quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Personalidades centrífugas e centrípetas

                                                                      

     Esta reflexão pariu-se na conversa com um amigo. Portanto, embora torneada em palavras por mim, talvez seja de autoria compartilhada.

    Quanto ao comportamento para com o outro, creio que podemos ver duas tendências gerais: a personalidade centrípeta e a personalidade centrífuga. Como já assinalam os adjetivos, uma é orientada por e para si; a outra, por e para fora de si.

    A pessoa de personalidade centrífuga é aquela que prefere levar calote a deixar o outro em prejuízo. Aquela cuja convivência consigo mesmo se torna um tormento quando fez - ou imagina ter feito - algum mal a alguém. Ela não suporta o sequer pensamento de ter se portado de forma descortês, indelicada, menos que exemplar para com outra pessoa - seja ela bastante próxima ou relativamente distante, estimada ou apenas conhecida -, nem de que lhe saíram dos lábios algumas palavras espinhosas por extravio. Ela mói e remói o sucedido em pensamento, repetida e excruciantemente, e de pronto procurará modos de fazer reparação.

    A pessoa de traços predominantemente centrífugos por vezes contrariará a própria vontade para apaziguar ânimos, satisfazer ou consolar a outrem. Se colocará em situações desagradáveis para si a fim de agradar, ou não desagradar, alguém. Perderá um jogo qualquer - e também um que muito lhe importe - só para ver o sorriso brilhante no rosto de quem nunca vence, desaguando sua paixão em compaixão, ou gentileza, o ponto de vista dirá.

    Terá grande dificuldade de superar relacionamentos findados, amores ou amizades incorporadas ao domínio do passado. Afinal, ela se importa com o impacto que as pessoas têm em sua vida, não só, mas também e principalmente com o efeito que ela tem na vida das pessoas. Assim, a menos que consiga convencer-se de que fez bem àquela pessoa de quem se apartou, ajudou-a a evoluir dalgum modo, deu-lhe alegrias e momentos gratos dos quais se lembrar, ela não estará em paz. Não passará a página.

    Por fim, quem tem essa maneira de ser tem também, pela minha percepção, uma dificuldade extra ao procurar por e encontrar, digamos, sem drama ou eufemismo, o sentido de sua vida. Aquilo que lhe motiva e encanta. Pois, não lhe basta a sua própria realização e satisfação, não lhe basta que algo lhe agrade, somente. A pessoa de orientação centrífuga precisa sentir-se útil, precisa servir, ter sua importância ao outro - ou não se sente digna de sua felicidade, das oportunidades e dos retornos que tem.

    Tudo isso opostamente ao indivíduo de tendência centrípeta. Ele não se importa demasiado em levar calote, se ele não o deixa completamente destituído e se o aborrecimento do processo da recuperação não valer o prejuízo. Tampouco, se martiriza, tortura ou cobra se por ventura aflige perdas a alguém - no âmbito financeiro, relacional, emocional... Pois, não o fez sem uma boa razão! Acredita que a lástima imposta ao outro é preferível à lástima imposta a si mesmo, e a primeira não se pratica gratuitamente mas para própria proteção.

    No tocante ao seu comportamento em relação a outrem, tampouco é o caso em que imponha tristezas, pratique indelicadezas ou rejubile-se em tratar mal, mas que seja simplesmente indiferente. Em lugar de ver em cada pessoa alguém de muita importância por sua simples existência, como seus contrários centrífugos, o indivíduo centripetamente dirigido vê cada outro com igual imparcialidade, até que algum deles mostre que vale sua parcialidade. Ele não dispende sua energia, cortesia ou atenção com ninguém gratuitamente. Ele as investe naqueles que mostram dignos disso, com quem considera ter afinidades, ou poder vir a ter algum tipo de relação significativa. Interesseiros, podem chamá-los alguns, sábios utilizadores de seu tempo e suas atenções com parcimônia, outros.

    Fato é que, se sua conduta respinga negativamente em alguém, essas pessoas em geral nem o notam. O que pensam os outros dela, como ela os faz sentir, como reagem à sua presença... Isso nem resvala as esquinas de seus olhos, menos ainda os recantos de seu espírito.
   
