quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Veraneios de inverno

                                                               

    Na linguagem corriqueira aspirante a lírica que alguns de nós mobilizamos em nossa comunicação, há algumas saudáveis batalhas poéticas. Numa delas, o verão costumou imperar majestosamente sobre o inverno.

    Pois, o verão é o tempo onde mora o sorriso da alma, aberta, colorida, brilhante, saliente, regada pela generosidade abundante do sol, encarnação de calor e luz. O inverno, por seu turno, é o tempo em que nossa existência contrai-se, envolta em si mesma para suprir-se de energia, desencorajada pela curteza do dia que logo desemboca em noite fria, pela preguiça das carnes que aninham-se em cobertores e até da língua que acanha-se na boca fechada ao vento, ao sereno, à conversa.

    É justamente partindo dessas conotações que reúno aqui alguns esparsos sabores de verão - alegria e delícia - que vivemos nas temporadas invernais.
   
    No verão, as frutas, com suas cores e seus sumos, correm a compor as linhas de frente de nossas cozinhas e comidas. No inverno, de fato, parece que nossos preparos aproximam-se de tons mais sóbrios, de cores mais amenas e menos variadas. O leite, o café e o chá, especialmente aqueles bufando de calentura, substituem os sucos. Acompanham também aquela canjica, de vez em quando o mingau.

    No verão, mesmo a largura das luzes não parece suficiente para comportar tudo o que podemos fazer, os passeios, os exercícios, os amigos, as fotos. No inverno, o tempo - das horas - parece ser nosso bom amigo no enfrentamento do tempo - da temperatura. Ele convida-nos a mais permissões, à leitura alongada na cadeira balançante de vó sob umas cobertas, ao filme ou a coleção deles que havíamos listado como projetos futuros, àquele famoso pôr-em-dia com a família ou os amigos em torno de um aconchegante caldo.

    No verão, que abaixa a autoestima da maioria de nós, imperfeitos mortais, à medida que o sol levanta e nos despe, existe uma comparação mais evidente entre os corpos, a invasão daquele olhar que não se deseja mas não se pode vendar, nem educar. No inverno, por outro lado, sentimo-nos desobrigados da perfeição, mais despreocupados com nossos corpos, cobertos pela elegância das compostas roupas de frio, mais à vontade para adornarem a matéria que de todos modos cumpre sua função, apenas, de morada da alma.

    No verão, é verdade, nossa saúde em geral vigora e robustece, mas no inverno, gozamos da atenção especial daqueles que amamos quando estamos enfermados. E até existe certo charme em certo tipo de tosse, no pulmão ligeiramente obstruído com as impurezas da vida e carente de uma limpeza, nas bochechas arroseadas pelas queimadura de frio que envolve a nós todos numa aura pálida, apreciável à moda romântica.

    No verão, a cama desespera e sua, o sono custa, o banho apenas alivia. No inverno, a cama convida, delicia, o sono acolhe e deleita, como colo de mãe, e a sensação da água quente a massagear o corpo depois do labor e antes do descanso nos ativa uma alegria infantil qual doce roubado, no atrevido da hora errada.

    No verão, a brasa do sol nos amorena, enforna a casa, enublece o pensamento - tanto que o estudo, para muitos, é mais amigo do frio, nele floresce com mais saúde. No inverno, vemos a incomparável beleza das frestas de sol derramando-se casa adentro e nós adentro, das fatias de calor a tocarem nossos corpos quando as procuramos pelos cômodos, e ficamos a aproveitá-las quase tal cachorros felizes - com os olhos fechados, a cabeça para trás, o coração quente.

    Agora que ele já começa a ceder sua friagem para um ventinho mais morno, que já não nos chicoteia mais com sua frieza junina, saudemos o inverno com reverência e gratidão. Tentemos apreciar os veraneios de seu tempo frio, que apesar dos pesares e das dores nos ossos, tem lá sua graça, sua beleza, sua poesia.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Apontamentos sobre a experiência

                                                                    
                                                     
   Há alguns dias, tive uma conversa luminosa com um desconhecido. Pareço ser dotada de uma poderosa propensão a intercâmbios inusitados com as pessoas. Depois daquela ante-sala típica da conversa, o frio do tempo e a calentura do ônibus bem abastecido, ele espontaneamente começou a contar sobre os percalços e as peripécias de sua vida amorosa. De repente, diante de mim, dialogando mais consigo mesmo que comigo, decretou com a voz e o dedo em riste o lema que regeria suas escolhas afetivas a partir de então. “Não ficarei mais com alguém que nunca ficou com outro alguém além de mim. Não quero mais ser o primeiro namorado de ninguém”.
   
