domingo, 29 de maio de 2016

Procura-se um amigo



    Não gosto de definir - especialmente no que concerne a pessoas, pessoas que nem conheço mas quero na minha vida. Definir é limitar. Às vezes, a gente pode cegar-se a pessoas maravilhosas e blindar-se de experiências belíssimas porque quem encontramos simplesmente não se encaixava nas características que estabelecemos previamente como essenciais. Assim, nem lhes permitimos a entrada em nossa vida, por uma questão de definição.

    Definir é necessariamente sinônimo de limitar. Porém, é preciso definir alguns elementos para ter parâmetros. Afinal, sem o mínimo de clareza quanto à sua busca, você não vai saber quando encontrar justamente o que procura. Portanto, aí vai uma receita, com os requisitos básicos que estou a procurar num amigo.

    Procura-se um amigo. Características desejadas:

    Geral: não importa a cor, a altura, a largura, a ascendência. A religião, a crença. De preferência, será uma aquarela com vários tons de várias cores, o mais colorido melhor. Uma aquarela grande ou pequena, anãzinha ou gigante, fina ou larga, tanto faz. Uma aquarela humana. De cores milhares, forma criativa, desenho único. O único tamanho do qual não admito variação é dos braços, que fazem o abraço. Este deve ser enorme. Vastíssimo, longuíssimo, intensíssimo. Ao mesmo tempo muito amplo e muito estreito. Abraço urso, sem hibernar, pronto para qualquer hora, de choro apoiado, de riso trocado, de silêncio encantado, de falação animada, de quietude tranquila e confortante, de um aperto que console. Que tanto quanto enorme seja seu abraço, gostoso seja o seu colo.
   
    Que seja europeu, asiático, africano, latino, brasileiro ou nômade permanente, eterno forasteiro, mas seja aberto e tolerante. Que saiba falar a língua dos vários humores e das várias situações. Que se adapte aos costumes e dialetos das minhas idades e fases, como eu certamente tentarei fazer em retorno.
   
    Que acredite em quantos deuses queira, em Moisés, Jesus, Maomé, Buda ou Chiva. Ou em deus nenhum, além de em si mesmo. Que acredite no destino escrito ou no destino que se escreve. Que acredite no verso ou no universo. Que, porém, absolutamente acredite em mim, e de mim jamais duvide. Que de meus planos jamais caçoe, minhas dores jamais satirize, de meus medos jamais faça lenda, conte história de terror ou riso. Que tenha fé em mim, na minha existência, na minha capacidade de evoluir e me tornar melhor. Que acredite no laço que podemos amarrar, que pode atar-nos de forma que ninguém desate.

    Rosto: o traço mais proeminente de seu rosto deve ser seu sorriso. Um sorriso perene, não importando a estação ou a circunstância. Um sorriso caloroso e luminoso. O traço menos destacado de seu rosto deve ser o sobrolho, ainda mais se for propenso a franzir-se. Deve ser apagado, praticamente invisível. Disso, não abro mão. Quanto aos olhos, que sejam cor de esperança. Quanto ao olhar, que seja amigo e carinhoso, belo e apreciador das pequeninas coisas. Que saiba identificar a eternidade de um momento de beleza.

    Coração: mole. De preferência, mole mais que maria-mole, mousse e gelatina. Mole por oposição a duro, casca-grossa, intocável. Mole de maleável, de empático, de compreensivo. Mole por capaz de se colocar no lugar do outro e no meu, e sentir suas (e minhas) dores sem sofrer por elas. Mole com sabedoria, e consciência de que não se pode bombear o sangue e os problemas do outro sem necessariamente sobrecarregar o caminho dos seus próprios.
   
    Que seja mole, no sentido de que não se quebre ou entorte ao sofrer impacto, mas retorne a intensidade da força aplicada com uma força igual, e tenda sempre ao equilíbrio. Que seja amável ao contato da mão, e de outro coração. Que faça conexão, e não tenha um sistema muito sistemático. Que seja ritualístico e cuidadoso com os pequenos gestos de grandeza imensa. Que, porém, não seja insensível à arte do improviso, nem muito incompetente nela, e que saiba que acasos e ocasos acontecem.

