quarta-feira, 27 de abril de 2016

Palavras em pares: entre o poeta e o romancista

                                                                      
                                     
          A palavra é uma só. Uma palavra só pode ser mesmo uma, uma única. As palavras são, em si, as mesmas, independentemente de onde estão, e como são manipuladas, empunhadas, manobradas. Entretanto, que diferença não faz justamente esse modo como são organizadas, ou bagunçadas, a estrutura, a forma, o como são colocadas aos pares, aos trios, aos grupos, às tribos...
   
    A unidade essencial do poeta é o verso. Para ele, cada pedacinho constituinte de sua obra é o verso; ele o ama, fica a venerá-lo como à sua musa, ele que é a sua menor partícula, o seu centímetro, e seu cerne. O romancista já age diverso, mede seu trabalho por linhas, não por versos. Por linhas ele o constrói, como tijolinhos, e a essas linhas o mais importante nutriente é a massa que as cola juntinhas...
   
    O verso privilegia a forma, a estética; ele é individualista, brilha mais fácil se sozinho que a linha. Para o poeta, mais vale um único verso inesquecível que uma completa antologia apenas boa. Para o romancista, em oposição, uma bela linha não é sua maior conquista, seu grande feito, porque o valor da linha, de cada uma, está em seu conjunto com outras, no coletivo do qual ela é parte, uma linha mais uma linha mais ainda outra, encarrilhadas parceriosamente, vão fazendo o romance, a prosa.
   
    A linha carrega, primariamente, conteúdo em detrimento de forma, e ela carece necessariamente de suas irmãs e filhas e cônjuges para contar sua mensagem, anunciar a que veio, sussurar seu sentido, completo conteúdo. O romancista, então, assim, como o costureiro, vai atando as linhas, pacientemente, aqui e ali, unindo os tais fios, casando com carinho suas pontas, se agulhando no processo também, de quando em quando... Tudo porque sabe que, só assim, assim e de nenhuma outra maneira, poderá estar no caminho de tecer alguma coisa boa.

    O trabalho do romancista mais se aproxima daquele do costureiro que do poeta. Este, pois, muito mais grandemente lembra aquela do escavador, do garimpeiro: o poeta é aquele que, no rio, ao léu, ou na mina, cavernosa, em sua abundância de ideias, vive a peneirar, procurar, esperar. Garimpar por uma ideia, um versinho que Pimba!, se ressalte, brilhe mais do que todos os outros, resplandeça em som esplêndido, seja marcante ao parir-se, e permaneça ao morrer-se. E, achando-o, mesmo assim o poeta trabalha: ele o morde, aperta, amassa, joga contra a parede, lhe põe provações, torce e distorce, para só então assegurar-se de que, de fato, ele vale. Ele é ouro.   

    O trabalho romancista, em contraponto, é muito menos pontual, mas não menos ardoroso. É costureiro, exigente de enormíssima paciência. De amor. Ele constrói-se só em progressão, é um processo, não um momento; tem que ocorrer em continuidade, erguendo-se devagarinho, ao passo que o do poeta é todo mais instintivo, fruto e virtude do agora, que vem e some como um raio.

    Os instrumentos são diferentes, as habilidades pedidas, mas as durações, sobretudo. Um linha não faz poema e, sozinha, tampouco faz um romance. As linhas ligadas, entrelaçadas, deitadas em junto consumo, contínuo, imparável, precisam de tempo para construírem-se. Elas se formam, devagarinho, nas vias do coração do seu autor, até ousarem caminhar a trilha dali às suas mãos, ao lápis ao papel, ao seu derradeiro lugar nele e no coração do leitor. Elas são lentas, vagarosas, pacientes, tanto quanto é o trabalho daquele que com elas trabalha.
   
    E no âmbito da serventia desse ofício, o trabalho do operário dos panos e tecidos também muito mais assemelha-se ao do romancista que ao do lavrador de versos: um romance, narrativa comprida e larga e grande, quando bem feitinha, torna-se cobertor de alma. Por um escolhido tempo, talvez uma noite, talvez várias, talvez todas até o fim, aconchega. Aconchega, acalenta, aquece, acaricia - ainda que, por vezes, possa ter também soltas e mui naturais pontas que pinicam, incomodam, inquietam.
   
    A poesia, por sua vez, toda oposicionista, é direta, desnuda, arranca violentamente qualquer cobertura. Ela não cobre nada. Ela expõe, exibe, atreve-se, entrega-se. É a expressão palavrada símbolo do grito, do escancaro, do tapa, da nudez nas mais possivelmente completas formas. É coisa que vai, ocasionalmente volta, quase sempre escondidamente fica, cuja beleza jaz em como é frágil. Na sua fugacidade, e perene efemeridade.
   