    Fato também é que a pessoa de personalidade centrípeta está em posição que se machuca menos se comparada àqueloutra centrífuga. Suas cicatrizes decorrentes de relações chegadas à sua estação final não carecem do outro para sarar; a motivação de seus dias e sua vida dispensa o atendimento de necessidades alheias para justificar-se. Ela se basta. Ela nada faz para agradar o outro, e não lhe molesta em nada que desagrade - impossível agradar a todos, impossível não machucar a alguém no meio do caminho! Crê que deve estar em paz, bem resolvida e plena consigo mesma para poder prestar qualquer serviço ao todo, e assim não vê razão em buscar utilidade imediata e visível na sua existência para outros, mas prioriza seu próprio bem estar e satisfação. Estando bem e satisfeita, afinal, ela já está prestando um favor à humanidade!

    Quem é melhor, caro leitor? Quem é mais feliz e mais admirável? Logicamente, gabarito mais preciso não poderia haver! Entre centrífugos e centrípetos, menos bons, felizes e admiráveis são aqueles que, ao olharem para si, não se enxergam como são; ao se enxergarem, não se aceitam, tentam tolamente fugir de si mesmos, agir em desacordo consigo - o que é inviável. Melhores, mais felizes e admiráveis são aqueles que enxergam-se com simpleza e claridade, aceitam-se, vivem afinados com sua essência tentando ser o melhor que podem.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Desligando: uma experiência de sociabilidade

                                                                             

    Dia desses, uma percepção atingiu-me arrabatadoramente. O senhor leitor pode surpreender-se com o quão óbvia ela é. Mas eu diria que sua obviedade é parte fundamental do pânico que me causou.
   
    Atentei, num desses clarões de entendimento que nos chegam sem convite ou aviso e nos deixam atarantados, para o tanto de perguntas que eu fazia quase diariamente às ferramentas de busca na internet nas várias telas ao meu redor. Que horas passaria o ônibus para tal lugar, ou que direção eu precisava tomar para chegar em outro a pé. A previsão do tempo para aquele dia, os recintos da cidade em que procurar por tal produto ou tal serviço, a avaliação maioritária do estabelecimento que abriu mês assado. A recomendação de um livro para ler agora, um CD para embalar meu tranquilo final de semana.
   
    Ora, não são essas todas perguntas que eu poderia fazer para pessoas ao meu redor? Gente de verdade, de carne e osso, que me responderia com um sorriso surpreso à indagação ou uma voz alegre, que contorceria o rosto em concentração para pensar numa resposta e seria tímido e medroso, que me daria um gentil aceno de cabeça em retornou ao meu agradecimento e ficaria contente por ter tido a chance de ser útil a alguém.
   
    Perturbada por essa percepção e por pensar no que eu estava perdendo substituindo pessoas por telas, resolvi emendar-me. Fiz o experimento em um inteiro marcante dia de abordar pessoas - que estavam aos montes em minha volta naquela fervilhante segunda-feira - para fazer-lhes quaisquer perguntas que me ocorressem ao invés de buscá-las na internet.
   
    Foi uma experiência mais que adorável. Abordei várias pessoas ao longo do dia, em diferentes lugares, escolhendo sempre aquelas que mais abertas se mostravam ao contato. Sem fones de ouvido ou sequestradores similares de atenção, sem expressão grave ou emburrada ou compenetrada, sem aquela pressa maníaca que não raro adoenta gentes por aí. Abordei completos desconhecidos, sempre tentando aliar certo grau de polidez à conversa casual.
   
    Com algumas pessoas, a conversa fluiu para além da inicial indagação. Descobrimo-nos vizinhos e compartilhando opiniões e gostos, trocamos contatos. Com outras, a interação cessou com a resposta ao perguntado, talvez por reserva ou timidez, talvez por uma incompatibilidade natural mesmo, sentida pela poderosa via da intuição no muito breve átimo que precisamos para percebê-lo.
   
    Ora fui recebida com muito calor e admirada curiosidade, ora com receio e distância, ora com franca e indisfarçada estranheza pela ousadia. Algumas vezes, fiquei até estonteada pelas tantas sugestões e possibilidades  oferecidas à minha inocente interrogação. Noutras, a pessoa também não sabia o que eu perguntava e recorria ao recurso virtual. Nessas ocasiões, eu procurava enxergar a positividade da coisa: estávamos interagindo no plano real da existência e juntos fazendo passeio pelo plano virtual, mirando a mesma tela.

