quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O valor da experiência


        É engraçado como certas palavras e certos valores vão mudando de significado e importância ao longo do tempo, e nas diferentes situações. Antigamente, pessoa de sessenta anos era deferentemente respeitada. Sua palavra era ouvida como se fosse mesmo o dizer de uma divindade e, sua opinião, seguida e tomada na mor parte da vezes como sendo de fato o melhor dos parâmetros, a mais sólida referência na qual pautar-se.

    Hoje, a maioria das entrevistas de emprego ainda valorizam sobremaneira a senhora experiência. Parecem imaginar os recrutadores, e os trabalhadores de uma forma geral, que quem tem experiência é melhor preparado para exercer aquela atividade e encontrar seus desafios do que outro alguém que não a tem. Parece ser a concepção geral que quem já esteve naquela certa função por bastante tempo, já encarou nela toda sorte de situações, já aperfeiçoou suas habilidades, dominou muitas de suas limitações e está provavelmente mais apto a fazer competente e confiável trabalho, desenvolvendo plenamente suas capacidades, sem sucumbir às dificuldades e dúvidas com as quais inevitavelmente topará.

    Em contrapartida, quanto à vida e à vivência num sentido mais amplo, os tempos modernos e suas pessoas não acompanham tanto assim a perspectiva trabalhista da coisa. Esquecendo que o dia após dia nos dá segurança e serenidade para caminhar, conhecimento do caminho, com suas pedras e nuances várias, a maioria de nós não dá mais tanta importância à experiência no árduo ofício de viver.

    Porque o mundo dos nossos dias (parece ser) é exorbitantemente distinto do que era há quarenta anos, nós - jovens soberbos - achamos que os conselhos e as visões de quem viveu essa “outra era” estão ultrapassados, desgastados, e de nada podem nos valer. Nós - ou, sejamos justos, uma expressa maioria de nós - achamos que sozinhos podemos viver e existir. Sem guia, sem auxílio ou conselhos. Achamos que temos conosco, em nós mesmos, todos os conhecimentos e as capacidades (além dos necessários instrumentos) para fazermos o agora e o futuro, exatamente como os queremos, completamente independentes de nossos mais velhos e do mundo deles, que pensamos ser quase alienígena.

    Eu, de minha parte, acho esse proceder temeroso, triste e criticável. Creio que muito sábio seria ouvir o que nossos mais velhos têm a dizer, que não é pouco. Pois, como num jogo de videogame (para ilustrar de forma simples) quem já está num nível a frente do seu, já passou por várias fases que lhe são ainda desconhecidas, pode assim lhe dar valiosas dicas, aqueles com contagem de anos maior que a nossa podem sim muito nos ajudar. Eles já estiveram, quem sabe várias vezes, em situações que ainda não são novas, com as quais não sabemos muito bem lidar. Não raro, sabem com firme certeza quando estamos prestes a quebrar a cara, ou quando estamos deixando passar aquela oportunidade que seria a melhor coisa que nos aconteceria. Eles sabem nos dizer quando desviar de ciladas, pegar atalhos, refazer a caminhada, acalmar os ânimos e deixar esse milagroso unguento que é o tempo fazer efeito sobre nossas feridas, dores e angústias.
   
    Como uma artesão, que aperfeiçoa sua técnica com a constante prática, maneja melhor suas ferramentas a cada dia que se torna mais íntimo delas, aprende com seus erros e, às vezes, observando os erros e acertos dos outros, também as pessoas vão se tornando mais hábeis na arte de viver à medida que vão... vivendo. Praticando. Viver é um ofício, não diferente de todos os outros, e como tal tem suas lindezas e suas tristezas, suas durezas e suas cores, e implica aprendizado difícil, gradual, lento. Em etapas. Com o aprendiz aprendendo com o mestre, tomando seu exemplo, absorvendo sua sabedoria, tudo o que ele tem a transmitir, em lições tanto teóricas quanto práticas - estas, principalmente, nas quais precisa haver certo acompanhamento.

