quarta-feira, 25 de março de 2015

Admirável mundo novo - saindo de casa

                                                                    

                                                     
    Recentemente, ouvi um ridículo debate entre duas mães quanto a se era devido cobrar aluguel dos filhos com mais de 30 anos que retornavam à casa da família - ou que de fato de lá jamais saíram. Elas estavam rindo de fulano ou ciclano, seus conhecidos, que com 30 e poucos anos ainda moram na casa dos pais e desses pais, que os ‘aguentam’ dentro de casa e não os põem para correr, mesmo sabendo que eles são financeiramente independentes e têm plenos meios de morarem sozinhos, viverem por conta própria. Também comentavam do panorama geral da questão “filhos saindo de casa”, e como essa saída tem se dado cada vez mais tarde - coisa que é muito errada e lamentável na visão delas. Enquanto ouvindo, eu me segurava para não responder e sair com as duas no arranco. Alto lá, minhas senhoras, nem tudo é bem assim como estão pintando.

    Eu acho que há dois quadros bem distintos para serem analisados nessa questão. Um é o quadro da turma dos ‘nem-nem’, nem trabalha nem estuda, e conclui o ensino básico (ou, muitas vezes, nem ele) apenas para iniciar uma vida de escandalosa ociosidade, tocando dias sem propósito nem perspectiva. Nesse caso, a meu ver, é sim absurda a conivência dos pais - se ela existir. Nesse caso, sim, eles devem dizer “Meu filho, eu não vou deixar que você viva desse jeito, porque não é certo, e eu não sou eterno. Você trate de levantar desse sofá e estudar, ou trabalhar, ou os dois” e, se necessário, incentivarem-nos a sair de casa, indo até onde a oportunidade está. Nesse caso, sim, não se pode tapar o sol com a peneira para a existência de um problema, pois chega-se um ponto em que os pais não podem mais dar o peixe, devem ensinar o filho a pescar. Um ponto em que deixá-los no conforto da casa e da dependência, em vários sentidos, é não só incentivar um parasitismo exploratório sem cabimento como ajudar a atá-los a uma mesmice perigosa, falhando na sua missão de responsáveis pais no sentido de auxiliar o filho a construir-se, construir a própria vida, dar o final salto na transição da juventude para a idade adulta, e atingir sua plena maturidade.

    Em contrapartida, um outro quadro bem distinto - e é esse sobre o qual me proponho a discutir hoje, no viés do qual eu preciso discordar das duas senhoras maldosas - é aquele das pessoas que vivem todo esse processo enquanto residindo com os pais. Pessoas que acabam de cortar o cordão umbilical e amadurecem-se, que correm atrás das próprias conquistas e constroem a sua independência junto com os pais, inclusive estando sob o mesmo teto deles. Condenar esse tipo de situação e lamentar as mudanças que realmente vêm ocorrendo e retardando “o dia em que eu saí de casa e minha mãe me disse ‘filho, vem cá’...” é, para mim, uma atitude que se baseia numa leitura anacrônica do mundo.

    Anacrônica porque não é como se o mundo fosse o mesmo de vinte anos atrás, e todas essas graduais mudanças, então, absolutamente incompreensíveis por análise de contextos e externos fatores. Não é como se fosse, em mais profundo exame, perfeitamente absurdo esse cenário para com o tempo em que vivemos. O mundo mudou, e não podemos ignorar esse fato.

    Pois, antigamente, as pessoas saíam de casa (da casa dos pais) diretamente para formar a sua. Estabeleciam sua própria casa, adentravam e se integravam a uma vizinhança que passava a fazer parte de sua vida. As pessoas se conheciam quando morando na mesma rua, ou no mesmo bairro; bons amigos e compadres e comadres se faziam por convivência desta forma. Encontravam-se também já que seus filhos frequentavam a mesma escola, e, esperando-os sair, conversavam. Batiam na casa uns dos outros para conversar, jogar fofoca ou futrica fora, assistir o último capítulo da novela, pedir para usar o telefone (que nem todo mundo tinha) ou pegar uma xícara de farinha que faltou para o bolo que se estava fazendo. As pessoas deixavam o seu nascedouro para construir aquele de seus filhos, deixavam a casa da família de seus pais para constituir a sua própria. A maioria das pessoas se casava cedo, se mudava para um lugar novo - ou nem tão novo assim - onde fazia novos amigos, tinha próximos conhecidos. Logo vinham os filhos, os amigos de seus filhos, a brincadeira e as artes de seus filhos, os namorados de seus filhos, os netos... Que preenchiam o espaço e o ambiente, deixando-o agitado e cheio de vida. A casa nunca estava vazia (realmente nunca), e silêncio prolongado raramente se fazia. Era fácil sentir-se confortado, e mesmo cansado, com as tantas vozes em volta, e era difícil estar sozinho.

