quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O desafio do casamento

                                                                  

    O número de casamentos só cai. E, dentre os comparativamente poucos casamentos que se realizam, muitos se esfarelam. O número de divórcios só cresce. Entre as uniões estáveis, arranjos se fazem mais frequentemente e, depois deles, desarranjos e rearranjos também. Nada disso é novidade para ninguém, não é?
   
    Não, de fato, não é. A realidade é uma amplamente divulgada e amplamente lamentada, e eu não sei dizer o que é mais calamitoso, a realidade em si ou o "auê" que fazem em torno dela. Entre os que lamentam, há aqueles que analisam com sereno pesar e outros aqueles que, irritantes além da conta, tomam o fato como ponto de partida para momentosas reflexões e a produção de um tão sutil quanto tenebroso adestramento, através de pregações utópicas. Pregações estas que não raro incluem prescrições detalhadas em lindas cartilhas de comportamento, que só não são mais furadas que a estratégica fotografia do(a) autor(a) acompanhando o discurso em seu suporte, mostrando uma inebriante realidade ideal que é apenas isso: idealizada. Forjada, fabricada, muitíssimo irreal, e que só passa por legítima porque é legitimada pelas pessoas que se lembram de denegrir a própria vida e reclamar dela mas se esquecem de que a do outro, por baixo da superfície, tem tantos problemas e complicações quanto a sua.

     “Sinalize ao seu parceiro o que mais te incomoda, tudo pode ser conversado; imponha limites; não deixe o hábito parir a monotonia...” A lista é longa. Os conselhos e truques e receitas, as pequenas dicas, são bonitos, simples, teoricamente fáceis de pôr em prática. Teoricamente. Mas o discurso é um muitas vezes custoso de fazer-se aplicar.

    Nem sempre a sinalização do defeito, da falha, do incômodo, da omissão ou negligência do outro é tão simples quanto parece. Nem tudo sempre pode ser conversado; há certas conversas que são simplesmente muitíssimo complicadas, capciosas, difíceis, conversas cuja visualização em pensamento é fluida, mas a acontecença verdadeira, perante ao outro, aos olhos e ouvidos do outro... Às vezes se impõe limites e eles não são respeitados; às vezes quem tenta a imposição também infringe aquela do outro sem nem se dar conta disso... Às vezes, a monotonia faz parte sim, e é difícil evitá-la...

    O que estou querendo dizer aqui é que é muitíssimo melindroso dar palpites, dicas, sugestões nesse tema. Há pessoas e pessoas, casos e casos, situações e situações. Claro que algumas ajudas podem caber, podem funcionar, podem ajudar. No entanto, cada um deve lidar com o que vive, do modo como julgar mais adequado às suas específicas circunstâncias, como melhor encaixar-se às suas possibilidades no campo do real. O desafio do casamento é um universal e, ao mesmo tempo, estritamente particular. Cada um vive o seu, que pode ser (ou não) bastantemente distinto de todos os outros ao redor.
   
    Assim, não venho aqui propor soluções para o desafio, para dar ânimo ou desânimo para o leitor em relação a ele. Não finjo ter resposta a muitas perguntas que cutucam muita gente nessa questão, nem viável solução para muitos problemas que enfrentam nele. Mas, tampouco posso esconder que tenho cá minhas opiniões e palpites sobre o assunto, com os quais rabisco este comentário. Comentário que rodeei e rodeei para só agora culminar:

    Parece-me que a perseverança é uma virtude que está fora de moda (não só nesta questão, mas em várias outras) e a tolerância também. E também parece-me que o casamento não é vivência para ninguém se não para o perseverante, o tolerante, o paciente. Ou para aquele disposto a sê-los, a desenvolver esses predicados em si mesmo. Casamento é para os fortes, sim, e não adianta fingir o contrário.
   
    Pois, com o tempo e a constante companhia, os defeitos do outro não aliviam-se, mas acentuam-se. Assim como o laço do costume tem o poder de gradualmente “relevar” as qualidades, tirá-las de destaque, percepção, nota, gratidão. O poder de fazermo-nos take for granted. Da mesma forma, é verdade que o hábito aperta a corda sobre o encanto, faz esparecer qualquer paixão, empalidecer todas as cores da vivência que − em plano e sonho e anteriores conversas − pareceu tão vivo arco-íris. É verdade que, quando alguém se casa, os problemas dobram, a família se estende, o tempo para si escasseia, o espaço também... É verdade que verificam-se comprovadas um monte de verdades que gostaríamos que fossem mentiras, coisas inventadas.