    Em suma, bem como não é de se esperar que um iniciante violonista performe um chorinho com perfeição, ou participe de um concerto com brilhantez, os jovens aprendizes da vida também não podem esperar saber perfeitamente como viver já tão cedo, completamente sozinhos. Nada mal então seria, além de divertirmo-nos com suas histórias e dar-lhes a atenção que merecem, nós (jovens) ouvirmos o que os mais experientes têm a nos ensinar.

    Eles podem até, poder exemplo, talvez não ter passado pela universidade e se acharem pouco aptos a nos ajudar em nossos trabalhos acadêmicos. No entanto, o aprendizado sistemático e institucionalizado não é, não pode ser, o único que conta. E eu aposto que, na trilha da vida, nos fundamentais aspectos de como bem viver e conviver, lidar com o outro e consigo, com suas conquistas e frustrações, talentos e limites, emoções e pensamentos, fases da vida, não pode haver professores e exemplos melhores para nós que nossos mais velhos. Mais... experientes.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Raízes (e galhos) do Brasil

                                                                   
  
   Recentemente, estive lendo um grande clássico da historiografia e sociologia brasileira cuja leitura me incomodou e inquietou sobremaneira. Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, explora vários aspectos da formação e do passado do país fundamentais para entender o Brasil, o brasileiro, a cultura brasileira como eles são nos nossos dias.

    Sem entrar na discussão mais acadêmica das ideias dele, que já são muito contestadas, tenho alguns singelos e inocentes comentários a fazer: dentre os temas abordados e elaborados na obra, um dos que mais me chamou a atenção foi aquele relativo ao comportamento lusitano quanto ao Brasil em seu começo, que não é lá muito diferente do comportamento (e da mentalidade) do brasileiro de hoje em relação ao seu próprio país.

    No capítulo IV, “O semeador e o ladrilhador”, Sérgio Buarque traça algumas das principais diferenças entre a colonização da América portuguesa e aquela da América espanhola, esmiuçando gradualmente o porquê desse nomes. Para ele, enquanto o espanhol é ladrilhador, determinado em edificar, construir, projetar e levar a cabo uma organização sólida em seu território no Novo Mundo, fazendo-o como uma extensão de sua própria casa (contando inclusive com universidades e cidades planejadas), o português é, por outro lado, um semeador.

    O português − muito mais um mercador, tencionando estar de passagem, que um colonizador, engajado em um empreendimento de povoar e construir − veio para cá querendo explorar o que havia de riqueza fácil e acessível e, logo depois, ir embora. Qualquer iniciativa que fosse dar despesas, exigir investimento e planejamento e esforços era prontamente refutada, sem ganhar a menor consideração. O português que veio ao Brasil lá nos seus primórdios não queria aproveitar a terra para aprimorá-la, engrandecê-la, fazer dela a sua casa. Queria se aproveitar da terra, extrair dela tudo o que pudesse para si, e voltar a Portugal o quanto antes.

    Ora, se não é esta justamente a posição de muitos brasileiros hoje em relação ao próprio Brasil? Cada um pensa em si e no seu próprio ganho, o mais imediato possível, sem considerar o custo que isso pode ter numa mais ampla escala ou o quanto poderia ser multiplicado se feito em colaboração, com mais planejamento e cuidado. Quase ninguém hesita em furar uma fila − qualquer que seja ela − quando tal oportunidade lhe é apresentada, sem pensar que seria melhor para todos que ela fosse respeitada e tudo funcionasse nos seus devidos conformes.

    Incomodamente intrigada, percebendo que a situação mudou pouquíssimo desde o início do nosso país até aqui, eu fiquei me perguntando... Quando é que nós vamos começar a pensar na nossa terra como um país, uma nação? De todos, por todos, para todos?

    Quanto vamos deixar de enxergar um monte de “eus" e começar a ver um grande “nós”?
   