    Hoje, em contrário, a solidão é uma das armadilhas que não raro vêm com a independência, ou o construir dela. A maioria das pessoas deixa o seio de suas famílias para ter que viver somente e apenas com o seu, por vezes apertado, por vezes ainda incapaz de lidar com todo o novo que chega, e o velho que se perde. Vai morar onde a oportunidade está, em um lugar maior, a cidade grande - entre cuja multidão, a solidão é, frequentemente, a única companhia. Talvez vão morar em prédios, onde talvez contam com dezenas de vizinhos, pessoas com quem compartilham o endereço, mas entre as quais não conhecem nenhum. A maior das interações, quando ela existe, é a casual conversa de elevador “Bom dia, tudo bem?” “Tudo bem” “Como está quente hoje, né?” “Pois é, o calor castiga” e o vazio que isso traz, a carência, é enorme. A superficialidade das relações, sua repetitiva e frustrante abundância, chega a ser desesperante, e o silêncio dos corredores, enlouquecedor. Cada um entra em sua jaula voluntária e segura, o apartamento e, no virar da chave, aparta-se dos outros, realmente.

    Amiúde, paga-se uma academia porque não se sente seguro em exercitar-se ao ar livre, cidade afora, e se entra no estabelecimento - mais uma vez, um aglomerado de paredes, um cercado de tijolos e silêncio e isolamento - apenas para nele estar, todo o tempo, e dele sair, com o fone no ouvido, sem interagir com ninguém, ou interagindo com poucas pessoas - as poucas que, igualmente, permitem essa abertura. Na academia, ou no prédio, é difícil fazer amizades, ou permitir-se proximidades, também, porque você não sabe em quem confiar. E assim, você dirá bom dia, repetidamente, para pessoas que jamais conhecerá. Hoje, infelizmente, vivemos num mundo em que felicidade enorme e extraordinária é estar num lugar qualquer, rodeado de pessoas, e não sentir medo.

    Portanto, é um erro achar absurda a maior e mais longa ligação dos filhos com os pais, e com a casa dos pais. Afinal, quem - em uma circunstância que o permita - voluntária e alegremente trocaria um lugar onde se tem colo e segurança, onde se é amado e é importante, para um em que não se conhece ninguém, e provavelmente em profundo poucos conhecerá, um mundo que é hostil e competitivo e cruel, no qual dezenas de milhares de outras pessoas querem um seu lugar tanto quanto você; um mundo no qual, dessa forma, a sua vida - ou com efeito, a sua morte - não faz a menor diferença, vez que é só mais uma? Quem deixaria o afago e o aconchego, o conforto e a delícia que é estar em meio às pessoas que mais lhe querem bem, para um lugar em que as pessoas nem lhe querem bem, nem mal, mas simplesmente não lhe querem?

    À vista de tudo isso, eu concluo, as duas senhoras deviam reconsiderar suas palavras. Não podemos tentar entender o mundo de hoje através dos valores de ontem. Não podemos esperar que as realidades das pessoas de épocas diferentes se equivalham, quando é claro que, com o tempo, as circunstâncias e as estruturas do mundo em seu redor mudam, pedindo consigo, necessariamente, ajustes de comportamento e vivência que o acompanhem. Tampouco, acredito, podemos julgar pessoas e situações arbitrariamente, sem compaixão, com o olhar e a tranquilidade que caracterizam a visão de quem se está ‘de fora’, e observa sem viver o gostoso e o difícil, as alegrias e as complicações daquilo que o outro vive, e somente esse outro sabe descrever ao certo. Se os filhos de seus conhecidos vivem na casa deles, e todos ali dentro estão felizes assim, vivem bem com isso, então, por favor, minhas senhoras, os deixem em paz, sem lhes prestar o desfavor de suas línguas batendo em maldoso deboche. Como bem disse Caetano, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
  

quarta-feira, 18 de março de 2015

A primeira impressão não é a que fica

                                                                