    Que seja firme e constante, mas não rígido. Que não seja permissivo a explorações e saiba rebelar-se e libertar-se delas quando são dirigidas a si e identificá-las quando acontecem a mim. Que seja bom em persuasão para me fazer enxergar tais explorações e estratégia em me ajudar no levante para abandoná-las. Que, contudo, sobretudo, seja um pouco mais permissivo e menos rígido quanto aos meus erros. Eles serão muitos. Eles serão enlouquecedores. São eles o atestado de existência do que há de pior em mim, tanto quanto, porém, de melhor: a minha humanidade.

    Que perdoe meus deslizes, esqueça meus lapsos, lembre minhas lambanças (para rir delas comigo), gentilmente aponte meus equívocos e jamais corrija minhas imperfeições. E que me ame assim mesmo. Que esteja disposto a me ouvir, dar-me atenção, esperando decerto recebê-la em troca, como devido intercâmbio. Que saiba abrir sua aorta e ser pelo amor eterna e repetidamente constipado.
   
    Procura-se um amigo. Não posso pôr anúncios nos jornais, porque para esse pesado encargo não darei mensal recompensa. Não posso fazer rifa, porque o prêmio concedido não será sorteado num único dia e entregue num pacote, mas destilado em longo período e entregue em forma de risos e sorrisos, abraços, colo, companhias e micos, tudo isso mais energia que matéria.

    Não posso pedir ao gênio da lâmpada, porque ele não pode concretizar-se em fumaça, a partir de uma polida de metal. Posso pedir ao universo, somente, e formular meu pedido em palavras, para que o primeiro quando achar viável me envie um candidato, e a força das segundas talvez faça surgir um voluntário.
   
    Procura-se um amigo. Alguém se oferece?

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Questão de proporção

                                                                    
    
    Proporção. Relação das partes de um todo entre si. Dimensão, tamanho, importância. Harmonia, equilíbrio.

    Para ir direto ao ponto, creio que a proporção é um ingrediente essencial do saudável bem-viver. Se colocarmos uma maior pitada dela em nossos dias, viveremos melhor.

    Tudo é uma questão de proporção. As coisas têm o valor e o tamanho que nós damos a elas. Nada mais. Elas não são por si mesmas, a despeito de nós, apesar de nós. As coisas são o que fazemos delas. (E dentre essas coisas, estou falando literalmente de tudo. Das posses e dos pertences, dos objetos, dos objetivos. Das experiências, dos espaços, dos problemas, das preocupações. Das cobranças e das exigências, das tarefas. Dos sentimentos, das pessoas. )

    Proporção e perspectiva, portanto, fazem um par bonito que nos ajuda a viver a nossa vida, a pintar o quadro de nossa existência. Ele parece nos dizer algo como “viva a vida, porque ela passa” ou “fique tranquilo, você vai morrer mesmo.”
   
    Quando temos um problema, é bom colocá-lo na chave da proporção para lidar com ele ou, realmente, até para verificar comprovadamente sua existência (que às vezes é inventada por nós). Se você diz “acho que tenho um problema”, é bom que se pergunte “ele me impede de viver, de respirar, me impede de ser inteiro, de ser feliz?”. Na maioria dos casos, a resposta é “não” - ou é “sim”, no quesito de impedir-nos de ser feliz, só porque nós o permitimos. Porque nós damos ao contratempo (que rara vez é realmente um problema)) proporção maior do que ele de fato tem. Porque nós damos a ele o poder de nos afetar.

    No caso de a resposta às citadas perguntas ser sim, um sim resoluto... Então o problema é muito provavelmente de fato um problema. Mas, é bom que, a respeito desse problema, pensemos, como um amigo recentemente me disse: “daqui a um ano, seis meses, digamos, ele estará resolvido? Dissipado? Eu ainda poderei rir disso, me perguntar por que bulhufas eu sofri? Consigo me ver um dia contando-o a alguém com um sorriso, ou lembrando disso como uma forma de aprendizado?” Se mais uma vez podemos dizer sim, então ótimo. Temos um problema. Encaremos o problema. Nós o resolveremos, ou ele se resolverá. Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.

    Da mesma forma, se você se diz “quero tanto fazer tal coisa, falar com tal pessoa, mas não tenho tempo”, é bom que pergunte a si mesma “Será? Será que não tenho mesmo tempo? Será que não tenho tempo porque o ocupo com tantas coisas desimportantes que não sobra quase nenhum para as importantes? Será que eu realmente não tenho tempo, ou eu o tenho e só não o administro bem?” O tempo existe. O tempo é. O tempo está aí. O relógio anda igualmente para todos. A sensação desse andar é que é diferente, em razão de nossas ações nele. Da proporção desse tempo que dedicamos a cada ocupação.
   