    Para o mundo ser completo, com as letras todas bem exploradas, os íntimos humanos todos bem tratados, com o necessário afago da palavra, precisamos todos de uns como de outros, daquele que maneja a linha, daquele que manobra o verso, daquele raro espírito que, habilmente, sabe exercer os dois ofícios.

    E viva a palavra! Ela que é o carrilhão essencial viabilizador de sonhos...

    Quer sejam prosaicas, quer sejam poéticas, que sejam palavras. Que sejam sonhos...
    

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Por que(m) estamos brigando - parte II

                                                                              
                                          
   Lástima, ridículo, tragédia. Choque, embasbacamento, desilusão. Creio que essas palavras sumarizam bem o que presenciamos no último domingo e as sensações que nos marcaram então - senão a todos, gosto de pensar ao menos a uma razoável porcentagem de nós.
   
    Saudades do 7 x 1? Ouvi algumas pessoas dizendo que sentiram. Preciso dizer que consegui entendê-las. Na memorável partida, vimos Alemanha versus Brasil - ou, aliás, a seleção alemã de futebol versus a seleção brasileira de futebol. Domingo, vimos brasileiro contra brasileiro. Particularmente, essa é uma de minhas maiores tristezas. É auto-sabotagem. É tolo. É, vamos e venhamos, uma mestra expressão da arte da burrice.
   
    Os tantos clamores que ouvimos confirmam o que comentei anteriormente: nós somos míopes e individualistas, uma “irmandade” toda cheia de ranhuras. “Pela minha mãe, meu pai, o papagaio e o cachorro”, “por quem me elegeu e por Deus” (será que Ele é mesmo brasileiro?) são falas sistemáticas que ilustram bem como cada um de nós pensa por si e pelo seu grupo, não pelo todo. Como só vemos o particular, nunca o geral; só o privado, jamais o público; só o “meu”, nunca o “nosso”.
   
    Como, entrando em confronto entre nós, perdemos a noção de que o bem buscado é comum e que, se fosse mais igual, beneficiaria a todos. Como, pensando em um (incerto) ganho imediato, deixamos em segundo (terceiro, quarto, último) plano o pensamento de longo prazo. Como, em clima de festa, que nos divide em times estupidamente rivais (e, francamente, parece estar insanamente celebrando o encontro do Titanic com o iceberg), nos esquecemos das consequências da bagunça e da sujeira que ela está causando.
   
    Não quero ser simplista - esta que, aliás, parece ser outra doença crônica do brasileiro, reduzir todo um conjunto de fatores complexo que explica a situação a um ou outro simples aspecto. Atribuir responsabilidades, avanços ou lambanças, de todo um corpo de pessoas a somente uma ou outra eleita para Cristo. Mas, se há uma luz em tudo isso - e eu preciso acreditar que há - é que aprendamos.

    Que aprendamos que nossas escolhas têm consequências. Que se contratarmos palhaços, eles farão palhaçadas. Que aprendamos, conforme o velho e tão sábio ditado, que a união faz a força. Que a divisão só traz fragilidade.

    Que escolhamos melhor quem estamos permitindo (pagando para) que fale por nós. (Sim, por Nós!) Que enxerguemos feitos, não discursos; projetos e ideias, não rostos e pessoais simpatias. Que joguemos no chão esse edifício todo cheio de rachaduras, apartamentos que nos dividem, e ergamos em seu lugar uma oca. Uma oca mais sólida e mais coesa, em que todos percebam que se afetam igualmente por todos os danos que a casa sofrer. Uma oca em que todos percebam que as divisões entre si não são a seu benefício, mas a seu prejuízo.
 
     Uma oca que é nossa pátria e nossa nação. Uma oca, uma terra e um país que possamos chamar de lar. De, verdadeiramente, nosso Brasil.

domingo, 17 de abril de 2016

Por que(m) estamos brigando?

                                                                               

          Em um de seus muitos livros que já li, em um parágrafo brilhante que entre eles não consegui encontrar para citá-lo aqui, Philippa Gregory empresta sua voz a um de seus personagens para fazer afirmação muito contundente: a Inglaterra do início da época moderna não era realmente um país. Era um território mais dividido que unido, onde famílias ricas e influentes brigavam entre si por ocupar o poder, esquecendo-se - ou deixando-se esquecer - da terra que administravam, do bem comum que deveriam estar buscando, do povo que das consequências de suas decisões vivia ou morria, padecia ou celebrava. Eram Howards, Tudors, Boleyns, Cromwells, Dudleys e alguns outros clãs dos quais devo estar me esquecendo. Era um conjunto de vilas e grupos comandados por eles. Não era A Inglaterra.