  Eu adoro ditos populares. Tenho verdadeira fissura por essas frases marcantes cheias de sabedoria que vira e mexe nos vemos em situações em que podemos encaixadinhamente aplicá-las. “Evita dever que pagar é certo”, por exemplo, é uma paráfrase inteligente da dicotomia mais antiga que existe, do plantar e colher; e “quem vê cara não vê coração” diz inteligentemente como as pessoas podem nos enganar, e nossos sentidos e nossas sensibilidades errarem enquanto avaliando-as.  
                              
    Pois é, mas hoje não estou aqui para discorrer sobre meus favoritos -  o que é muito bom e conveniente, ou o texto não mais acabaria. Estou aqui para falar de um que muito me aborrece, do qual eu aguerridamente discordo. “A primeira impressão é a que fica”. Nunca vi ditado mais equivocado. Antes de comentar por que eu não concordo com ele, vou contar o que me aconteceu para eu começar a questioná-lo. Afinal, que argumento melhor que o exemplo?

    Uma acontecença chave foi ligada a um tal Joaquim Maria Machado de Assis, nosso excelentíssimo ‘Bruxo do Cosme Velho’. Como ocorre com a maioria das pessoas, meu primeiro contato com a sua brilhantez foi na escola, nos saudosos anos de ensino médio (nossa, estou falando como se tivesse sido há anos...). Aconteceu que, como a maioria das leituras obrigatórias, essa foi extremamente desprazerosa, e eu não enxerguei sua brilhantez, não estive imparcial e aberta o suficiente para me permitir enxergá-la. Vi tremendos defeitos no livro, D Casmurro, xinguei Machado e a baba inexplicável de tantas pessoas por suas palavras difíceis e sua narrativa excruciante de lenta e picotada que nada tinha a dizer de especial. Ah, que vergonha de ter pensado assim.

    Aí, nessa vida engraçada de meu Deus e as pulgas que a gente leva, no fim do mesmíssimo ensino médio, aconteci pegar outro livro do mesmíssimo detestado autor. (Abençoadas sejam as provas de vestibular, que muito nos servem ao nos reapresentar a mestres como meu amado Machado). Da generosa lista que devíamos ler, meu apurado senso de dever me fez ler todos, e o primeirão acabou sendo um que eu não esperava ler jamais, que tinha um olho pintado na lombada que - eu juro - piscou para mim me chamando. “Vem cá, docinho, pode me pegar. Quem desdenha quer comprar, eu sei que você está me querendo, eu sei. Anda, me pega. Pode devorar-me” Era Brás Cubas.

    Machado me provou por a com b, Helena, Brás Cubas e Iaiá Garcia que ele é uma luz maior entre as nossas letras, e que não faz mal dar nova chance àqueles que em princípio mais nos decepcionam, ou menos nos impressionam. Ele me mostrou, com seu jeito deliciosamente fluminense, que prosa muito boa também pode ser aquela mais elaborada, para ser curtida aos pouquinhos, devagarinho, entre as palavras - simples ou não - pedindo afinado exame, por ocultando, emaranhados, pensamentos de fina sabedoria.

    Primeira impressão? Eu, detestava Machado de Assis? Que é isso, colega, você está me confundindo com alguém. Ele está no topo entre os meus preferidos!

    Uma segunda determinante acontecença relacionou-se justamente à sua casa. Não sei como vocês se relacionam com seus admirados, mas eu passo a me interessar por tudo a eles ligado, inclusive tempo e espaço. Enquanto o dinheiro não sobra para me levar à Rússia, por Tolstoi, ou à Inglaterra, onde as irmãs Brontë e a singular Austen viveram, o Rio do Bruxo é uma  opção. Fora outro fator: já que Minas não tem mar, a gente vai para o Rio.

    Depois de muito sonhar, entretanto, foi meu trabalho que me levou finalmente. Se tem algum historiador por acaso lendo-me, ele sabe que há certos arquivos que só podem ser consultados lá, certos serviços que só nos podem ser prestados na antiga capital da República e corte do Império, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Fazer o quê, tive que ir.