    Se a percepção que me agonizou e provocou-me a este experimento também se verifica em você que me lê, recomendo que tente fazer algo parecido. Nem que seja só por um dia. Você pode se surpreender com a receptividade das pessoas e descobrir que abordá-las e conhecê-las é muito mais fácil que difícil, muito mais gostoso que custoso. Basta deixar de lado a internet um pouquinho e tomar a iniciativa da abordagem, de preferência portando um sorriso como cartão de visita. Basta dar o primeiro passo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O temperamento das ideias

                                                                             

   Publicitário, escritores, compositores, artistas de modo geral sabem o quão ardiloso é o temperamento das ideias. E que lindo é o desafio de trabalhar com ele - desafio que pode transformar-se em delícia ou em tormento, dependendo de como for trabalhado.
       
    As ideias são assim... indisciplinadas. Anticapitalistas. Não sabem trabalhar batendo ponto. Têm um parentesco com o modo vulcânico de ser, na medida em que podem passar longo tempo adormecidas, aparentemente falecidas, e também entrarem em atividade inesperadamente, de modo intenso e quase incontrolável.

    Apesar de indisciplinadas, elas não são indisciplináveis, como os vulcões. Há certos jeitos de lidar com elas que fazem-nas mais comportadas, regulares até. De fato, as danadas são ariscas, caprichosas, escorregadias. Mas não são indomáveis. A meu ver, a abordagem que deve ser feita com as ideias não é muito distante da conquista, da sedução. Temos que seduzir as ideias.

    E seduzir, sabemos, não é sinônimo de correr atrás de. Pelo contrário, quanto mais permanentemente insistentes somos, mais esquivas as ideias se tornam. Quanto mais fixamente pensamos nelas e mais fixadamente as rodeamos, menos interessadas elas parecem estar em acercarem-se de nós.

    Por outro lado, é claro, se nada fizermos, nada conseguiremos. É preciso ter atitude. Mas qual atitude? Preparar o terreno, agindo carinhosa e cautelosamente. Em primeiro lugar, mantermo-nos de bem com a vida, de bom humor, com o espírito leve, distraído até. Afinal, quem quer fazer companhia a alguém preocupado, tenso, sisudo e mal humorado? Ninguém, nem mesmo as ideias. Assim, aborrecer-se porque elas não vem, xingá-las ou àqueles à nossa volta não é um meio inteligente de atraí-las. Pessoas ou ideias. Isso as bloqueia, as afasta.
   
    Em segundo lugar, alimentar-se bem, no sentido literal e principalmente no figurado. Nutrir-se ricamente de elementos próximos a ela, referências relacionadas. Isso nos estimula e as atrai. Pois, embora não estejamos pensando nelas diretamente (o que é um erro fazer com insistência) estamos com ela no fundo, ou no canto de nossa mente. E estamos recebendo nutrientes que, batidos no nosso liquidificador mental, aos pouquinhos ou de repente, podem fazer surgir uma ideia. Ou ser o substrato rico que ela carecia para florescer.

    Quando enfim atraímos uma ideia que vale a pena e vemos que ela se encaminha a nós... Ah, é uma alegria que entorna! Contudo, não podemos ser ansiosos com ela. Por descuido, distração ou negligência, ela se vai. Toma chá de sumiço, foge, desaparece, despeitada. É preciso cuidar-lhe com afinco. É preciso ter paciência com ela, que, quando muito verde, fresca, imatura, toma ares de adolescente.
   
    Queremos acariciá-la, e ela não deixa. Queremos conversar, e ela não diz palavra, nem parece escutar. Faz um silêncio irritante, atrevido, de birra. Empaca, faz greve. Se vamos lhe dar um conselho para que melhore, então, vixi... Aí é que a perdemos de vez.

    Outras vezes, como criança pequena que teve pesadelo, ou jovem que percebe o quanto é frágil e precisa de ajuda para crescer e evoluir, ela sobe mansinha à nossa cama, querendo aconchego. Sim, não raro, a melhor solução é dormir com a ideia. Deitar com ela, fazendo-lhe pegar no sono serenamente, ninando-a... E levantar com ela, olhando-a nos olhos. Dando-lhe um bom dia transformado, seguro e forte.


    É... Conviver com as ideias, tê-las como necessárias colegas de trabalho... Não é mesmo fácil. Seu temperamento é dos mais capciosos. Mas a jornada de conhecê-lo e lidar com ele, nas diferentes fases do conhecimento e da aproximação... Também é das mais saborosas.