quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O amor nos tempos modernos

                                                            

    “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro possuidor de boa fortuna deve estar à procura de uma esposa.”

    Outra vez, inicio com uma frase marcante, abertura de um clássico mundial - este, ‘Orgulho e Preconceito’ , de Jane Austen. Desta vez, porém, dela não venho discordar, e sim com ela fazer paralelos.

    Recentemente, assisti ao filme ‘Ela’, que confirmou o pensamento, uma verdade tão verdadeira que, de 1814 até aqui, perdura-se, e parece não se aproximar de uma data de validade. A película, uma severa e certeira crítica à loucura que tem havido das pessoas com o universo virtual e sua mascarada vaziez, trata da nossa muito humana necessidade de nos conectarmos, nos conectarmos com gente - de carne e osso, nariz para respirar, sensibilidades para sentir, defeitos e qualidades - em interações reais.

    Não vou nem tentar comentar o filme em si, porque não me sinto apta. Saí tão embasbacada dele que está difícil sacudi-lo de mim, e pôr em ordem ou em palavras as tantas e tão diversas sensações, o turbilhão de intensidade, que ele traz e provoca. Mas, as reflexões às quais ele é ponto de partida... Delas eu não posso me esquivar.

    O cenário mostrado é o seguinte: um mundo onde pessoas se encostam mas não se comunicam, onde dividem o mesmo espaço, no mesmo espaço de tempo, mas não interagem, nem mesmo se enxergam, cada um estando isolado em seu próprio virtual universo, preferindo uma telinha em sua mão às pessoas a sua volta. Alguém identificou alguma semelhança, alguma verossimilhança com o nosso mundo (real)? Sim?

    Pois é. E conforme as cenas avançam e o protagonista, um homem extremamente solitário e cheio de internos conflitos inresolvidos, se apaixona por seu sistema operacional (?!), um outro filme vai também rolando em nossa cabeça, as tantas vezes que vimos gente distanciando-se de gente que está perto, dividindo com elas a mesa enquanto fazendo um lanche, mas sem conversar, sem trocar palavra ou olhar, sem perceber a sua presença, pois compenetrados em seus smartphones. E a solidão, a solidão moderna, baseada em relações ilusórias travadas através do triste engodo das telas.

    Meus amigos, nenhum relacionamento, nenhuma convivência ou vivência virtual substitui a interação real, intermediada por ar, sentidos, toque. Não existe desafio maior que a densidade de uma pessoa, de tentar decifrar seus pensamentos, suas emoções num dado momento, de analisá-las e discutir com elas ideias em tempo presente e espaço real. Não existe magia maior que sentir as mãos de alguém nas suas, conforto maior que um abraço, delícia maior que a de perceber uma pessoa em sua totalidade, a expressão de seus olhos, o ritmo de sua respiração, o tom de sua voz, seus gestos e jeitos, tranquilos ou agitados, o modo como ela se mexe - em desconforto, alegria ou embaraço -, ou organiza e verbaliza seus pensamentos, de uma vez ou pausadamente. Nenhum aplicativo pode nos proporcionar tudo isso, porque nada disso se percebe na muito limitada dimensão de uma tela.

    Eu sempre me perguntei como funcionariam os relacionamentos à distância, mantidos apenas pelas tecnologias de informação. Quero dizer, e quando seu par está triste e você, na intenção de consolá-lo, de demostrar sua proximidade e transmitir seu afeto e sua empatia, estende a mão para tocar seu rosto e encontra apenas o frio monitor de um computador? Isso deve ser agonizantemente frustrante. A pessoa estar ali tão perto, aparentemente ao alcance do toque, e ao mesmo tempo simplesmente não estar... Ao meu ver, não há laço - ou sanidade - que assim se sustente. E o que me diz o leitor daqueles que embarcam nesse tipo de interação voluntariamente, sem mesmo a distância que a torne necessária?

    Além do viés amor, em suas inúmeras variâncias, além do canalizar para um ilusão sentimentos que deveriam ser investidos em pessoas, há outras esferas da vida que experimentam problemas relacionados ao mundo virtual, do qual tão perigosamente nos aproximamos e nos tornamos dependentes. Quantas pessoas, jovens especialmente, não conhecemos que têm linguagem corporal deturpada, confusa, enquanto parecendo presa e amarrada, e simplesmente não conseguem olhar nos olhos dos outros? Expressar um pensamento, em claras e audíveis e articuladas palavras, então? Tomar parte numa discussão, num debate? A timidez, ou anti-sociabilidade por forças de internet, chega a ser doentia.