    Cheguei, toda serelepe - mentira, estava morrendo de medo, assustada com a cidade, eu era metade ansiedade e expectativa, metade absoluto terror - apenas para descobrir que o departamento que me ajudaria estava fechado, de greve...

    Passei pelos estados básicos da grande frustração. Primeiro, a completa incredulidade, a ficha que não cai, a crente descrença. Segundo, o desânimo, o abalo sísmico em seu espírito, o suspiro e a vontade de chorar. Terceiro, a raiva, a tremenda e borbulhante raiva que em revolução vulcânica ameaça para todo o lado e em qualquer pobre porventura próxima alma explodir.

    Vi defeito em tudo, no que via, no que não via. Que lugar horrível de quente! O carioca é maluco, todo mundo de blusa enquanto eu quase evaporando de tanto transpirar (eu esquecendo que sou da serra). E, meu Deus, mas que cidade feia! De onde tiraram que é cidade maravilhosa? É horrorosa, isso sim! O que mesmo eu vim fazer nesse lugar? Onde estava com a cabeça quando vim? Olha onde eu fui me enfiar! Ah, se arrependimento matasse...

    Se arrependimento matasse, toda gente se mataria por ele, apenas para depois se arrepender de ter morrido - ao invés de ter dado uma chance à vida, poder consertar o mal feito realizado, aprender com a (in)utilidade dele, curtir o Rio de Janeiro...

    Depois de mais de uma hora zanzando completamente desorientada, cheguei à conclusão de que a melhor opção que eu tinha, já que tinha batido aquela estrada toda mesmo, estava ali, e o dia estava lindo, era tentar aproveitá-lo, aproveitar o Rio, aproveitar... o mar! Eu visitei o mar, que coisa mais linda ele é, azul! É claro que eu não tinha os trajes específicos comigo, tendo ido inteiramente à trabalho, mas ah, quem se importa em molhar a barra da calça com a cosquinha do mar? Fui a vários lugares históricos do Rio de Janeiro, à famosa Ouvidor, à praia Vermelha na Urca, onde esta beleza de foto acidental aí ao lado me foi tirada... Eu sei que acabei sendo tão feliz nesse dia, fiquei tão encantada... Hoje, se você me perguntar passagem para onde me deixa mais feliz, eu não titubeio na resposta. O Rio me cativou.

    Primeira impressão? Quem foi que estava detestando a cidade horrorosa, morrendo de medo? Eu não, gente, que é isso? O Rio é lindo...

    Por tudo isso, e mais um monte de pouco que não convém agora contar e encumpridar mais esse texto, eu preciso criticar o dito da perdurante validade da primeira impressão. A primeira impressão, eu penso, normalmente não é a que fica, e nem é, naturalmente, a que deve ficar.

    A primeira impressão é uma farsa a que nos atemos quando não queremos ver além, viver além, amar além. A primeira impressão é uma pobreza temporária pela qual passamos no caminho à última, a sábia e mais correta síntese. É uma turbulência necessária, talvez marcante, em qualquer experiência em seu início, quando tentando e querendo reparar e absorver tanta nova coisa, não paramos para de fato reparar em nada, e desse nada absorvemos somente a pobre primeira perninha do ‘n’.

    A primeira impressão é, pois, apenas a primeira de muitas que virão.
                                                                 

quarta-feira, 11 de março de 2015

Ser mulher hoje - mulher e modernidade

                                                                  
   
   Acho que já deu para perceber que eu viajo bastante nos tempos de ontem, e critico várias facetas dos tempos de hoje. Vivo suspirando em filmes de época e quem me conhece sabe que uma das linhas que eu mais falo é “em 1900 e antigamente,...” deixando um quase visível rastro de sonhador saudosismo no ar. Mas, se há um ponto no qual preciso render-me às maravilhas da modernidade, é sua relação com as mulheres - existir no modo feminino do verbo hoje é bem mais fácil e menos doloroso do que era no passado.

    Não vivemos um mundo igual, ou justo, é verdade. Nossos salários são bem menores que os dos homens, em vários setores; sofremos preconceito e discriminação em muitas áreas de conhecimento e atuação burramente naturalizadas com de domínio masculino, nas quais alguns deles insistem em achar que não damos conta do recado como eles dão, quando, muitas vezes, fazemos melhor. Nossa jornada é tripla àquela deles, para um reconhecimento que não chega ao terço.