    Em suma, proporção. Lembremo-nos dela como uma chave para muitos entraves, muitas fechaduras. Lembremos que tudo (ou, suavizemos, quase tudo) é questão de proporção. E que essa é uma questão que pode ajudar a responder muitas outras. A dar-lhes respostas talvez mais tranquilas, mais bem cabidas, e mais sábias.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Em busca de silêncio

     
    Silêncio.
   
    Ouviu? Está ouvindo?

    Silêncio. É uma palavra bonita, que crisma um belo som. Um som lindo e raro.

    Raro numa medida extrema que talvez não deveria. Quantas vezes a gente ouve, realmente ouve o silêncio? O som do silêncio, do nosso silêncio? Quantas vezes, silenciando tudo, todo o resto, desligando a cacofonia do lá fora, a gente se ouve? No nosso silêncio, quantas vezes a gente ouve os nossos barulhos - até que eles se tornem sons?
   
    Poucas, eu acredito. Pouquíssimas. Poucas demais para nosso próprio bem. Porque o caos nos envolve e nos engole. Porque tantas são as exigências, as tarefas que temos que cumprir, as coisas de que temos que dar conta, tantas são as gentes - as gentes, em sua mor parte, tão barulhentas - que nos rodeiam, o tempo todo... Quase ninguém consegue passar um bom tempo sozinho, a sós consigo, com seu íntimo.

    E, não raro, quando conseguimos, quando enfim temos um ínfimo tempinho para nós, quietinhos com nossa própria companhia, que fazemos? Ligamos o tal do celular e nos conectamos... Com um monte de coisas e um monte de gentes tão acessórias se comparadas à nossa essência... Nos conectamos com o mundo inteiro e nos desconectamos... de nós mesmos.

    Precisamos reestabelecer esse contato. Precisamos de silêncio, de um silêncio tão silencioso e tão particular que nos faça ouvir o nosso coração. Isto no sentido figurado, de atender os nossos anseios e desejos, de atender aos chamados do nosso eu interior (de vozinha tão suave e tímida perto da estrondosa barulheira do exterior mundano), e no sentido literal também. No sentido de ficarmos tão quietinhos, mas tão quietinhos, e tão em paz, que possamos tomar consciência completa de nosso corpo por uns instantes e nos deixemos inundar por essa consciência, ouvindo somente as batidas do coração, sentindo a vibração do pulso, o caminhar da vida circulando em nós, vermelha.

    Precisamos reestabelecer esse contato com nosso interior, esse diálogo viabilizado pela linda sinfonia do silêncio, porque a falta dele nos deixa ansiosos, nos paralisa, nos desencontra. Deixa-nos perdidos e bagunçados, apressados numa corrida cambaleante e sem rumo.

    Ao dizermos “sim” ao mundo inteiro, dizemos “não” para nós mesmos. Nos distanciamos de nós mesmos, nos desencontramos de nossa essência, já não sabemos quem somos. Se somos. Assim, quando perguntados, não sabemos vocalizar nossos sonhos ou nomear nossos maiores desejos, ou medos, porque não sabemos quais são. Não os conhecemos, porque não nos conhecemos. Nunca paramos para pensar ou, mais do que isso, nunca paramos para sentir. Nunca paramos, a bem da verdade, para (nos) ouvir.

    Precisamos de silêncio. Precisamos das energias e das ondas do silêncio para nos sintonizarmos na estação de nós mesmos. Precisamos diminuir o volume do mundo em nós, minimizar as interferências vindas do lá fora, do excesso de informação, da sobreposição desorquestrada de barulhos para sentirmos os nossos sinais. Captarmos o melhor sinal de nós mesmos, ouvirmos nossos próprios sons, os sons de nosso âmago. Para que entremos em harmonia com a melodiosa voz do nosso silêncio.
   
    “Ei, psiu!”

    Ouviu agora? Está ouvindo? Está sentindo?

    O seu silêncio está aí. Esperando, chamando, cutucando.
   
    Basta parar para ouvi-lo.