quarta-feira, 14 de junho de 2017

A ditadura da obrigação

                                       


  Tem muita gente que se fere, se encarcera, se mutila, se encorcunda com o peso da obrigação que coloca sobre si mesmo. E esse tipo de dano, o autoinflingido, é o mais delicado. Enfermidade de mais difícil cura, hábito de mais difícil abandono. E o tipo de dano seu derivado, partido de um motivo imaginário para uma punição real, é o que mais nefastas cicatrizes deixa.

    Obrigação é palavra dura que nos sai da boca com maciez excessiva, dolorosamente leve. Obrigação. Briga. Ação. Ação de brigar. Obrigar. Ação de força. Por que é que achamos bonito dizer que temos muitas obrigações? Por que exibimos a lista dela como troféu de exuberante beleza, conquistado com graça e mérito?
   
    Creio que por duas razões. A primeira, de raiz; a segunda, de seiva.

    Originalmente, no latim “trabalho” significava tortura. Sim, a palavra que usamos para designar a ocupação-mor de nossas vidas; a tarefa remunerada ou não que designa nosso lugar econômico e social no mundo e modela nossa personalidade; a realidade que usamos como aposto ao dizer quem somos... Significa, em sua raiz, tortura. Aquilo que machuca, que violenta, que molesta. Que dói e deixa marcas. Não é grande salto, portanto, dizer que a concepção primeira e mais tradicional que cultivamos acerca do trabalho é a pior possível. E hoje, por mais pulverizado que esteja em seus cenários de ocorrência - público ou doméstico, em horário integral, parcial, flexível -, por mais espertos que estejamos em perceber que podemos sair desse casulo... Ainda não o superamos, de todo. Seguimos com a raiz do trabalho obrigado bem fundo no pensamento.
   
    O segundo fator que creio poder explicar nosso prazer masoquista em inventariar obrigações é menos clássico, menos etimológico, mas não menos profundo. Quando o capitalismo começou sua ascensão ao trono do mundo, precisou fazer germinar nas pessoas o culto pelo trabalho, pela ocupação produtiva. Pois, anteriormente a esse reinado, as horas gastavam-se com mais despreocupança, mais folga. Mais festas e rituais, mais reza, mais sossego. O trabalho não necessariamente estava vinculado ao dinheiro, mas ao atendimento direto de necessidades, e muitos dos “produtos” cultivados não demandavam em seu processo produtivo a ideologia da disciplina, do controle, da chibata horária, do arreio da obrigação.
   
    Desde a consolidação dessa dinastia, contudo (que já há algum tempo felizmente passa por problemas escabrosos) passamos a acatar seus ditames, considerando deselegante a antes tão normal ação do nada. A inação. A ante-ação. O ócio.

    Tanto que ócio desusou-se, preferido por vagabundagem. Seu correlato, vagabundo, é palavra com que enchemos a boca para maldizer alguém, muito desvirtuado, mal exemplo. A situação é tão áspera que, por pouquinho montante de tempo que roubamos das obrigações para dar-nos de presente e carinho a nós mesmos... já nos vem a dona culpa assediar-nos, sussurrando a mortal ofensa... “vagabundo!”

    A situação é tão ingrata, descarinhosa e burra que ficamos competindo entre nós, a ver que ganha o campeonato da obrigação, possui maior coleção dela, e dela extrai maior sofrimento. O choramingo pelo tanto que se tem a fazer, o quão árdua é a empreitada, quão supremo seu poder de sugar todo o ser de sua energia, vida, tempo e alegria... Tornou-se quase extensão do cumprimento diário entre muitas pessoas. E o contrário, dizer-se alegre, manejando seus afazeres sem dor, concluindo tarefas com gosto, e talvez sobra de tempo, pela boa administração dele... É o sacrilégio. É feio, de mau gosto. Uma afronta. Coisa de vagabundo.
   
    Há que se revoltar, minha gente, contra o protocolo da obrigação, o receituário de sofrimento que prescrevemos a nós mesmos e aos outros estupidamente. Há que vedar os lábios para impedir o mal uso desta palavra dura, pesada, vultosa, indigesta. Há de usá-la com ciência e parcimônia... Há de... Desobrigar-se um pouco, e desobrigar o outro também. Mas por vontade e consciência, é claro, não por obrigação.

Obra: Saturada. Gabriela Lemos. 2017

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Futebol de moleca e lição de (semi)adulta: a economia das emoções

                                                         
  
   Quando era eu jovenzinha, ou talvez nem tanto, apenas um pouco mais que agora, mamãe me cercava com olhos assombrados, coração buliçoso a palpitar no apelo de voz inteira. Ia eu futebolearme, entre outros deportes mais, e ela se preocupava. Por que vai com tanta gana? Vai se machucar desse jeito! E pode ser feio! A violência do meu ritmo, da minha entrega, lhe assustava. 