    Se um homem sabe impor sua autoridade, ele é dito um bom líder; se uma mulher faz o mesmo, ela é mandona. As cobranças sobre nós são cruéis, e as expectativas, torturantes: temos que ter corpo perfeito, trabalho importante, sucesso no trabalho, sermos mães e esposas e filhas impecáveis. Estamos sujeitas à todo tipo de violência, abuso, escárnio e menosprezo. Temos que aturar - todos os dias, quer seja no trabalho, ou caminhando no parque da cidade - ridículas piadas machistas, sujos comportamentos sexistas. Temos que aturar comerciais nocivos e nojentos, com nossos corpos transformados em objetos de apelo sexual, associados à cultura de poder e dominação quase sempre do lado submisso da corda, e as nossas autoridades nos fazem a vil gentileza de negarem-se a discutir o aborto como questão de saúde pública. Realmente, ainda não vivemos em um mundo igual, tampouco justo.

    Mas, ouso dizer, jamais viveremos. Primeiro e principalmente, porque isso não é possível. O mundo é um construção das pessoas, e as pessoas são imperfeitas. Além do que, dadas as particularidades próprias e naturais de cada sexo, simplesmente não somos iguais, e nunca seremos. Falar em igualdade entre homens e mulheres é tanto uma ilusão quanto um completo disparate. O certo, o mote coerente de luta, o que podemos de fato conseguir, pelo que devemos aguerridamente batalhar, é uma melhor e mais real justiça entre os gêneros, um cenário que permita aos nossos filhos e filhas crescerem de modo sadio e feliz, com oportunidades iguais, segurança e confiança para - cada um do seu jeito, de acordo com o que são, com o que almejam para si - serem o que quiserem.
                                                             

    Ainda temos muito chão para percorrer nesse sentido. Muitas barreiras para vencer, tabus e convenções para quebrar, conquistas a fazer. Mas, se pararmos para pensar, já conquistamos muito. Pelos adventos do mundo moderno, pelas lutas de nossas antepassadas, pela mera mudança de paradigmas que constantemente acontece e, de quando em vez, traz reais progressos, nós já conquistamos muito; e, hoje - apesar dos pesares, e dos persistentes problemas - podemos dizer que mais motivos temos para orgulho e alívio e comemoração que para tristeza e lamento.

    Pois, ser mulher hoje é ter acesso a universos antes inimagináveis. Se pensarmos que no Brasil colonial, o costume era educar somente os meninos e deixar as meninas perfeitamente analfabetas - pois que perigo não era ensiná-las a ler e a escrever; além de para nada servir uma mulher educada, ela decerto só ia usar as palavras para escrever clandestinas cartas de amor e através delas combinar encontros! Mulher servia para cuidar da casa, então as meninas deviam aprender somente a bordar, costurar, cozinhar, limpar, lavar, passar, arrumar, as prendas todas da casa, e, no máximo, a tocar um piano que era para receber bem as visitas e impressionar ‘bons partidos’. Hoje, nós todas vamos à escola, onde, aliás, nosso desempenho não raro é melhor que o dos meninos, já que eles realmente custam a crescer. É normal irmos à universidade - o anormal chega a ser não ir. A escola e o estudo, a academia, as artes, a ciência, o mundo do negócios, todos se renderam a nós, e estão abertos a todas aquelas que queiram deles fazer parte, e lutem por isso. Quando conversamos com nossas avós, fica nítida essa disparidade entre o mundo que elas conheceram e o que nós conhecemos, como nosso universo é mais amplo, como temos acesso à oportunidades e possibilidades com as quais elas nem sonhavam.