    E quantas empresas e serviços não têm tido seu rendimento lá embaixo, devido a funcionários que, insistentemente, estão ativos online em tudo quanto é coisa no horário em que, dizem, estão trabalhando? E quem consegue trabalhar, estudar, concentrar-se continuamente numa tarefa com a droga do celular apitando toda hora avisando a chegada de novas mensagens, de outras gentes desocupadas, às quais você sente uma ansiedade muito grande em responder imediatamente, sem deixar transcorrer minuto sequer?

    Eu não vou sugerir a ninguém que exclua - por hoje, pelo menos um - algum de seus tantos artifícios de social 'existência' por meio virtual, ou se desligue, um pouquinho que seja, desse mundo. Sinto que as pessoas são muito mais receptivas aos nossos apelos quando eles não vem de forma direta, com verbos no imperativo. Mas deixem-me dar aqui um testemunho. Eu não tenho nada disso, nenhuma rede 'social' e semelhantes. E não porque já tive e ao perceber o dano que eles constituem, acabei excluindo. Não tenho porque nunca tive mesmo. Não sinto necessidade. A humanidade viveu milhares de anos sem esses negócios aborrecidos e pode muito bem continuar assim. E eu também. Não dói, nunca morri por isso - pelo contrário, vivo muito bem. Não fico tomando conta de vida dos outros, porque tenho a minha, muito excitante e cheia e plena, da qual cuidar. E é uma liberdade imensa esquecer o celular descarregado de vez em quando, não lembrar de ligar o computador por dias seguidos, enquanto cozinhando, escrevendo com lápis num papel, lendo um livro, fazendo música, passando tempo com pessoas reais, quem realmente importa, e no mundo real, de um modo pleno e ininterrompido.

    Aliás, alguém aí já parou pra pensar por que usamos as palavras ‘real’ e ‘virtual’ como opostas? Porque são opostas, antônimas inconciliáveis; o que é virtual não é real, e o que é real não precisa da plataforma virtual para existir, pois é real.

    Jane Austen não viveu nos tempos do chuveiro, da luz elétrica, do sufrágio universal, nem da tecnologia, ou mais especificamente dos derivados de internet. Não viveu nos tempos modernos. E, no entanto, o seu tempo era povoado por pessoas, pessoas como nós - criaturas complexas e fascinantes, feitas não de placas-mãe e sim de tecidos vivos, com celulites e estrias, braços e pernas, miolos que raciocinam e pensam (ou não); pessoas que, sim, devem estar à procura de cônjuges, assim como de bons amigos, colegas próximos, porque precisam relacionar-se com outras, com outras pessoas. Pessoas que tornarão a convivência por vezes muito difícil, que nos farão arrancar cabelos da cabeça, e provavelmente nos cortarão o coração em algum ponto do caminho. Pessoas que serão irritantemente burras para umas coisas, lentas para outras, que terão manias que incomodam, hábitos que magoam, peculiaridades que as fazem únicas, uma densidade própria que as define. Defeitos e imperfeições que as fazem seres humanos, completos.

    Nossa cara Jane disse bem, não podemos negar o quanto precisamos de nos conectarmos, ou privarmo-nos dessas conexões - reais. Nem nos escondermos atrás de telas, por comodismo ou falso conforto, por medo ou despreparo. Não podemos deixar que a dependência em tecnologia nos aliene de pessoas de verdade, daquelas que estão perto. Não podemos deixar de viver as complicadices do orgulho e do preconceito, da razão e do sentimento, da virtude e da maldade, pois é esse conjunto que nos faz humanos, e as experiências e vivências por meio dele que nos faz dizer “Vivi. Vivo. Penso e sinto, tenho boas lembranças de boas reais vivências, logo existo. E como isso vale a pena!”

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A força de um sorriso

                                                              

    Há mais ou menos um mês, estive em Brasília, nosso ilustre distrito federal, e lá se sucederam alguns episódios que me deram muito no que pensar. Duas pessoas eu encontrei que me fizeram parar para refletir na importância de um gesto que muito negligenciamos: o sorriso, tradutor melhor da alegria em um rosto, feixe de dentes e bochechas e energia que pode iluminar todo um dia. Vou contar brevemente as duas histórias em separado.

