quarta-feira, 26 de julho de 2017

A importância de brigar

                                                                 
    
    Ouvimos falar de gentes que brigam rotineiramente com pesar. Lamentamos saber sobre ou encontrar um casal que existe em alta frequência bélica, irmãos cuja relação não economiza desentendimentos, amigos entre os quais há pulsante atrito. Todos sabemos do desgaste e do dano que advém do brigar e somos mansamente educados a evitá-lo ao máximo, não é mesmo?

    É mesmo. E, no entanto, pode ser que nesta questão como em tantas outras nossa educação esteja nos enganando. Desaconselhando-nos mais que aconselhando-nos na marcha da vida.

    Brigar dói, cansa, nos ferocita. Não raro, o poder belicoso que nos enche e incha faz com que, no momento da briga, nos desconheçamos por completo. Naquele instante, somos um outro eu. Dizemos coisas que se tornam dolorosamente inesquecíveis para aquele alguém que desesperadamente estimamos - coisas que jamais diríamos fora de tal alterado estado. Soltamos um grito que o ouvido estranha por não saber pertencer à nossa boca, à nossa voz, ao nosso peito. Revelamos uma intensidade que não nos é nativa, não nos é natural, não nos parece ter sido causada por uma circunstância mas por uma substância.

    Aquando da consciência túrbida, do inflamado da discussão, odiamos tanto o retruque quanto a mudez do outro, censuramos seus silêncios, engolimos suas sílabas antes que possam proferi-las. Antes engolíssemos as nossas antes que pudessem pró-feri-los. Depois, imersos talvez na onda da culpa, com uma maré emocional mais calma e lúcida, é tudo o que ficamos a desejar poder ter acontecido.

    Por tudo isso, pouco somos chamados a pensar na positividade inerente à briga. Ela que na verdade é um sintoma da saúde, do vigor, da vida da relação, não só, mas também um elemento altamente nutritivo a ela. Sim, exatamente. A ausência da discussão, do desacordo, do enfrentamento pode muitas vezes ser mais alarmante do que sua presença.

    Pois, ninguém que não ame o outro forte e sinceramente se colocará na situação de dispêndio de energia que pede uma briga com ele. Ninguém que não acredite no potencial daquela relação, visualize sua continuidade - e, no fundo, sem saber, a deseje - arregaçará as mangas, gastará com tanto arrojo e tanta vontade seu verbo, sua voz, sua expressão, seu gesto, sua pulsão.

    A disposição, a potência, o ânimo necessários para a briga não estão mais presentes no par cujo laço está para expirar. Nele, o entusiasmo já minguou a tal ponto de que só há resmungos murmurados e mornos, conformados. Não há palavras pugilistas, berros agressores. Não há a concentração e canalização do viço, da energia de cada um para a construção de uma cena beligerante. Onde já não raia mais fé, não se produz o calor da discórdia. Tudo acomodou-se, pusilânime, e assim só não termina porque ninguém põe nela um fim.

    Ademais de ser sinal de vigor e esperança, a briga pode ser o incômodo mas fundamental agente arejador da relação. A erupção gloriosa do subjacente, da gritante sinceridade que gera clareza, que desvela véus, que alisa ranhuras, propiciando o terreno para diálogo fecundo, uma reaproximação e sintonia antes impensáveis.

    Portanto, vale prestar uma outra atenção às brigas em nosso entorno e àquelas nas quais tomamos parte. Vale observar as pessoas com quem escolhemos nos envolver com entrega e inteireza, inclusive ao ponto da batalha, e aquelas a quem não dedicamos semelhante vivacidade, semelhante espírito.

    Abra os olhos. Perceba. Se você não briga com uma periodicidade razoável com seus mais próximos e queridos, em acordo à personalidade relacional de ambos os envolvidos, das duas, uma: ou vocês se relacionam numa harmonia que beira a unidade, e têm temperamentos iluminadamente pacíficos, ou não se importam tanto e tão profundamente com outro e com seu laço quanto imaginam, e ele pode estar tão desbotado, insípido, inerte que avizinha-se do moribundo.
                                                              

sexta-feira, 14 de julho de 2017

A vida, as cartas e o grid de largada

                                                                

    Ultimamente, tenho passado algum tempo a cartear. Sim, a jogar cartas. Além de ser um passatempo potenciador de sociabilidades, ao intermediar simpaticamente contato entre pessoas, o jogo de cartas é exigente e divertido professor de paciência e vigoroso estímulo à imaginação.