   Ser mulher hoje é poder ter independência, vida própria e verdadeiramente emancipada, privacidade. Era usual, no Brasil do mesmo período, o quarto das filhas ser comunicante ao dos pais, e isolado do resto da casa, o último cômodo. (A noção de privacidade, não só com relação às mulheres, é algo muito moderno. O “corredor” entre cômodos, separando partes da casa, que não mais se comunicam, é uma invenção do século XX.) Enquanto os meninos eram perdoados, até incentivados, em seus pecadilhos, as moças de família precisavam ser praticamente santas, senão castas em pensamento - que ninguém controlava, ou controla -, de certeza ‘puras’ em ação e conduta. Sair? Só para ir à missa, e mesmo assim sob olhar vigilante e indesgrudante dos pais (já que a igreja era um excelente lugar para 'se cair em tentação'). Todas praticavam o credo dos pais, só podiam frequentar os mesmos lugares que eles, travar conhecimento e manter convivência com as relações deles. Deles dependia, inclusive, o consentimento para o que lhes era uma esperança  de liberdade, o casamento. Ao passo que, hoje, somos donas de nós mesmas, escritoras de nossa história - na qual somos protagonistas, ao invés de apenas coadjuvantes principais. Somos administradoras de nossas posses, senhoras de nosso corpo e cabeça e alma. Não somos filhas de alguém, ou esposas de alguém, somos mulheres e ponto. Não precisamos depender de ninguém, para nada, legalmente ou financeiramente ou pelo velado ditame da convenção. Temos, enfim, poder de decisão sobre as várias esferas de nossa vida.

    Ser mulher hoje, em resumo, é ter escolha. É ter todo um múltiplo horizonte aberto para si e, com autonomia e liberdade, poder desfrutar dele. É ter uma vida sexual que é da sua conta, somente, e de mais ninguém (viva os métodos contraceptivos!). É poder ir e vir, voltar e revoltar-se, livremente, exercendo sua cidadania e sua independência. É não ser subjugada. É poder ser casada sucessivas vezes, ou ter vários namoridos, ou manter-se em perene e orgulhosa e agitada solteirice, de acordo com o que lhe convém e o que lhe faz feliz. É poder usar azul e rosa, cabelo comprido ou curto, panelas e carros, vestido ou calças, à gosto. É ter a possibilidade de ser mulher de uma família ou esposa de uma carreira, ou ambas, por opção e não por determinação. Porque os dois caminhos lhe estão abertos.

    Ser mulher, hoje, enfim, é poder fazer as próprias escolhas, sem que ninguém as faça por você, sem que seu gênero as determine.

   Quanto já não avançamos, malgrado os males que persistem e ainda restam ser vencidos! Como somos sortudas - nós, mulheres de hoje - e privilegiadas!

    Um viva à mulher, meus amigos, e um viva à modernidade!

quarta-feira, 4 de março de 2015

Como os cães veem o mundo

                                                                    

    Algumas coisas que todos nós humanos devemos saber sobre os cães e como eles encaram o mundo, a vida e as pessoas. Ditado para mim diretamente por Paco, o preguiçoso, e Duda, a filosofante (na foto):

    1) Nós cachorros não somos como vocês humanos. Parece uma coisa óbvia para dizer, mas é sempre bom repetir, já que vocês humanos custam a aprender. Nós não somos humanos, não gostamos de tudo o que vocês gostam, roupinhas demais, sapatos, televisão. E não “funcionamos” como vocês funcionam também. Temos nosso próprio código de conduta. Nós somos criaturas bem diferentes. Tenham isso em mente.

    2) Leis e regras são coisas de humanos. Nós até podemos nos adaptar a algumas - o pipi no lugar certo, por exemplo, que torna a convivência civilizada -, mas não nos dê muitas ordens, porque não vamos seguir. Não somos fantoches. Adestramento não é bom a menos que seja divertido, e tem que ser nos dias em que estamos com disposição e bom humor. Nós, cachorros, também temos nossos humores, sabe, e vocês têm que aprender a respeitá-los, como nós respeitamos os seus.

    3) E, ah, não pegue a minha bolinha enquanto estou com ela. Nunca vi brincadeira mais boba, mandar eu buscar, e quando eu busco, dar ela para você de novo, para você jogar e eu ter que ir buscar outra vez. Eu, hein? Deixa eu brincar.
                                                                
                                                     

     4) Dia bonito é dia de brincar. Se vocês humanos conseguem ficar enfurnados dentro de casa o dia todo, perdendo um sol gostoso e um céuzinho azul, nós cachorros não conseguimos. Se não puder sair para passear conosco, peça alguém para fazer isso. É claro que preferíamos que fosse você, mas realmente precisamos do nosso pouquinho de exercício diário, especialmente nos dias bonitos. Pode ser sua mãe, ou um seu vizinho, desde que seja simpático e paciente com a gente. Se também não puder fazer isso - nós sabemos que nem todas as pessoas são confiáveis - só nos dê um pouquinho de liberdade, uma voltinha no terreiro, ou na rua, já está bom.
    5) Dia feio é dia de hibernar. Nesses dias, não há lugar melhor no mundo que a nossa casinha. Não nos tire de lá, a menos que seja caso de morte.