    A primeira aconteceu numa sala de aula. Eram três os dias de prova desse exame no qual tomei parte, todos durando cinco horas, muito divertidas. Nos dois primeiros dias, os fiscais foram dois ‘generais’. Dois diferentes homens que chegaram, seu dever fizeram, e por cinco horas permaneceram calados, contidos, de cara fechada. Nada fizeram de errado, não nos deram motivo para queixa, cumpriram seu papel e seguiram todo o protocolo - friamente, e isso me incomodou.

    No terceiro dia, Deus teve piedade de nós, e mandou uma luz, um homem-luz. Na mesma hora que ele entrou na sala, eu pensei comigo “ai, que colírio!”. Devia ter por volta de uns trinta anos, era negro, alto, forte mas não tão forte que passasse da medida, de rosto bonito e sorriso lindo. E, não bastasse tudo isso, ele conquistou - a todos - com sua simpatia. Foi o único dos três que nos deu um “boa tarde” ao chegar, e um “boa tarde” sincero. Tão logo começou a organizar as coisas na mesa e se ambientar na sala, parou, e interagiu conosco de um modo muito simples. “Ah, gente, eu sei que sou carioca, mas até pra mim, aqui tá quente pra caramba!”. E perguntou, gentilmente, se podia ligar o ventilador ou se ele atrapalharia quem estava ali na frente pelo barulho.

    No calor intenso do centrão do Brasil em meados de janeiro, é evidente que as duas outras almas que nos aplicaram a prova ligaram o ventilador também. Mas o fizeram em ato mecânico, de um jeito automático, e totalmente indiferente a nós, perdendo assim a pequena enquanto excelente oportunidade de trocar conosco algumas palavras, ou um sorriso. Para o colírio que logo à minha frente estava, eu sentada por arte do acaso na carteira imediata à mesa do professor, perguntei “Carioca de onde?” ao que ele orgulhosamente respondeu. “De Madureira”, e  perguntou “Por que, bela, você é carioca também?”

    O tal galante terceiro instrutor fez tudo o que os outros fizeram, apenas com o muito simples tempero da alegria e da gentileza. Ele distribuiu embalagens para celulares, passou verificando assinaturas e polegares carimbados, entregando os cadernos de prova, mas ele se dirigia a nós enquanto fazendo isso, nos enxergava. Isso faz uma diferença muito grande, significa muito embora possa parecer tão pouco; ninguém gosta de ser invisível, de se sentir objetificado. Ele interagia, sorrindo, falando coisas pequeninas como “Tudo certo aí, princesa, ansiosa para começar ou para terminar?” ou “passa a tinta outra vez, colega, teu carimbo não saiu não”. Por mais que isso possa parecer trivial - e essa linguagem seja realmente o carioquês típico, e portanto vinda de um carioca, não devesse impressionar -, tudo isso nos impressionou, e muito, dado o tratamento duro enquanto frio, indiferente quase robótico, que recebemos dos fiscais anteriores. O mero fato deste estar conversando com a gente, e com essa gentil e cordial amabilidade, nos pareceu um luxo indizível, comparado ao modo com os outros se portaram, extremamente sérios, e mal nos notando.   

    No decorrer da prova, é claro, não havia espaço para dois dedos de prosaica conversa ou para brincadeira. Mas, enquanto no silêncio, riscado pelo ventilador, as canetas freneticamente rabiscavam e discorriam, eu senti algo de melhor na atmosfera da sala, algo de mais leve. Meus músculos de ombro e pescoço estavam menos tensos, ainda que aquele dia de prova estivesse sendo o mais difícil pra mim. E, na hora da saída, a coroação: ao invés do apenas civilizado aceno de cabeça dos outros fiscais em resposta ao nosso “tchau”, ele dizia um amistoso “tchau” em retorno, a cada um de nós, e completava com um cúmplice “boa sorte”.

    A segunda história é sobre outra pessoa que, de um jeito diferente, também me cativou instantaneamente. (Alô, Lilian!) É uma amiga da minha familiar residente em Brasília, com quem passei esses tão bons dias (Alô, tia Elza!), que por ela tinha sabido de mim e de nossas paixões comuns (inglês britânico, História, Jane Austen, Londres, e afins) e assim queria me conhecer.

    Ela chegou e simplesmente preencheu a sala com seu sorriso. Cumprimentou-me com uma familiaridade tão amiga e tão simpática, contou-nos umas histórias de sua recentes aventuras na Europa, resumidamente descreveu os lugares por onde passou, deu para mim uma lembrancinha de Londres  - delicadeza que nem precisava ter feito, que outra pessoa com certeza não faria, afinal ela nem me conhecia! - e foi embora, me deixando absolutamente encantada, pensando “Que pessoa mais alegre, que alto astral contagiante! Como precisamos de pessoas assim no mundo!”

