quinta-feira, 30 de junho de 2016

Os diferentes tipos de relógio

                                                                

  Dia desses, disse algo aqui que muito me aborreceu. Não me arrependo de tê-lo dito, mas incomodou-me pensar que não sei se acredito tanto naquilo.  A meu ver, acreditar no que se diz é o coração da sabedoria, a força que faz tanta diferença na realização do pensamento, plano ou sonho. Dizer aquilo no que se acredita, por seu turno, é o princípio básico da honestidade. E, se qualquer coisa, gosto de me pensar uma pessoa honesta.

    Eu disse “O tempo é. O tempo existe. O tempo está aí. O relógio anda igualmente para todos.” É esta última parte que tem me incomodado. O relógio não pode andar igualmente para todos porque não existe. O relógio não existe. Existem vários tipos de relógio. E os diferentes tipos de relógio não funcionam sobre o mesmo princípio, nem andam no mesmo ritmo, batem no mesmo passo.

    Ou não é verdade? Não podemos imaginar que o relógio de sol andava e batia igualmente ao relógio de parede, ao relógio do sino na torre da igreja, ao relógio de bolso, de pulso, do nosso mais presente celular. Todos são instrumentos de medir o tempo. Mas o tempo que cada um deles mede não é o mesmo.

    O relógio de sol media o tempo do ambiente, do ciclo natural que regia a vida, o dia e a noite, o plantio e a colheita de quem seguia as suas luzes. O relógio de parede media o tempo doméstico, da família no lar, da hora de cear, de rezar e de dormir. O relógio do sino media o tempo religioso, que confundia-se com o tempo social: o tempo de mirar o céu crepuscular, juntando as mãos e fazendo prece; o tempo de cultuar em coletivo, de conversar, flertar, negociar; o tempo de festejar e de fazer procissão.

    O relógio de bolso, como seus predecessores de pulso e de aparelhos móveis, mede o tempo do trabalho, da rotina, da obrigação, do sustento. O tempo de chegar, o tempo de sair, o tempo de pensar, o tempo de produzir. O tempo de existir? Ah, esses relógios tendem a diminuí-lo ao máximo!

    Além de todos esses relógios, temos ainda, cada um de nós, um outro, muito particular. Um relógio que não tem ponteiros, mas tem batidas - que podem ser como ritmado e suave canto ou como rufos de tambor. Um relógio cujo parar é perigoso, um relógio que pode quebrar sem conserto, um relógio que pode colar-se vezes e vezes de novo e assim tornar-se mais forte. Um relógio que não tem manual de instrução, já que sua mecânica é única e irrepetível. Humana e, como tal, praticamente indecifrável. Um relógio cujo tempo talvez nem mesmo seu próprio dono pode medir precisamente. Um relógio cujo tempo não se compara.

    Enfim, reconcilio-me comigo mesma nestas palavras. Não deixo de crer que todos esses tempos podem ser manejados por cada um de nós de forma muito distinta, como quis dizer anteriormente. Que temos escolha e que essa escolha faz toda diferença. Mas quero afirmar que de modo algum acredito que só exista um tempo, igual e constante para todos. Existem vários tempos, várias percepções e vivências deles. E para acompanhá-los, existem, é claro, diferentes tipos de relógio.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Heróis e heroísmos

               
                                                               
  Dia desses, ouvi uma discussão particularmente estarrecedora acerca do herói. É, do herói, da figura do herói, em sua forma mais genérica. Um dos alguéns discutindo fez referência à uma série ou minissérie (que, confesso, não parei para averiguar a respeito antes de escrever sobre) chamada Show me a hero, em que alguém aparentemente diz “Mostre-me um herói que eu te mostro uma tragédia”.
   
    Essa discussão girou em torno do que é narrativa, seus elementos fundamentais, seus formatos possíveis, e aquela da qual mais se falou foi a narrativa trágica, que é protagonizada por um herói. Pois, muito se disse, não havendo uma história trágica, uma catástrofe, uma situação lastimável de grande calamidade e desventura, não pode haver um herói. A existência do herói - a pessoa que se sobressai salvando o dia - só se justifica, nesse ponto de vista, a partir da existência do triste trama.

    Daí, a discussão rumou para a definição do herói, qual seja, uma pessoa (normalmente um homem) de feitos notáveis numa conjuntura de significativa contrariedade. Conversamos sobre o quanto as pessoas gostam de heróis menos por gostar unicamente dessas figuras e mais por gostar de tragédias, das situações calamitosas em que eles se destacam. Sobre a desnecessária morbidez e o extremado pessimismo desse raciocínio, não direi mais. O leitor, achando cabido, pode conjecturar ou objetar consigo.
   