    6) Banhos são eventuais. A maioria de nós não gosta muito deles - é claro que tem umas exceções por aí, uns cachorros doidões que adoram uma água; coisa mais maluca, nunca vi isso, gostar de tomar banho - e o veterinário já disse que de quinze em quinze dias está bom. Então, seja consciente. Economize água do mundo. Nos poupe banhos.

  7) Nós normalmente preferimos banho de mangueira. Eles são mais divertidos. Vocês ficam agitando a mangueira para a gente ver a água balançar e tentar ir atrás dela, e nós só fazemos isso para você rir. Mas o tempo todo estamos pensando como vocês humanos são tão bobalhões, tadinhos. Mas não se preocupe, nós amamos você assim mesmo.

    8) Aliás, nós amamos você mais que tudo.

    9) Tudo o que é gostoso pode ser lambido. E, até que se prove o contrário, o que não é gostoso também. Afinal, se você não lamber, nunca vai saber.

    10) Nossos lambidos também são gestos de carinho. Se você não gosta, não precisa ficar xingando, não se zangue com a gente. A gente fica triste, sabe. Só indique que não gosta, se afaste, e a gente promete que pára.

    11) Cachorros têm muitos sentimentos. Temos sentimentos tão evoluídos quanto os de vocês, humanos - aliás, mais, muito mais evoluídos; vocês são tão insensíveis, às vezes sabiam? Nós sentimos medo, ansiedade, alegria, gratidão, raiva. Nós ficamos tristes com algumas coisas que vocês fazem, e pode ter certeza que vamos demonstrar isso. Mas também somos muito doces, e basta você pedir desculpa, e vir brincar com a gente, que a gente perdoa. Não conseguimos ficar de mal por muito tempo.

    12) Nós funcionamos com um código de ética diferente do de vocês. Nós não somos bons atores, ao contrário de vocês, e não fazemos duas caras. Nós, cachorros, não sabemos fingir. Se gostamos de alguém, que seja um estranho que você traz aqui, vamos abanar o rabinho e lamber seus dedos e pular nele e pedir para brincar. Se não gostamos... É bom você afastar ele de nós, porque vamos rosnar e morder. Nós somos muitíssimo verdadeiros, sabe?

    13) No nosso aniversário, não precisa ficar comprando coisas para a gente. Também ao contrário dos humanos, nós não precisamos de muitas coisas para sermos felizes. Só precisamos de você. Que você passe um tempo com a gente, se divirta com a gente, nos dê atenção e carinho, a sua companhia. Então, no nosso aniversário - ou todo dia -, ao invés de comprar uma bolinha nova para a gente, ou aquele cobertorzinho chique de doer que você viu no pet shop, venha ficar com a gente. É de você que precisamos para estarmos felizes.

    14) Nós somos muito companheiros. Quando você está triste, a gente sabe. Quando aconteceu alguma coisa de ruim, quando você fez lambança, a gente sabe. Não precisa ficar tentando esconder. Nós não ficamos falando muito, tentando te consolar, ajudando você a lidar com a situação porque... bom, você sabe, se conselho fosse bom, era vendido, não dado; e nós sempre pensamos que a nossa presença é mais importante, e vai ser um melhor apoio do que qualquer coisa que possamos falar. Você sabe, né, a gente fala.

    15) Nós sempre estaremos do seu lado. Não importa se você está feliz ou triste, sorrindo ou chorando, se andou dando pouca atenção para nós ultimamente, ou muita. Não importa se você está numa pindaíba danada ou tranquilinho no azul. Se é bonito, ou dos humanos mais feiinhos. Não ligamos para nada disso. Nós te amamos, e por isso, estaremos sempre com você. Por toda a nossa vida, e por toda a sua também. Só chame o nosso nome, e nós estaremos com você. Sempre.
                                                         


    Texto dedicado a todos os cãezinhos do mundo.