    Eu contei tudo isso só para ilustrar quanta diferença não faz um sorriso. E como é incrível o poder de uma disposição alegre em transmitir boas energias, e não só contagiar, mas conquistar; tornar um dia bom melhor ainda e melhorar um que parecia prometer-se ruim. Como é mais abordável uma pessoa sorridente que uma de cenho franzido e expressão fechada, como é mais gostoso receber um cumprimento com alegria que um com frieza, por educação. Como parece até mais saudável viver com um sorriso!
    Não estou dizendo que todos devemos estar felizes e saltitantes o tempo todo, até porque isso não é possível. Todos temos aqueles dias em que chorar é simplesmente muito mais confortável que sorrir, aqueles dias em que é mesmo difícil tentar transmitir uma alegria e uma serenidade que não sentimos. Mas, na maioria dos dias, eu acredito, nós somos, sim, capazes de escolher entre dar um “bom dia!” com energia ou um “bom dia” no modo automático. Podemos escolher - entre tantos problemas, que aliás muitas vezes exageramos e superestimamos, e tantas intempéries que irremediavelmente povoam a vida de todos nós - manter no rosto um alegre sorriso.

    Parece extremamente simples, o generoso ato de sorrir, e no entanto, não é tão comum que sua presença chegue a ser um agradável normal. É um simples que se torna especial principalmente se considerarmos a frieza, a civilizada indiferença, a distinta má vontade de muitas pessoas umas com as outras, que por vezes não preocupam-se nem em serem minimamente corteses... Eu fico olhando algumas cenas, observando algumas pessoas e pensando... Gente, nós somos todos irmãos, do pó viemos e ao pó igualmente voltaremos, não temos motivo para sermos hostis uns com os outros se podemos ser gentis...

    Por isso, aqui deixo um singelo apelo pelo sorriso, pelo bom humor, pela alegria e pela gentileza. Não só por seus poderes inebriantes, de dardejar corações por aí, como por sua pureza e sua vivacidade, seu poder de propagar-se, irradiar-se. Que não subestimemos a força que tem um sorriso, e não deixemos, sempre que possível, de exercê-la, praticá-la, continuá-la.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Aos nossos heróis...

                                                                  

    Outro dia, parei para examinar o verso de nossas moedas. Nada mais indicativo de uma enorme falta do que fazer. Mas, não me xinguem, leitores, pois não é que a falta do que fazer se mostrou imensamente produtiva? É o ócio criativo, como gostava de pontuar Bertrand Russell, meu admirado filósofo, e como gosto de pontuar eu mesma, adepta de sua filosofia, que advogo a todos uma porçãozinha de ócio diária para o bem estar e a criatividade. Meia hora passada todo dia a humanamente vegetar - sem fazer nada, sem voluntariamente pensar em muita coisa - é o suficiente para relaxar o cérebro e depois vê-lo pipocar de boas ideias.

    Mas, enfim, sabem o que verifiquei no outro lado das moedas? Que lá estão encravadas figuras que deveriam ser - ou assim erradamente são consideradas, até pelo privilégio de ganharem essa posição - os nossos heróis.

    Ressoem os tabores, e que faça-se ouvir, nas próximas ilustres linhas, toda a minha reverência.

    Na moedinha de 5, “Tiradentes”, o homem morto careca e sem barba que, com a invenção da República, ganhou feições e cabelos de Jesus, e status de mártir; o alferes que queria tornar Minas Gerais livre de Portugal, para ficar livre de seus incômodos impostos e suas leis engessadoras e arbitrárias, apenas para fazer as suas próprias, e poder governar o Estado como bem entendesse, servindo aos próprios interesses.

    Nos 10 centavos, D. Pedro I, nosso exímio imperador, que nos tornou independentes de Portugal apenas para nos vender à Inglaterra - dependência da qual ainda penaríamos por décadas a fio -, que contratou corsários por verdadeiras, e brasileiras, fortunas para acabar de expulsar portugueses (um português expulsando portugueses!) daqui, nas guerras de independência... Governante realmente inspirador, que, além de tudo, ainda era safado e sem vergonha, tendo vários affairs notórios, entre eles o mais famoso, com a Marquesa de Santos, e tantos outros, talvez nem todos ainda devidamente identificados por historiadores.