    A princípio, surgiu-me o ímpeto de retrucar em contrário. “Mas, meu caro, não seja tão taxativo! Assim, além de se imunizar contra a dor, pode acabar dispensando de antemão também muito amor, e muito amor saudável. O fato de um punhado de moçoilas inexperientes terem-no machucado sobremaneira não determina necessariamente que toda aquela inexperiente venha a machucá-lo assim.” Porém, uma mão invisível de sabedoria tapou minha boca. Calei-me. Segui escutando o rapaz falador. Foi o melhor que eu poderia ter feito.
   
    Aos poucos, consegui entendê-lo e, senão concordar com ele em sua cláusula proibitiva, não discordar do receio que o movia a decretá-la. O que ele queria dizer era: pessoas inexperientes não têm parâmetros, não têm riqueza de análise. E isso move-as muitas vezes a decisões mal pesadas que prejudicam a si próprias e ferem os outros.
   
    Ele não está enganado. Uma criança tem seu coração partido e dolorosamente marcado por coisas que nos parecem escabrosamente pequenas. Isso acontece porque elas identificam sua vida com muita intensidade a aquele momento singular, já que não conhecem ainda uma existência longeva, como a sucessão, ou a conjunção, de numerosos e variados momentos, cada um dos quais, em si mesmo, não significa o todo.
   
    Uma pessoa que tem rarefeita leitura não é a mais indicada para aconselhar alguém entregue a escrita de um livro. Seus olhos leitores são virgens demais, os fundamentos nos quais ela basearia sua avaliação são ocos, carentes de substância e vigor. Ela não pode fazer coerente crítica porque não tem referências para isso. Não saberá identificar se os personagens são planos ou redondos, se o enredo é complexo ou simplório, se a narrativa é encadeada de maneira inteligente, eficaz, intrigante ou apenas inodoramente linear simplesmente porque não as viu antes. Não está munida de elementos aos quais comparar a realidade presente e melhor, com mais justeza adjetivá-los.
       
    O mesmo ocorre com tudo, todo o resto na vida, inclusive com o mais importante: os contatos humanos que travamos. De fato, uma pessoa em seu primeiro relacionamento está num laboratório amoroso e, dependendo do grau de sua vocação à persistência, tende a abandonar o experimento com o primeiro fracasso. Ela pode tomar por comum uma grande virtude, naturalizar um traço generoso e gentil do parceiro que fertiliza saudavelmente o relacionamento, porque se acostumou a ele. Em sua única experiência, ela não sabe valorar sua raridade.

    Por outro lado, quando algo vai mal, ou frente a uma imperfeição de seu par, uma ruga mais saliente e incômoda em sua personalidade, a pessoa inexperiente pode não conseguir mensurar como aquilo é comum. Inevitavelmente geral. Enquadra a coletividade do defeito, da pedra no caminho, naquela individualidade, no relacionamento específico em que está. E assim, abre mão do que tem ignorante de que o que lhe incomoda ali ou o mau momento por que passa poderá estar presente em todos os outros, talvez inclusive mais agudamente.

    Não pretendo com este comentário instigar você que me lê a vetar pessoas inexperientes da possibilidade de pleitearem seu coração. Tenciono alertar seus olhos e os meus para a importância da experiência e experimentação, do acúmulo de vivências, para nos tornarmos pessoas com mais larga visão, percepção e apurado julgamento.

    Se quer ser bom escritor, leia muitos livros. Se quer ser bom professor, participe ativamente de muitas aulas. Se quer ser bom cozinheiro, prove muitos sabores. Se quer ser bom músico, empazine seus ouvidos. Se quer ser poeta, trate de nutrir-se poeticamente, sem moderação. Se quer se tornar um bom amante, ame; e um bom vivente, viva. Relacione-se. Amar se aprende amando, já disse Drummond, e viver se aprende vivendo.

    Abasteça seu olhar, sua escuta, seu tato, sua sensibilidade de referências e jamais sedentarize-se no exercício da aquisição delas.

    Inclusive, preste atenção às figuras aparentemente excêntricas ou quase insuportavelmente comuns perto de você que porventura te abordem para colóquio inesperado no transporte público. Elas podem agregar e muito na sua governança da própria vida. Gerar um sorriso, uma reflexao, um textinho...