quarta-feira, 11 de março de 2015

Ser mulher hoje - mulher e modernidade

                                                                  
   
   Acho que já deu para perceber que eu viajo bastante nos tempos de ontem, e critico várias facetas dos tempos de hoje. Vivo suspirando em filmes de época e quem me conhece sabe que uma das linhas que eu mais falo é “em 1900 e antigamente,...” deixando um quase visível rastro de sonhador saudosismo no ar. Mas, se há um ponto no qual preciso render-me às maravilhas da modernidade, é sua relação com as mulheres - existir no modo feminino do verbo hoje é bem mais fácil e menos doloroso do que era no passado.

    Não vivemos um mundo igual, ou justo, é verdade. Nossos salários são bem menores que os dos homens, em vários setores; sofremos preconceito e discriminação em muitas áreas de conhecimento e atuação burramente naturalizadas com de domínio masculino, nas quais alguns deles insistem em achar que não damos conta do recado como eles dão, quando, muitas vezes, fazemos melhor. Nossa jornada é tripla àquela deles, para um reconhecimento que não chega ao terço.

    Se um homem sabe impor sua autoridade, ele é dito um bom líder; se uma mulher faz o mesmo, ela é mandona. As cobranças sobre nós são cruéis, e as expectativas, torturantes: temos que ter corpo perfeito, trabalho importante, sucesso no trabalho, sermos mães e esposas e filhas impecáveis. Estamos sujeitas à todo tipo de violência, abuso, escárnio e menosprezo. Temos que aturar - todos os dias, quer seja no trabalho, ou caminhando no parque da cidade - ridículas piadas machistas, sujos comportamentos sexistas. Temos que aturar comerciais nocivos e nojentos, com nossos corpos transformados em objetos de apelo sexual, associados à cultura de poder e dominação quase sempre do lado submisso da corda, e as nossas autoridades nos fazem a vil gentileza de negarem-se a discutir o aborto como questão de saúde pública. Realmente, ainda não vivemos em um mundo igual, tampouco justo.

    Mas, ouso dizer, jamais viveremos. Primeiro e principalmente, porque isso não é possível. O mundo é um construção das pessoas, e as pessoas são imperfeitas. Além do que, dadas as particularidades próprias e naturais de cada sexo, simplesmente não somos iguais, e nunca seremos. Falar em igualdade entre homens e mulheres é tanto uma ilusão quanto um completo disparate. O certo, o mote coerente de luta, o que podemos de fato conseguir, pelo que devemos aguerridamente batalhar, é uma melhor e mais real justiça entre os gêneros, um cenário que permita aos nossos filhos e filhas crescerem de modo sadio e feliz, com oportunidades iguais, segurança e confiança para - cada um do seu jeito, de acordo com o que são, com o que almejam para si - serem o que quiserem.
                                                             

    Ainda temos muito chão para percorrer nesse sentido. Muitas barreiras para vencer, tabus e convenções para quebrar, conquistas a fazer. Mas, se pararmos para pensar, já conquistamos muito. Pelos adventos do mundo moderno, pelas lutas de nossas antepassadas, pela mera mudança de paradigmas que constantemente acontece e, de quando em vez, traz reais progressos, nós já conquistamos muito; e, hoje - apesar dos pesares, e dos persistentes problemas - podemos dizer que mais motivos temos para orgulho e alívio e comemoração que para tristeza e lamento.

    Pois, ser mulher hoje é ter acesso a universos antes inimagináveis. Se pensarmos que no Brasil colonial, o costume era educar somente os meninos e deixar as meninas perfeitamente analfabetas - pois que perigo não era ensiná-las a ler e a escrever; além de para nada servir uma mulher educada, ela decerto só ia usar as palavras para escrever clandestinas cartas de amor e através delas combinar encontros! Mulher servia para cuidar da casa, então as meninas deviam aprender somente a bordar, costurar, cozinhar, limpar, lavar, passar, arrumar, as prendas todas da casa, e, no máximo, a tocar um piano que era para receber bem as visitas e impressionar ‘bons partidos’. Hoje, nós todas vamos à escola, onde, aliás, nosso desempenho não raro é melhor que o dos meninos, já que eles realmente custam a crescer. É normal irmos à universidade - o anormal chega a ser não ir. A escola e o estudo, a academia, as artes, a ciência, o mundo do negócios, todos se renderam a nós, e estão abertos a todas aquelas que queiram deles fazer parte, e lutem por isso. Quando conversamos com nossas avós, fica nítida essa disparidade entre o mundo que elas conheceram e o que nós conhecemos, como nosso universo é mais amplo, como temos acesso à oportunidades e possibilidades com as quais elas nem sonhavam.

   Ser mulher hoje é poder ter independência, vida própria e verdadeiramente emancipada, privacidade. Era usual, no Brasil do mesmo período, o quarto das filhas ser comunicante ao dos pais, e isolado do resto da casa, o último cômodo. (A noção de privacidade, não só com relação às mulheres, é algo muito moderno. O “corredor” entre cômodos, separando partes da casa, que não mais se comunicam, é uma invenção do século XX.) Enquanto os meninos eram perdoados, até incentivados, em seus pecadilhos, as moças de família precisavam ser praticamente santas, senão castas em pensamento - que ninguém controlava, ou controla -, de certeza ‘puras’ em ação e conduta. Sair? Só para ir à missa, e mesmo assim sob olhar vigilante e indesgrudante dos pais (já que a igreja era um excelente lugar para 'se cair em tentação'). Todas praticavam o credo dos pais, só podiam frequentar os mesmos lugares que eles, travar conhecimento e manter convivência com as relações deles. Deles dependia, inclusive, o consentimento para o que lhes era uma esperança  de liberdade, o casamento. Ao passo que, hoje, somos donas de nós mesmas, escritoras de nossa história - na qual somos protagonistas, ao invés de apenas coadjuvantes principais. Somos administradoras de nossas posses, senhoras de nosso corpo e cabeça e alma. Não somos filhas de alguém, ou esposas de alguém, somos mulheres e ponto. Não precisamos depender de ninguém, para nada, legalmente ou financeiramente ou pelo velado ditame da convenção. Temos, enfim, poder de decisão sobre as várias esferas de nossa vida.

    Ser mulher hoje, em resumo, é ter escolha. É ter todo um múltiplo horizonte aberto para si e, com autonomia e liberdade, poder desfrutar dele. É ter uma vida sexual que é da sua conta, somente, e de mais ninguém (viva os métodos contraceptivos!). É poder ir e vir, voltar e revoltar-se, livremente, exercendo sua cidadania e sua independência. É não ser subjugada. É poder ser casada sucessivas vezes, ou ter vários namoridos, ou manter-se em perene e orgulhosa e agitada solteirice, de acordo com o que lhe convém e o que lhe faz feliz. É poder usar azul e rosa, cabelo comprido ou curto, panelas e carros, vestido ou calças, à gosto. É ter a possibilidade de ser mulher de uma família ou esposa de uma carreira, ou ambas, por opção e não por determinação. Porque os dois caminhos lhe estão abertos.

    Ser mulher, hoje, enfim, é poder fazer as próprias escolhas, sem que ninguém as faça por você, sem que seu gênero as determine.

   Quanto já não avançamos, malgrado os males que persistem e ainda restam ser vencidos! Como somos sortudas - nós, mulheres de hoje - e privilegiadas!

    Um viva à mulher, meus amigos, e um viva à modernidade!

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