          O Brasil, não no século XVI, mas no XXI, sofre parecido. Podemos nos utilizar deste mesmo raciocínio para descrever a situação que vivemos. Ou não é verdade que, mais do que de quaisquer bandeiras ou projetos ou ideias, nós vemos um confronto de grupos - a bem da verdade, entre si mais semelhantes do que dissemelhantes? Ou não é verdade que somos chamados a "tomar partido", a "escolher um lado" numa conjuntura em que muito mais produtivo que trocar raivosos brados desperdiçados seria que déssemos todos as mãos e gritássemos, juntos, num único sentido?

        Ah, falar sobre isso me aborrece! Como me aborrece! Aborrece-me porque é do interesse de quem quer dominar uma massa tê-la toda fragmentada, toda fracionada, brigando entre si, servindo a interesses que não são seus, que não lhe beneficia. Porque, enquanto continuarmos não enxergando isso, não superaremos essa condição que nos mutila e nos mantém encarcerada. Continuaremos sendo pequenos porque não conseguimos pensar grande. Pensando em times, não em unidade. Pensando em lados que supostamente nos representam e, em verdade, representam o que lhes convém, no momento que lhes convém, de acordo com o que lhes convém.

          Em suma, minha posição é esta: não tomemos posição uns contra os outros. De nada nos adianta incorporar esse espírito raivoso que nos é insuflado. Sejamos o Brasil, um país. Sejamos em vez de uma horda de dissonantes acordes mal juntados em música, uma orquestra. Sejamos, em vez de uma porção de fragmentadas partes parcamente coladas, um todo. Sejamos, ao invés de uma dicotomia pobre, ao invés de vários "eu"s desencontrados, um grande "nós", um plural rico e variado e sólido, um grande coletivo singular. Brasil.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

A positividade virou brega?

                                                              
   Brega. Cafona, antiquado, jeca. Fora de moda, ridículo, meretrício.

    Já reparou como a positividade e suas várias expressões têm sido consideradas assim? Ninguém pode mais acordar já vestindo um sorriso no rosto e ser feliz sem motivo sem que seja olhado como se fosse um doido coitado. Nem expressar confiança na melhora de alguma coisa sem receber um incrédulo resmungo de volta que mais ou menos diz “Aham, sei. Realmente. Acorda, colega.” Ninguém pode mais dizer algumas palavras de otimismo, de genuíno encorajamento a alguém, que logo é taxado de sonhador. E “ser sonhador” parece estar, em muitos círculos, sendo considerado brega, cafona, sinônimo de uma ingenuidade digna de zombaria e careta.

    As pessoas vivem falando das vantagens do pessimismo, de reduzir suas expectativas em relação à vida. Que não se surpreendem mais com nada porque “o mundo está indo de mal a pior mesmo”. Que “é melhor ser realista, já que estamos vivendo na realidade”. Uma mórbida apreciação por aquilo que transmite soberana melancolia, descrença, cruel e fria ironia para com as coisas parece estar se espalhando tragicamente forte...   

    Para combater isso, creio que nós - pessoas positivas, sem quê nem porquê - temos duas alternativas de argumento. A primeira é lembrar às pessoas o poder que suas palavras têm, a força de seus pensamentos. Pois, quando você desacredita em algum seu projeto, já está colocando nele seu primeiro obstáculo. Se você encara uma situação adversa (ou, realmente, qualquer situação) com olhar negativo, você de fato só vai enxergar seu lado ruim, vai ver problemas e dificuldades e empecilhos onde poderia ver soluções, desafios e possibilidades. A energia que a gente manda para as coisas tem o poder de moldá-las; a energia que transmitimos às pessoas a nossa volta tem o poder de mudar seu dia. Além, é claro, que toda ela volta em respingo ou reflexo para a gente também.

    Existe um ditado muito sábio que diz assim “quem quer fazer alguma coisa, encontra um meio; quem não quer fazer nada, encontra uma desculpa.” Creio que a maioria dos insistentemente negativos pode ser colocada no segundo grupo - a sua postura negativa é uma desculpa para sua apatia, sua falta de vontade ou capacidade de confrontar as coisas como elas são, e procurar um jeito de mudá-las. Deixar tudo como está é mais fácil. Confortável, cômodo. Mesmo que tudo esteja realmente ruim e precise urgentemente de uma repaginada. Mas a preguiça é muita, e parece mais respeitável e perdoável quando disfarçada sob o nome de pessimismo.