    Na moedinha de 25, junto ao brasão da República, Deodoro, o marechal que proclamou-a sem, contudo, realmente acreditar nela. Isso mesmo. O homem que nos fez República era conhecido monarquista, que dizia “O único sustentáculo do Brasil é a monarquia; se mal com ela, pior sem ela". Mas, que, mesmo contrariado, para o bem de todos e a felicidade geral das forças armadas, menos de parte da marinha, concordou em dar o brado retumbante. Declarou a república e governou-a provisoriamente de modo bastante desastrado, muito aproximando-se de nomes monarquistas, conduzindo relações de atrito com grupos de fazendeiros, elites políticas estaduais, que lhe fizeram oposição, derrubaram, e depois apoiaram a dura presidência florianista.

    E, por último, o Barão do Rio Branco, na moeda de 50, e dando nome à uma das principais avenidas de Juiz de Fora, do Rio de Janeiro, de sabe-se-lá-mais-onde, além é claro, à capital do estado que anexou ao país e à nossa escola formadora de diplomatas. Não estou aqui desmerecendo os feitos do homem, que foi um inegável marco na diplomacia brasileira, mas além de conduzir as negociações de compra do Acre, e de trabalhar, com muita destreza, no nosso Ministério das Relações Exteriores por muito tempo, ele nenhum outro grande bem fez ao Brasil e aos brasileiros.

    Não me entendam mal. O que estou querendo com esse deboche não é denegrir a imagem ou diminuir a importância que, apesar dos pesares, todas essas figuras tiveram na história brasileira. O meu objetivo com ele é, sim, dizer que, embora importantes e marcantes, essas pessoas não foram, não são, e jamais serão os nossos heróis.

    Os nossos heróis, nossos verdadeiros heróis, que merecem toda a reverência, toda a homenagem e todo o nosso respeito, são os heróis ocultos. Pessoas cujo nome não constará no registro histórico, cujo trabalho é formiguesco e aparentemente pequeno e insignificante; pessoas que vivem uma vida escondida e viverão uma morte discreta, restando em túmulos comuns, que não serão muito visitados ou badalados, não tendo estátuas ou bustos que os acompanhem.

    Os nossos heróis são os nossos professores, pessoas que trabalham em transmitir o seu conhecimento, semear cultura e informação na cabeça e na alma dos nossos pequenos - trabalho que fazem, muitas vezes, sem as básicas condições necessárias, sem um material em bom estado, sem um salário que seja equivalente à importância do que fazem ou mesmo dignamente suficiente para sua confortável sobrevivência e, sobretudo, sem o reconhecimento que pede tão nobre trabalho.

    Os nossos heróis são os nossos médicos, principalmente aqueles da rede pública, verdadeiros gladiadores da saúde, que têm que trabalhar dia após dia com um excesso de pacientes para uma escassez de recursos, com sobrecarga de horas, com indevidas condições de aparato para exames, diagnóstico, tratamento, de remédios e outros elementos imprescindíveis para o adequado atendimento, e, mesmo assim, se esforçam em dar o melhor cuidado que podem oferecer, de forma mais humana e sensível que muitos médicos de rede particular.

    Os nossos heróis são os homens do campo, que com pouco ou nenhum incentivo - e muito menos reconhecimento -, levantam cedinho, todos os dias, faça chuva ou faça sol, e trabalham duro por horas seguidas para pôr a comida na mesa de todos nós.

    Os nossos heróis são os assistentes sociais, que muitas vezes, na mesma insofrível escassez de suporte e apoio, tentam dar um lar, um melhor destino, às nossas crianças abandonadas, ou órfãs mesmo tendo pais e casa, trabalhando pelo futuro delas. São aqueles que trabalham pela agricultura, a educação e a saúde, pelo esporte, por nossa literatura, pela sustentabilidade, por essas e outras áreas tão negligenciadas por nossas autoridades, tão sucateadas e desvalorizadas por esta “ordem” maluca que vivemos. São pessoas, enfim, como o Guilherme, o Maicon, o Marcelo, o Darlon, ou o Vicente - que trabalha em dias alternados numa loja, e nos dias de folga abre sua garagem, cheia de livros, gibis e alguns violões, para ensinar música e inglês para jovens que queiram, ou apenas para eles ali passarem o tempo de forma construtiva e sadia, e diz que “não estou ganhando nada não, mas enquanto eles estão comigo, não estão perdidos na rua, talvez mexendo com drogas”. Pessoas que trabalham pelo futuro, e pelas pessoas, servindo aos interesses de algo maior que seu bem próprio, numa doação enorme e sincera, para o país progredir e não retroceder. Essas pessoas que, como eu disse, fazem tanto, merecem tanto ou mais, mas recebem de volta tão pouco, em todos os sentidos.