    Quando vamos nos dar conta de que, quando a gente faz e cresce e desenvolve junto, a gente faz e cresce e desenvolve melhor? E que um investimento a longo prazo quase sempre demanda mais paciência mas também traz melhor resultado?
   
    Quando? Quando deixaremos de reclamar que “o brasileiro é deseducado”, e nós, brasileiros, nos portaremos de forma diferente e faremos uma país educado? Quando deixaremos de dizer que “o povo é pequeno, por isso o país não cresce” e nós, o povo brasileiro, faremos um país grande?

    Quando será que, incapazes de mudar essas raízes do nosso Brasil, promoveremos uma entusiástica metamorfose de seu tronco e galhos, transformando-o em algo de que podemos nos orgulhar?

    Mais do que uma questão para se pensar, essa é uma questão na qual se agir.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Questão de medida

                                                            

    Antes de começar, convém que eu diga que este texto pode aborrecer algumas pessoas. Pode ser contraindicado a amantes das ciências exatas ou, para ser mais justa, para qualquer um insensível ignorante de certos básicos princípios das (não acadêmicas) ciências humanas...

    A questão é a seguinte: tem me incomodado indizivelmente essa mania que muitas gentes têm de medir sua vida toda, especialmente nos parâmetros mais exatos. Medir o quão proveitoso foi o ano pela produtividade do seu trabalho, o número sólido e fechado de suas conquistas nele, quantos degraus conseguiu-se subir. Medir quão popular se está, como andam suas relações com outras pessoas pela quantidade de amigos que se tem e fez, a variação delas ao longo do tempo - se esta quantia aumentou-se, diminuiu-se, estabilizou-se.

    Medir a eficiência de sua dieta pelo tanto de quilos que se perdeu; a validade de sua leitura pelas quantas páginas se percorreu, em razão de quanto tempo.
       
    Ah, minha gente... Se há algo no mundo com o qual eu absolutamente não me dou e não me posso dar é essa numeralização das coisas, das coisas mais humanas! Essa racionalização do irracionalizável, as emoções, os momentos, as vivências... que parecem ser visualizadas como números, etapas de um processo, partes de um mensurável todo, um objetivo, uma meta... Ao invés de serem enxergadas simples e puramente por si mesmas, sua intensidade e provocada sensação, seu passageiro e pequenino infinito, sua recordação...

    E se a gente, que talvez goste muito mesmo de arrumar jeitos de classificar as coisas, tentasse apenas medir de outros jeitos, arrumar outros parâmetros, outros critérios? E se a gente, por exemplo, fosse estimar quão proveitoso foi o ano pelo seu interior equilíbrio, ou desequilíbrio? Pelo quanto se esteve realmente bem, ou não tão bem, pela prevalência de risos ou prantos, suspiros tranquilos ou intranquilos?
   
    E se a gente fosse avaliar os amigos por seu valor e não por sua quantidade? Por quão confiáveis e companheiros, próximos e pacientes, presentes eles são, ao invés de por quantos eles são? E se, no lugar de pelo clique de um botão, fosse medir o selar de uma amizade pelo empréstimo de um livro, uma preocupação silenciosa, um gesto não pedido ou esperado de carinho?

    E se a gente fosse medir a eficiência de uma dieta pelo bem-estar que ela nos provoca? Dizer quão querida e respeitada é uma pessoa pelo tanto sorrisos sinceros que lhe sorriem, o tanto de abraços queridos e apertados que lhe abraçam, de preces que por ela rezam e pensamentos que por ela surgem?

    Reparem, o adjetivo é fundamental: não é o tanto de sorrisos, mas de sorrisos sinceros. Nem é o tanto de abraços, mas de abraços queridos e apertados. O modo como tudo acontece, mais do que sua frequência, faz toda a diferença.

    Reparem, não estou sendo radical. Não peço aqui uma lei áurea das medições e contabilidades, a abolição do raciocínio para saber o quanto cabe em algo qualquer, a tentativa de fazer balanços. Por mais incrível que isso às vezes me pareça, foi o próprio ser humano que criou a matemática, por uma necessidade sua de contar, numericamente pensar.