    A segunda alternativa de argumento é a relatividade. Tudo depende do ângulo de que você vê. Assim, se “brega” denota mau gosto, ou falta de gosto, é bom lembrar que “gosto” é subjetivo. Se “brega” é aquilo pouco refinado, que se apresenta de maneira inapropriada e cafona segundo à opinião de quem critica, então brega também pode ser, sob um diferente ponto de vista, ficar dizendo às pessoas que aquilo que elas mais querem é “pura tolice”. Brega - e incrivelmente desagradável, difícil de conviver com - pode ser aquela pessoa que sempre tem atitude derrotista para com as coisas, que é cética perante a tudo, e parece determinada a contaminar o mundo com esse derrotismo.

    Em suma, isso foi um desabafo. Desabafo de uma otimista nata que acredita na vida e nas pessoas e prefere sonhar com o impossível do que viver sem sonhar.

    Porque, gente, vamos conversar, viver é bom. Apesar das adversidades e por causa delas também. (Já parou para pensar o quanto nossa vida seria francamente sem graça sem dificuldades para fazê-la emocionante?) Sorrir sem ter porquê é ótimo, faz bem para alma, alivia e previne as rugas. A alegria pura e por si só colore qualquer dia cinza, é contagiante, irradia-se. E não é verdade que preferimos estar rodeado de gente animada, que põe a gente para cima logo que chega?

    E ah, se ser feliz sem motivo e muito de bem com a vida é brega, então que sejamos todos adeptos do brega! Eu certamente sou, brega declarada...

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Gente

    O mundo é feito por muitas gentes
    Múltiplas
    Mais do que as tantas que há em nós

    Gente que passa
    Gente que dá voltas
    Gente cuja via é o retorno
    Gente que pára e somente
    Gente que caminha sem parar
   
    Gente que apenas passa
    Gente que nos amassa
    Gente que nos adentra
    Gente que nos marca
    Gente que nos lembra
    Gente que nos esquece
    Gente que nos amarra

    Gente que nos desperta
    Gente que nos desperta outra gentes
    As tantas que há em nós
    Gente que nos desperta coisas
    Tantas coisas que a gente nem sabe
    Gente que nos adormece
    Gente que é um meio-dia
    Meio noite
    Sem sombra, sem lua

    Gente que crê
    Gente que descrê
    Gente cuja mente
    Pode-se dar de comida aos porcos
    (Pobres porcos!)
    Gente cujo espírito
    Fere-se voluntário com bisturi
    Gente que é brilhante e jamais cadente
    Gente que trai o universo
    Ao não sentir nada
    Ao não ser
   
    Ah, Esperança!
    Tu que tens a solidez da pedra
    e a metamorfose da rocha
    Alumia!
    As estrelas têm suas rotas e seus períodos
    Mas não desaparecem
    (Mesmo que as escuridões mais pavoneiem-se
    E puxem para si e seus enormes buracos de vazio
    A luz refletida - irrefletida)
    Diamantes não se perfuram
    Senão por cristais
   
    Há gente que faz
    Gente que não faz
    Gente cujo feito é o contemplar
    Gente cuja qualquer contemplação é um feito
    Gente que não contempla
    A oxigenada verdade
    De que o fazer por fazer
    É o pior que se pode fazer
    Antes nada fizesse
    Só contemplasse
    E mesmo sem prática
    Algo aprendesse 

    Gente que sonha
    Gente que anda para frente, corre, pula, grita
    Pula corda, corre-cotia, dona Chica admira-se!
    Gente que abraça a vida,
    E ainda tem que ouvir que é
    “um sonhador iludido”
    Eu pergunto se alguém, por acaso, pode   
    Ser sonhador demais para seu próprio bem?

    Gente que se pressiona pelo sonho
    Gente que se impressiona pelo pesadelo
    - Que nem sonhou mas pode
    Gente que dorme um sono tão profundo
    Que não tem sonho   
    Nem pesadelo
  
    Gente que diverte
    Gente que exaspera
    Gente que desespera
    Gente que incomoda
    Gente que acomoda
    Gente que só faz respirar
    Gente que só faz aspirar
    Gente que expira
    Gente que inspira
    Gente que suspira
    Suspiro
    Clara de ovo, açúcar
    Docinho, docinho