    Eu dedico este texto (como dediquei meus minutos de hoje de reflexão e puro e produtivo ócio) a essas pessoas. É uma homenagem parca e insuficiente para vocês que merecem todo o nosso aplauso e agradecimento, a oficial reconhecença, e as moedas, que em tão triste quantidade lhes passam pela mão, preenchidas por figuras que, ao meu ver, têm seu merecimento heroico que pode ser relativizado, e recebem uma homenagem da qual vocês são muito, mas muito, mais dignos. Pois, mais dignos vocês são de serem chamados “nossos heróis”.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Vagões femininos - um problema do século XXI

   Muito recentemente, li que estava sendo debatida, na Inglaterra, a implantação de vagões femininos em trens e metrôs dada a significativa alta em crimes de assédio sexual - principalmente nesses meios de transporte - verificada por lá. Muito me abismou que um país de primeiro mundo como a Inglaterra tenha chegado ao ponto de sequer cogitar essa absurda opção, e a mera circunstância disso estar acontecendo aponta que o problema é muito mais grave e geral do que imaginamos.

    Quando entrevistada sobre o assunto, a feminista Laura Bates, criadora do projeto ‘Everyday sexism’, declarou “Para mim, [implantar os vagões femininos] seria um grande passo para trás. Quero dizer, colocar mulheres num vagão só delas essencialmente manda a mensagem muito clara que assédio e ofensas sexuais de homens para mulheres são inevitáveis, então nós bem podemos fechá-las a parte. Pra mim, é a mensagem errada. A mensagem deveria ser ‘a vasta maioria dos homens jamais sonharia em cometer essas ofensas, nós temos que pegar os ofensores,  aqueles que estão cometendo-as’. E é claro, a situação pode passar muito perto da culpabilização das vítimas. Se nós temos vagões femininos, e uma mulher não viaja neles e é sexualmente assediada, as pessoas então vão pôr a culpa nela por isso ter-lhe acontecido? Estamos indo na direção errada."

    Ah, enfim alguém com a cabeça em cima do pescoço e os olhos na realidade! Como eu fiquei grata de ouvi-la dizer isso, em meio a tanta gente aprovando a medida que, realmente, é um andar para trás. Segregar homens e mulheres para prevenir um assédio que é somente questão de educação? Sinceramente! Em que século estamos mesmo? XXI, ah é!

    No Brasil, os vagões femininos infelizmente já existem. Em São Paulo, a medida foi aprovada em julho de 2014. No distrito federal, vagões rosa rodam desde 2013, e no Rio, desde 2006. Algumas mulheres dizem se sentir mais seguras com a ‘proteção’, principalmente se estão viajando sozinhas tarde da noite, ou nos desagradáveis horários de pico. Algumas argumentam que se sentem mais seguras sabendo que há só mulheres em volta. Dizem que, já que acontece mesmo (a violência, o constrangimento, as fotos sutilmente intrusivas, o “passar a mão”, as tão variadas formas de assédio) nós podemos tentar nos manter em lugares menos propícios a isso.

    Gente, a questão não é de proteger-se contra uma acontecença certa! Isso é vergonhoso. Nós não precisamos nem de vagões segregadores nem de alfinetes contra os encoxadores! O que nós realmente precisamos é de uma reeducação urgente, de toda a população, quanto as questões de sexo, de gênero, de comportamento. Urge um programa de educação sexual nas escolas! Urge que os pais estejam presentes para os filhos, lhes ensinem o certo e o errado, conversem com eles  abertamente e, principalmente, lhes deem o exemplo!

    Nós precisamos que meninas de 14 ou 15 anos não achem normal um cara sentar ao seu lado no ônibus e começar a apalpar suas pernas, ou a mexer com elas de qualquer forma, em sussurradas provocações desagradáveis. Que elas não encarem esse tipo de violência como só mais um abuso com que elas tem que lidar diariamente. Que não achem normal nenhum tipo de constrangimento, coerção, intimidade forçada, de ninguém, nem de estranhos no transporte, nem de seus namorados. Precisamos que os meninos e jovens e adultos inocentes dessas ofensas percebam que elas acontecem e sejam patrulheiros do próprio sexo. Que aqueles que as cometem saibam que isso é intolerável e não deve ser praticado. Que todos passem a jamais imaginar realizar um ato nessa linha de comportamento - pela simples razão de ele ser impraticável, absolutamente inadmissível. Precisamos que mulheres e homens aprendam a se respeitar, e respeitar aqueles ao seu redor, como iguais, como pessoas cuja integridade moral e física deve ser respeitada, vendo-lhes como uma moça que poderia ser sua irmã ou um rapaz que pode vir a ser seu marido.