    Dia desses, me peguei pensando como o movimento e desenvolvimento existencial da gente não é muito diferente de uma partida de qualquer carteado. Pois, a menos que alguém trapaceie muito misteriosa e eficazmente no tabuleiro cósmico, ninguém tem poder de eleger as cartas que virão em sua mão. O lugar donde viverá, a situação socioeconômica, o acesso cultural, o esteio familiar - ou a falta dele. Seus atributos físicos, dotes artísticos, talentos e destalentos, tendências de temperamento, personalidade espiritual. A vida distribui as cartas de partida de modo alheio a nós, nossa vontade, decisão ou intervenção. Faz isso acidentalmente, dirão alguns, conforme o embaralhar do acaso; seguindo cuidadosamente as coordenadas de um plano, dirão outros. Mas, inevitavelmente, a despeito de nós.
   
    E, no entanto, é raro que o resultado final de um jogo seja determinado pela mão inicial com que os jogadores saem. Não é necessariamente vitorioso quem foi favorecido pela ciranda primeira das cartas, nem sempre termina perdedor aquele cujas cartas primeiras a sorte atraiçoou.
   
    Há vários fatores orbitando poderosamente no entorno, de maneira possível a cambiar as rotas do jogo. Há quem seja hábil jogador, conservador, cauto, ou mui amigo do risco, que tenha senso de oportunidade e faça o melhor de sua humilde origem, contrariando magistralmente as probabilidades de seu início, motivado pelo desafio do adverso. Há quem, pelo contrário, desperdice suas vantagens de partida com jogadas imprudentes, descartes tolos, apostas soberbas, uma atitude de preguiça para com o jogo, subaproveitando suas opções.

    Há quem seja o jogador-dançarino, que saiba improvisar e afine sua tática acorde ao jogo que se apresenta, ganhando em sua capacidade de adequação à situação vantagem intransponível. Há quem seja o jogador do ritual, que tenha seu jogo de antemão todo coreografado e se veja desconcertado quando as contingências pedem outro ritmo, outro rebolado, outra estratégia.

    Há quem seja exímio trapaceiro e termine com mais pontos por meios escusos; há quem seja tão escrupulosamente honesto que renuncie a uma vitória que ocorra desta moda, ou se recuse a ver o artifício daquele que o ultrapassou ilegalmente porque crê que foi enganado por seus olhos, não pelo outro, de quem não espera outra conduta senão uma gêmea da sua.

      Há quem preze mais pelo momento do jogar que pela sua culminância, seu resultado, e nessa sua atitude carregue já os louros, a satisfação e o sorriso de uma vitória inconteste.

    À medida que o jogo corre, ambas as partes podem transfigurar completamente sua mão, através de jogadas que escolhem ou das quais se abstêm, daquilo que o capricho do baralho lhes reserva, de um bom ou mau trabalho em equipe. Este que ora soma e constrói, suprindo mutuamente carências, equilibrando faltas e erros, potencializando lances e possibilidades doutra forma apenas bons; e ora diminui e naufraga, contrabalançando pequeno ganho com grande perda, momentânea desorientação com permanente desnorteamento.

    Às vezes, um completo desentendido faz um comentário embriagado milagrosamente oportuno que esclarece o que fazer a seguir e dá um rumo belo e acertado àquilo que parecia não ter nenhum. Outras vezes, o conselho bem intencionado e carregado de precisão lógica daquele querido e sabido amigo sopra sobre si os ventos do buraco e o leva ao erro. No decorrer da jogatina, sinais do adiante aparecem e desaparecem, e as percepções e leituras diferentes que cada um faz deles conduz suas jogadas, concentra ou diverte a atenção e a energia no jogo.

    É claro que tanto mais argúcia, fortaleza e persistência são necessárias quanto mais desfavorável for a distribuição inicial das cartas. É claro também que é exatamente nesta circunstância do desprivilégio que uma pessoa tem a maior oportunidade de se revelar, construir-se melhor jogador - pois é feito muito mais comum jogar bem com boas cartas que com más. E é ao preterir o choramingo pela ação, o resmungo pela atividade consciente e bem direcionada com as cartas que se têm que uma pessoa constrói um jogo, senão absoluto e último vencedor, digno, prazeroso e bonito - de se ver e jogar.