      Eu corria, trombava, dividia, passava, corria mais muito, entrava com tudo e saía com não menos que isso. Minhas energias estavam doadas, mas não me eram exauridas. Eu não tinha mesmo limites. E tampouco medo. Adentrava-me de corpo inteiro em qualquer jogo, qualquer campeonato, qualquer treino. Se não fosse para ser assim, de modo nenhum seria. E não era por cálculo: a ele desde sempre pareço não conseguir me amigar. Eu sou assim. E nunca quebrei um sequer dedo no ginásio. Mamãe não precisava se preocupar.

      Na quadra da vida, os quinhentos são outros. Ou, aliás, eles também nem tão outros, talvez agora somente um pouco diferentes de então. Ainda sou incapaz de cálculo ou parcimônia de energia. Mas não sou incapaz de sentir cansaço, nem herdei do esporte à vida a blindagem que me escudou (milagrosamente) de lesões. A entrega não se amenizou, leal ao que deve ser minha selvagem natureza, mas os machucados vieram. E suas quelóides, casquinhas e ardências trazem-me a estas palavras.

       Elas, que, porém, não se tratam com ou de lamentos. São pensares de forma e cores neutrais, espelhadas apenas a enxergar e reconhecer o que refletem. Sem a isso esquivarem olhar ou esboçarem careta.

      Eu sou assim. Ligeira a envolver-me no calor da emoção. Destreinada em poupar-me a um tempo seguinte, uma partida talvez mais oportuna e mais decisiva. E isso tanto me torna mais suscetível a danos quanto a memórias mil. Quem vive sem intensidade, eu suspeito, não produz viva lembrança. Quem não lembra rara vez de fato viveu. Ou viveu com frequência e constância uma vida lamentavelmente rarefeita. Aguada. Insossa.

      Quem não se lembra tampouco aprende. E, ah, eu me lembrarei! Muito já me marca, atestando-me intensa vivente e intensa aprendiz. Nem que quisesse conseguiria fugir do que já me foi absorvido pela esponja aluna da alma. Da consciência, agora tímida mas em sólida formação, de que certos princípios regem a economia das emoções. E violá-los causa crise custosa de vencer e austeridade desnecessária de enfrentar.

      Por exemplo, só se gasta sem limites se a reposição é pronta e igualmente contínua. Como quando eu era jovenzinha a esportear. Do contrário, cabe dispêndio sábio. Cabe avaliação de riscos. Se o risco é alto demais, e a incerteza do início ainda não deu a aprovação confiável do tempo, não é de mau gosto investir com cautela e resguardo. A intensidade não precisa atenuar-se ou esmaecer-se. Só é preciso levar em alta conta e com respeito o montante a ser tomado da receita da entrega.

      Por outro exemplo, tanto é mais saudável a transação quanto mais simétricos são os valores e as quantias envolvidas. É incomum bom e longevo resultado de relação entre partes muito distintas. É inusitado o sucesso de ligação em que a prosperidade, o crescimento - de si, do outro e de ambos - não é prioridade fundamental e igualmente considerada do empreendimento. E ainda mais singular um superávit emotivo entre lados que investem quantidades e profundidades muito díspares na construção de seu nós.

        Nossa energia é bem valioso demais para ser dissipado na imprudência, no descuido, na simples falta de uma equilibrada avaliação da situação, de perspectiva coerente do que se vive. Se do cálculo ainda me acerco com distância, a balança consigo manejar com mais crença, e mais ciência. Creio estar agora pesando o gasto das minhas emoções e entregas, avaliando o quanto elas valem e do quanto delas posso me desprender. Com o fim de tê-la o mais sempre possível num emocional favorável.

      Enfim, mamãe não precisa se preocupar. Aos poucos, a gente aprende. Estou aprendendo. Viver é como jogar bola: na arena, o coração bate forte, o corpo e a alma se envolvem, a gente se expõe a emoções de todo tipo e toda intensidade. A vitória alegra e recompensa, o empate acinzenta, a derrota frustra e entristece. A lesão dói. Mas logo sara. E o que a gente guarda é fruto da inteireza, da vivacidade, da entrega com que estivemos em quadra.

    O pior que pode acontecer são as trombadas estrondosas no meio do caminho. E mesmo da fratura a gente se recupera. Pra voltar a jogar como antes. Ou, com alguma sensatez e boa lição de economia, muito melhor que.