   Então, aqui eu peço - sugiro - somente uma reforma. Uma emancipação das réguas exatas, míopes, disformes que nos acorrentam, às quais nós voluntariamente nos acorrentamos. A feitura de um outro tipo de régua, mais livre, mais doce, mais humana. A gestação de outras maneiras de pensar, de uma avaliação conduzir. Um novo modo de... medir.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

O dia e a noite

                                                          
     
    “Trocar o dia pela noite, dizia Luís Soares, é restaurar o império da natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do sol está dizendo aos homens que vão descansar e dormir, ao passo que a frescura da noite é a verdadeira estação em que se deve viver. Livre em todas as minhas ações, não quero sujeitar-me à lei absurda que a sociedade me impõe: velarei de noite, dormirei de dia.”

    Lendo Contos fluminenses, do mestre Machado, dia desses topei com este parágrafo que é a abertura de um conto que carrega o nome de seu protagonista. Li as tais linhas, e não pude espreitar-me a um sorriso: pimba!
   
    Tenho ouvido semelhante muitas vezes. Conheço muitas pessoas que dizem o mesmo, tantas que, na somatória, devem ser mais estas do que aquelas em pronúncia contrária. A noite está na moda.

    Eu, de minha parte, estou mais uma vez em descompasso. Na contramão. Existo e vivo de dia, acordo com os passarinhos, gosto especialmente da hora da manhã cedinha, raiando suas luzes de estreia. Devo ter uma espécie de ouvido atípico, pois quando o sol nenêzinho nasce, dá seus primeiros chorinhos de vida, no azul também bebê do céu, eu o escuto. É como se ele estivesse luminosamente sussurrando pra mim, como numa cantiga velha... “Acorda, Maria Bonita! Acorda, vai fazer o café...” Eu atendo seu chamado, rindo. Não posso, nem quero, ignorá-lo.

    Não é que eu não goste da noite... Não, não. Adoro-a! Mas fato é que prefiro-a em sua diminuta luz natural que em claridade fabricada. Prefiro passá-la adormecida que acordada. Sempre pensei que a sombra refrescante da noite vem fazer descansar nossos olhos, e com eles, todo o resto. Sempre pensei (em oposição a Luís Soares) que desatar-se da obra da sociedade é apagar a luz do interruptor e acender-se com a natural, dormindo a noite, vivendo o dia.

    Dizem que há mais liberdade na noite. Que nela, sente-se que tudo é possível, que o mundo é seu, que há mais viveza nas pessoas e mais força nos sentires... Não sei. Creio que deve haver em mim um não-sei-quê de árcade, de poetisa da roça, que me prende irresistivelmente ao doce cativeiro da vida simples... À alteza do dia.
   
    De dia, as luzes são mais brilhantes e, ao mesmo tempo, mais brandas. O céu está lavado, o sol está sorrindo, as energias são novas, suavemente vistosas. A vida está toda pintada em palheta serena de cores leves e claras, em pinceladas calmas. Os passarinhos assoviam, as galinhas cacarejam, as vacas mugem. Os sons são mais bonitos, e os silêncios também. O toque tem outro sabor: mais cálido, mais amigo, mais sincero. Mais doce.

    O dia, afinal, é diversão da infância. A noite, da brincadeira adulta.

    O dia é tempo da inocência; a noite, de falsidades.

    O dia é o tempo em que os céus nos jorram calor e luz. A noite, quando nos regam com suas lágrimas de orvalho.

    Que nos resta, então? Resta que os apreciadores do dia continuem apreciando-o. Que os amantes da noite continuem amando-a. Que os dois, juntos, contemplem e aproveitem os sublimes momentos em que claro e escuro coexistem. Aqueles instantes em que dia e noite encontram-se, olham-se, resvalam-se, tocam-se, fundem-se, desgarram-se e se despedem.