prosa o escritor, se poderia deixá-la mais sóbria, serena, fácil até, por abstêmia?

    Por que passamos - gastamos, desperdiçamos, deixamos escorrer - tanto tempo de nossa vida ocupados com música, essa tão maluca coisa que nada inteligivelmente significa para a grande maioria de nós leigos na sua ciência, que não conseguimos decodificá-la enquanto linguagem, compreendê-la racionalmente, ao passo que, apreciadores da arte, podemos entender o sentido que a move, os sentidos que dela emanam? Por que, meu Deus, deixamo-nos invadir e preencher por horas a fio, talvez meses acumulados ao longo de uma vida, por sons que nada nos ensinam, em nada acrescentam, de nenhuma palpável prática forma nos ajudam a viver, servindo?

    E, nesse pensamento, por que não extingue-se, decreta-se de uma vez o fim daquilo que talvez seja o cúmulo da objetiva inutilidade, o ápice da beleza que nada significa, nada quer significar, e de nada serve - a poesia? Por que vivem e reproduzem-se e sucedem-se, e jamais morrem, os poetas? Esses artistas que torcem, retorcem, distorcem o sentido primeiro das palavras, instituindo a irrelevância última de toda e qualquer tentativa de racional entendimento, a dificuldade hercúlea porque múltipla, perdida de todo o sentido e viúva de qualquer propósito, da interpretação sistemática; esses artesãos - ourives - que criam versos que sustentam, melodiosas sequências que cantam e encantam, organizados ou caotizados, aglomerados ou esparsos, conjuntos de palavras que espaçadamente se derramam e que - em nua e crua e seca análise - não servem para absolutamente nada?

    Porque, meu leitor, eu acredito, nem tudo o que fazemos é prescrito pela ordem da necessidade, pela lei do mínimo esforço ou da comodidade, na apenas visão da utilidade prática, serventia imediata. Nós somos humanos e, como tais, não viemos para apenas existir, e sim para plenamente viver. Cada um dos nossos movimentos não acompanha o passo da produtividade, o aspiro do retorno, o meticuloso deus da produção de cunho básico e vital, e é isso que nos diferencia das máquinas e dos outros animais. Nós vivemos de comes e bebes, e encantos. A todos os sentidos, em todos os tecidos. Nós temos necessidades naturalmente imperativas que devemos suprir, mas não só elas. Temos anseios e desejos e querências além. Temos coração.
                                                                    
                                                              
       

    Desta forma, a força da arte reside na sua condição de fornecedora de uma beleza (des)necessária. E ela tem, assim, um poder imensurável. Porque às vezes, ou quase sempre, muito mais nos faz feliz e satisfaz aquilo que apela à sensibilidade que à inteligência, aquilo que nutre o espírito em detrimento do imediato corpo. Porque tanto perecem de fome e carecem de alimento nossos estômagos quanto nossas almas e nossos corações.

    Momentos roubados de beleza como o pôr do sol ou o suave assobio de um pássaro tentamos reproduzir, e em distinta, humana, mídia mimiografar visto que eles nos encantam. Não raro dão sentido a todo um dia esses instantes pequenos de tão grande, imensa alegria, sensação de plenitude, que se expande, e se escorre.

    A arte se faz precisa e preciosa, exata e complexamente, então, por isso: ela pode ser destrutiva mas também, salva, resgata, nos torna únicos enquanto nos confere uma unidade sã. Quando você coloca em arte - que pode estar numa obra de arquitetura ou música, poesia ou contação de histórias - um sentimento, uma sensação, você a captura, segura, registra, fazendo-a eterna no mesmo instante em que ela se esvai. E ela passa a existir firme e forte e sólida, pois real, não mais somente em você, mas no mundo, para o mundo, doada por você. Você concretiza uma inspiração naturalmente morredoura e a torna inapagável, testemunho de uma existência e de um tênue átimo do belo, monumento próspero para a humanidade e seu passaporte para a idade do sempre.

    Enquanto expressão da identidade de alguém e fonte de identificação e conecto para outro alguém, uma nação, um povo, a arte é importante. Porém, enquanto fotografia e registro de um fugaz instante de beleza - e assim fonte de conforto e sustento -, ela é eterna.

    Posto tudo isso, o papel do artista, todo ele um também escritor, é - como disse Érico Veríssimo - segurar a luz. Insistir na vela contra a força da escuridão, fornecer a graça e o calor num ambiente que talvez seria doutra forma muito sério, muito triste, muito frio. O artista tem mais que um dom, mais que uma vocação - uma missão, um encargo de responsabilidade maior. Ao mesmo tempo que deleitando outros com o que produz, a produção da sua arte o deleita, e ele se torna, portanto, nos dois processos, um ser de luz. Enquanto se torna mais belo e é mais feliz, ele transforma o mundo, também, em um lugar mais belo e mais feliz.                                                                                                    
      O poder da arte é - bem provocou o mesmo escritor, em seu livro - como “Música ao longe”. Em uma serenata, ou numa peça de teatro, é a harmonia de fundo que complementa e completa e alicerça a melodia de vozes protagonistas que fazem a sua apresentação. A encenação, a homenagem, como a vida, até pode passar sem ela, mas com ela enriquece-se, engrandece-se, melhor agrada, mais profundamente toca, eterniza-se. Marca-se e marca.
  
    Nós fazemos arte então - depois de tanta volta e volteio, eu tento enfim responder - porque do modo mais bonito e fértil de todos ela é, sim, útil e extremamente necessária. Nós nos deixamos mover muito mais por aquilo que nos comove, e assim a arte é um combustível de vida, um motor poderoso da engrenagem complicada de viver. Condutora de energia, não só, mas de beleza. Uma beleza necessária. Música ao longe.