quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

O dia e a noite

                                                          
     
    “Trocar o dia pela noite, dizia Luís Soares, é restaurar o império da natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do sol está dizendo aos homens que vão descansar e dormir, ao passo que a frescura da noite é a verdadeira estação em que se deve viver. Livre em todas as minhas ações, não quero sujeitar-me à lei absurda que a sociedade me impõe: velarei de noite, dormirei de dia.”

    Lendo Contos fluminenses, do mestre Machado, dia desses topei com este parágrafo que é a abertura de um conto que carrega o nome de seu protagonista. Li as tais linhas, e não pude espreitar-me a um sorriso: pimba!
   
    Tenho ouvido semelhante muitas vezes. Conheço muitas pessoas que dizem o mesmo, tantas que, na somatória, devem ser mais estas do que aquelas em pronúncia contrária. A noite está na moda.

    Eu, de minha parte, estou mais uma vez em descompasso. Na contramão. Existo e vivo de dia, acordo com os passarinhos, gosto especialmente da hora da manhã cedinha, raiando suas luzes de estreia. Devo ter uma espécie de ouvido atípico, pois quando o sol nenêzinho nasce, dá seus primeiros chorinhos de vida, no azul também bebê do céu, eu o escuto. É como se ele estivesse luminosamente sussurrando pra mim, como numa cantiga velha... “Acorda, Maria Bonita! Acorda, vai fazer o café...” Eu atendo seu chamado, rindo. Não posso, nem quero, ignorá-lo.

    Não é que eu não goste da noite... Não, não. Adoro-a! Mas fato é que prefiro-a em sua diminuta luz natural que em claridade fabricada. Prefiro passá-la adormecida que acordada. Sempre pensei que a sombra refrescante da noite vem fazer descansar nossos olhos, e com eles, todo o resto. Sempre pensei (em oposição a Luís Soares) que desatar-se da obra da sociedade é apagar a luz do interruptor e acender-se com a natural, dormindo a noite, vivendo o dia.

    Dizem que há mais liberdade na noite. Que nela, sente-se que tudo é possível, que o mundo é seu, que há mais viveza nas pessoas e mais força nos sentires... Não sei. Creio que deve haver em mim um não-sei-quê de árcade, de poetisa da roça, que me prende irresistivelmente ao doce cativeiro da vida simples... À alteza do dia.
   
    De dia, as luzes são mais brilhantes e, ao mesmo tempo, mais brandas. O céu está lavado, o sol está sorrindo, as energias são novas, suavemente vistosas. A vida está toda pintada em palheta serena de cores leves e claras, em pinceladas calmas. Os passarinhos assoviam, as galinhas cacarejam, as vacas mugem. Os sons são mais bonitos, e os silêncios também. O toque tem outro sabor: mais cálido, mais amigo, mais sincero. Mais doce.

    O dia, afinal, é diversão da infância. A noite, da brincadeira adulta.

    O dia é tempo da inocência; a noite, de falsidades.

    O dia é o tempo em que os céus nos jorram calor e luz. A noite, quando nos regam com suas lágrimas de orvalho.

    Que nos resta, então? Resta que os apreciadores do dia continuem apreciando-o. Que os amantes da noite continuem amando-a. Que os dois, juntos, contemplem e aproveitem os sublimes momentos em que claro e escuro coexistem. Aqueles instantes em que dia e noite encontram-se, olham-se, resvalam-se, tocam-se, fundem-se, desgarram-se e se despedem.

2 comentários:

  1. Quanto à liberdade da noite, sim, isso é possível ser sentido constantemente. Já fui um rapaz da noite, aquele que realmente faz acontecer nas madrugadas. Mas a vida real chamou e agora tenho que acordar junto com o sol também. Excelente (como sempre) texto, Majestade! Abraços fortes!

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    1. Pois é, Sr. Rapaz da noite, chega um momento em que não se pode mais fugir da luz do dia, né? Hahaha
      Muito obrigada pelos comentários!
      Abração!

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