    Precisamos que as pessoas aprendam a se conter, a visualizar o espaço do outro, e não praticar aquilo que pode vir a incomodá-lo. Que não vejam corpos como aparatos para conseguir seu prazer, sua satisfação, e sim como parte de uma pessoa, um indivíduo, que merece ser amado e respeitado inteiramente. Que meninos e meninas deixem de encarar a virgindade como um estado vergonhoso, que deve ser perdido a qualquer custo, e a ‘inexperiência’ - por timidez ou reserva, por querer preservar-se, por simples acanhamento, por qualquer motivo - como um comportamento careta, digno de riso e deboche e que, se possível, deve ser ‘consertado’ por influência, revertendo-se à irreverência que, neste caso que abordamos, é insolência, descortesia e afronta, um ultraje. Que cada um viva sua sexualidade conforme se sente à vontade, sem pressões, e sem molestar o limite do outro, que seja um desconhecido ou um parceiro. (E que não tenhamos mais que tolerar campanhas como aquela “não mereço mulher rodada” que redutoramente julga o caráter da mulher pelo status de sua atividade sexual, e rotula liberalidades - femininas - como amorais e repulsivas, peso que não recai sobre o mesmo ‘estilo de vida’, se masculino.)

    Não estou dizendo que medidas não devem ser tomadas contra os assédios, tampouco estou sugerindo que todos tomem votos de castidade. Não é isso. O que faz-se essencial é uma reeducação sexual que abranja as condutas básicas. Uma conscientização, um abordar o mal pelo seu começo, que faça com que medidas como essa dos vagões femininos - por sua natureza, ridículos - não sejam necessários. Uma revolução no pensamento e no modo de agir que faça com que a violência não seja o normal esperado, seja a exceção abominada, e devidamente punida. Que faça com que os registros desse tipo de ofensa baixem a um mínimo, e não surpreendam desagradavelmente os hóspedes ou visitantes que recebemos, como na copa. Que faça com que nós, brasileiras, e brasileiros, também, por que não, nos sintamos seguros para ir de um lugar a outro, sem nos sentirmos ameaçados, podendo até nos permitir o flerte que pode rolar nas situações em que se passa horas, todos os dias, mais ou menos nos mesmos horários, confinado num mesmo transporte com as mesmas pessoas. Flerte, conversa ou conhecimento - que chega a desembocar em boas amizades ou em casamentos. E tudo com respeito, cada um e todos os envolvidos se sentindo à vontade, livres para dizer e fazer somente e apenas o que têm vontade, e perfeitamente seguros. Afinal, como diz o velho ditado “o seu direito termina onde começa o do outro”. Percebam as flores como vivem espaçadas umas das outras. Pois é, o dito popular sintetiza e a natureza ilustra, a natureza dá o exemplo. Toda flor precisa de seu espaço para desabrochar. Espaço, não confinamento.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Família, três pontos e uma certeza

                                                                     
    “Todas as famílias felizes são parecidas, as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira."
    Essa frase - talvez uma das mais célebres da literatura universal, a abertura do trágico ‘Anna Karenina’, obra prima do grande Leo Tolstoi - contém um pensamento que já me pareceu acertado, mas do qual, hoje, eu preciso veementemente discordar. Desculpe, Tolstoi. Eu continuo admirando-o fervorosamente, e se estou discordando e questionando nesse momento, só me provo mais ainda uma tolstoiana, tendo desenvolvido faculdades suficientes para, a partir do embate de ideais, parturiar a minha própria. Então, não se zangue comigo.
                                                                 

    Recentemente, caro Tolstoi e queridos leitores, assisti ao filme ‘Boyhood’, e ele me fez pensar que não, nem todas as famílias felizes se assemelham umas às outras. As famílias felizes, também, são felizes cada uma de seu muito diverso jeito próprio.