    De minha parte, eu não concordo. Eu creio que o foco da conversa deveria ser bastante diferente. Eu creio que o significado maior do herói é outro, é o fato de ser um reflexo e uma projeção, um exemplo. Eu também creio que há vários tipos de heróis. Há tantos tipos de heróis quanto há tipos de histórias e estórias possíveis, reais ou inventadas, dramáticas ou suaves, poéticas ou prosaicas.
   
    Há o herói que se torna tal porque entra para a história e por ela é (não raro, sobre bases muitos questionáveis) eternizado. Há o herói de convencional natureza que realiza atos bravos e por eles é lembrado. Há o herói que sacrifica a vida num campo de batalha, o herói que desafia a morte e ganha a eternidade através da palavra escrita, da arte criada. Existe o herói cotidiano, que inspira a gente, dando o exemplo, um herói palpável e tão cheio de qualidades quanto de defeitos. Existe o herói-protagonista, mocinho de um romance. O herói às avessas, o anti-herói, que por vezes é igualmente querido e amado e produtor de efeito hipnotizante.

    De todos os jeitos, pra todos os gostos, existe o herói (e a heroína). E mais do que carregar consigo estórias ou histórias que são marcantes, mais do que “salvar o dia” e ser o personagem principal ovacionado por todos, o herói - e a narrativa em torno dele - diz muito sobre quem o admira.

    Afinal, o que é o herói senão a personificação dos valores que julgamos mais corretos, das atitudes que achamos mais louváveis? Se você admira um soldado devotado, um líder revolucionário, um de seus pais, um professor ou um artista, ele acompanha e reflete as suas próprias noções de heroísmo e valor e honra. O herói, como quase tudo na vida, é absolutamente relativo. É por isso que alguém que é herói para uma pessoa pode não ser para a outra. É por isso que, creio, poderíamos completar o ditado “Diz-me com quem andas que te direi quem és” com um “Diz-me quem admiras que te direi quem és”.

    Bem como quando alguém fala de outro alguém, o alguém que fala diz mais sobre si mesmo que sobre aquele de quem fala; quando alguém diz que admira outro alguém, o admirador diz muito mais sobre si mesmo do que sobre o admirado. E é aí que, no meu ponto de vista, jaz o sentido e a importância do herói: ele nos inspira. A cada um, particularmente, individualmente. O herói confirma, reforça os valores que nós temos, torna mais claras as nossas aspirações, mostra que são possíveis as nossas conquistas, o nosso comportamento de acordo com o parâmetro que achamos mais cabível.

    O herói é importante porque pertence a nós. É uma parte de nós, faz parte de quem nós somos e de quem nos tornamos/tornaremos. O herói pertence à sua história tanto quanto à nossa. Seu heroísmo pertence à sua narrativa (que, às vezes, é de nossa própria arquitetura ou invenção) tanto quanto àquela que construímos em nossa vida, nosso dia-pós-dia, nossas ações. O herói, eu acredito, somente muito raramente frequenta os domínios da tragédia.
   
    Portanto, é esta uma boa pergunta a se fazer para melhor conhecer uma outra pessoa ou a si mesmo: quem é seu herói? Quem são seus heróis? Qual é a sua noção de herói e heroísmo?

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Os perigos da beleza

                           

    Beleza é algo que todo mundo tem. Ponto. Feiura também. Hoje, para seguir a ordem alfabética e naturalmente atrativa, falemos da primeira.

    Há belezas que não se pode ver, belezas que só se pode não ver, belezas que só existem para ser vistas. Há belezas para sentir, belezas para ouvir, belezas para tocar. Há tão diferentes belezas quanto existem diferentes pessoas - belezas em diferentes aspectos, com diferentes presenças, diferentes efeitos, belezas nos olhos de quem vê, a partir de seu olhar. Não há ser humano que não tenha beleza tanto quanto não há dia que não amanheça, mesmo sem a benção do sol ou com luzinha apenas minguada dele. Mesmo entre nuvens que o camuflem. Isso é bom, belo, deliciosamente inevitável - embora haja algumas tristes pessoas incapazes de enxergá-lo.