    No filme, o menino protagonista tem uma família, digamos, moderna. Seus pais nunca foram casados; sua mãe passa por vários relacionamentos problemáticos, numa aparente extrema necessidade de autoafirmação, e é a provedora da casa; enquanto o pai, em contrário, não é o que dá o sustento, mas o que dá a alegria, o principal humano suporte, um verdadeiro ‘cool dad’ que conversa, brinca, ri, está realmente envolvido com os filhos. Ele demora a se assentar, conhecendo seu par - anos mais jovem - apenas anos depois, e tendo com ela mais um menininho, o irmão pelo menos uma década e meia mais novo que os outros dois.

    A minha família - e a maioria daquelas com as quais tenho conhecimento e convivo na minha muito aristocrática Barbacena - se encaixa no modelo tradicional: papai, mamãe, filhinhos, morando numa casa fixa ao longo de sua existência, vivendo um casamento que muito lembra uma pecinha de lego - frágil e sólida, ao mesmo tempo, um cubinho que se desgasta com o tempo, tem as arestas danificadas, a cor e o brilho um pouco desbotados, mas se sustenta, simplesmente não se dissolve ou quebra, e é tão pequenina que parece insignificante, um detalhe normal ao qual nos acostumamos e que não parece ter muita importância, embora, no conjunto da obra, a vida, depois perceba-se que ela é essencial e que sem ela, a pecinha pequenina, o espetáculo não existiria, sua montagem seria fraturada, incompleta, um vazio preenchendo espaço.

    Esse meu tipo de família, eu creio, está em franca extinção. Mas A Família, não. O conceito se expandiu e diversificou, se reinventou, está mudado e mais amplo, sim, mas não morreu, nem caiu em desuso. Porque a Família, em si, permanece, continua, para sempre.

    O que estou querendo dizer com todo esse enrolê é o seguinte: uma vez, ouvi alguém dizer que a vida é como um trem, que tem estações e estações nas quais vai parando, onde gente vai embarcando e gente vai nos deixando, umas pessoas saltando para dentro, outras para fora, num ciclo que só se encerra quando o trem para e a gente morre.

    Pois é, a vida é mesmo um trem (que não necessariamente vai nos atropelar, viu gente? se, é claro, não nos enfiarmos embaixo dele), um trem no qual todos são passageiros, exceto o motorista e o trocador - e a sua família. Porque ela é a teimosia mais chata e mais importante que existe, o exemplo maior de uma força que não se extingue, aquela que os faz ficar grudados ao trem, sempre empurrando-o para frente, atravessando toda e qualquer intempérie com ele, numa constância quase inexplicável, de nome amor. Às vezes, você, no seu trem, vai até querer jogar a sua família para fora, colocá-los num vagão para deixar para trás. Ou, então, torcer o pescocinho deles de uma vez, ou mandá-los para a fila de execução na Indonésia, em regime de urgência. Vai fazer todas as cachorradas do mundo com ela, aprontar todas, e erradamente esperar vê-las voltando-lhe as costas, apenas para vê-la, ainda assim, apesar de tudo, pronta para você - pode até ser que seja com um chinelo -, mas ela estará ali, para você, por você, ao seu lado, para sempre.

    No filme, vemos exatamente isso. Tantos personagens passam à medida que o filme corre, e o menino vive. Todos vêm, e invariavelmente vão. Os únicos que estão ali o tempo todo, em cada cena, acompanhando episódio por episódio, a completa trajetória, são os pais dele, e a irmã. A sua família.

    Eu, que não estou muito longe nada da fase na qual Mason termina o filme, vi quanta verdade estava encravada ali, naquela longa sequência de cenas tão real, ao mesmo tempo extremamente simples e simplesmente extraordinária, como a vida de cada um de nós. Todos vão passando, aquele que chamou de melhor amigo, o companheirão de videogame na infância, o colega de futebol, o professor que inspirou. A pessoa a quem deu a primeira piscadela, com quem teve o primeiro beijo, a primeira vez. Os filhos das pessoas com quem seus pais se relacionaram, de um modo ou de outro, e essas pessoas também. Todos, todos, todos vêm, fazem parte da sua viagem por um tempo, e depois vão embora. Somem, somem mesmo, num processo natural. Menos a sua família, que ainda está ali, que está sempre ali, e estará ali para sempre, mesmo quando em memória. Essa força que eternamente nos empurra para frente e nos traz de volta. A mágica real que, igual ou diferente, moderna ou tradicional, feliz ou não tão feliz assim, permanece, continua, transcende o tempo, junto com o tempo, em todas as suas badaladas. A família, a única certeza que temos.