    Hoje, contudo, estou aqui para falar da beleza mais aparente, mais imediata e rasa, aquela circunscrita na definição mais comum e (talvez) imprópria da palavra. A beleza que salta aos olhos, torce o pescoço, mobiliza um suspiro e arrepia o corpo. A beleza daquelas poucas eleitas pessoas que comumente batizamos de indecentemente bonitas, possuidoras da beleza de traços e figura que faz toda a gente parar um minutinho para devidamente apreciar e deixar-se acreditar no feitiço.

    Essa beleza tem um perigo espetaculoso. Ou dois perigos espetaculosos, para ser mais precisa.

    O primeiro afeta o sujeito, ou os sujeitos, em redor do coração (ou do rosto) que bombeia encantos. Pois, as pessoas que cotidiana ou ocasionalmente vivem e convivem com um epicentro fenomenal desta definição de beleza podem ser seriamente prejudicadas por isso: o ser humano, esquecido e burrinho como é, tende a se esquecer ou ignorar impercebidamente os avisos mais sábios dos quais mais carece, como aquele que nos diz que “aparências enganam”. Ou aquele que diz “a beleza não é tudo”. Ou aquele que diz “quem vê cara não vê coração”. Em suma, aqueles avisos que nos dizem para não deixar de considerar a importância do conteúdo em detrimento da sedução da embalagem.

    As pessoas bonitas hipnotizam. Têm um efeito de neblina nas outras pessoas em volta. Aquelas que não têm uma força para dissipar essa neblina e enxergar através dela podem achar-se demasiadamente veneradouras de pessoas que não merecem toda essa veneração - nem, talvez, uns minutos a mais de cuidados atenção. Entendo que estar ao lado de uma pessoa bonita tem certo atrativo: você (o acompanhante), sobretudo no caso de estar em relacionamento romântico-amoroso com o muso/a musa, é olhado com pontuda inveja. E quem é aquele que não saboreia-se distintamente com a sensação, ou a certeza, de ser olhado com inveja por um semelhante?

    O segundo perigo tem alvo muito outro: direciona-se à própria pessoa que é excepcionalmente bela. Por ser excepcionalmente bela - e por nada mais - essa pessoa recebe muita atenção. Sem fazer qualquer esforço, somente por existir e estar, essa pessoa é procurada, é admirada, é cobiçada, é objeto de interesse e olhar e desejo de muitas outras. Assim, se não for muito cuidadosa ou bem orientada, ela pode não desenvolver mais nada. Não ser nem se tornar nada além de uma pessoa muito bonita.

    Pois, nós, reles mortais de semblante relativamente agradável e figura não de todo desconjuntada, (e, mais importante, reles mortais que não ainda alcançaram o nível de consciência e plenitude de quem prescinde da aprovação do outro para aprovar a si mesmo) desenvolvemos atributos e habilidades para agradar. Talvez de maneira inconsciente e até inelutável, em grande medida, por mais incômodo que seja admitir isso, o que queremos ao aprender a tocar violão, dominar várias línguas, um esporte ou uma dança, a arte de cozinhar é arrumar modos de agradar. De se fazer interessante, se tornar atrativo para o outro, possibilitando a vida em sociedade, e uma vida em que não se é completamente desprezado ou, pior, simplesmente ignorado.

    O belo, portanto, corre o risco de ser extremamente interessante à primeira vista, aos olhos, e extremamente vazio e desinteressante à segunda vista e conversa, à convivência, ao coração. Esse não é um dado absoluto, certo e fatal; nem todos os muito belos são tão rasos. Pelo contrário, alguns podem ser indivíduos de brilho enfatuante e magnético por serem duplamente atraentes - pela embalagem e pelo conteúdo. Porém, só aponto esse perigo porque vejo que ele existe e não poucas vezes é concretizado.

    Em suma, admiremos. Tratemos nossos olhos sempre que pudermos com exemplares ímpares de visual lindeza exorbitante. Como disse Vinicíus, “que me desculpem os feios, mas a beleza é fundamental”. Olhar não tira pedaço, e é bom manter os olhos saudáveis. Até para que possam, também, enxergar além do visível.

    Não deixemos, porém, que a beleza cegue e seja o entrave para uma humanidade estanque e vazia. Não deixemos os perigos da beleza se tornarem seus flagelos, seus cupins corrosivos, o círculo vicioso que pode ser tão danoso a vida das gentes. Não deixemos de dizer, ao contrário do poeta, “que me desculpem os belos, mas a feiura também pode ser fundamental.” Pode ser um ingrediente muito mais nutritivo para uma vida mais saudável e plena e interessante. Pois, a beleza é uma substância de efeito duvidosíssimo e, se mal ministrada, pode fazer mais mal que bem.