    Por outro lado, é verdade tão verdadeira quanto também que chega um ponto na linha da vida em que até o mais incansável dos aventureiros quer descansar. Cansou de arriscar, esgotou-se da emoção e do suplício da constante novidade, da pequena duração, da incerteza. Mesmo ao mais aventureiro, torna-se tranquilamente tentadora em certo momento a segura praia, a raiz entranhada e profunda, a “tampa da panela”. Não acontece com todos; sempre há os aventureiros que terminantemente recusam-se a aceitar a ideia da estadia em um só porto. Mas, não é o caso da maioria.

    E quantos de nós, no fundo e na verdade, aventureiros somos? Quantos de nós gostamos de malandrar de galho em galho, sem fixar ninho em nenhum? Quantos de nós adoram a ideia de, num acidente de vôo, típica coisa de qualquer percurso, ter que pousar em qualquer galho, só, sem ter quem olhe por ti, cuide de ti, e venha lamber suas feridas? Quem, aliás, mesmo sem hipotetizar nenhuma ocorrência no percurso, adora a ideia de perambular (ou definitivamente instalar-se) para sempre desacompanhado? Sem ter quem te espere chegar seguro no fim do dia, quem abençoe a sua partida, celebre a sua chegada, pense em você na sua distância? Sem ter quem saiba que não existe outra pessoa como você, quem te conheça em cada detalhe, em suas inteligências e idiotices, seus hábitos dos mais peculiares e preferências sem sentido?

    Creio que o desafio do casamento é uma questão de “ou isto ou aquilo”. De saber escolher o que mais lhe cai bem, celebrar seus prós, aceitar seus contras, e abdicar do resto. Casamento é difícil? É! Sem dúvida. No entanto, quem disse que a sozinhez também não é difícil, vem com seus preços a se pagar?

   Quem não se acha disposto a fazer sacrifícios, e topar com bravura os desafios da convivência... Então... Fortaleça-se para o caminhar solo. Por outro lado, quem não acha que se acostuma facilmente ou alegremente a caminhar sozinho, precisa aceitar os desafios da convivência. Não se esquivar deles, nem ignorá-los, nem transformá-los em motivo para desistir de tudo. Aceitá-los como desafios, desafios que fazem parte, e podem ser até... comicamente divertidos...

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Carta aos amigos



  Dizem os práticos que nenhuma magia pode ressuscitar os mortos − nem mesmo a magia das palavras. Verdade? Não sei. Ninguém sabe. Quanto a mim, talvez discorde, talvez concorde. Francamente, parece-me que há muitos mortos enterrados mais vivos em nosso entorno do que outros mortos andantes oficialmente vivos.

    Dizem os sensatos que, sendo impossível o ressuscito, nada se ganhará em remexer consigo consumado fato, e melhor é deixarem os mortos em sua morte. Todavia, como sensatez é uma palavra que hesito muitíssimo em associar a mim mesma, estou aqui, não pagando tributo às amizades mortas, mas chacoalhando-as em seu túmulo. Pois, como disse Veríssimo filho em belíssimo texto, “embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu”.

    Primeiro, porém, convém que eu diga que posso estar cometendo ainda anterior desatino ao meramente atribuir a certos entes o ilustre título de “amigos”, quando nem certa estou que eles de fato o foram, e assim merecem ser chamados. Vivo tanto a imaginar que não sei se posso dizer afirmadamente que não imaginei o que vivi... Parte dele ou todo ele... Especialmente em casos como este, em que o sorriso alegre e entusiasta do coração neblina demasiado a análise da razão.
   
    “Amigo”, eu creio, é palavra que usamos muito levianamente.

    Amigo é alguém em quem se pode confiar. Confiar, fiar com, conversar fiado e à vista, na hora da celebração e da necessidade. Amigo é aquele com quem se troca, acima de tudo, sinceras palavras. Se profundas, se rasas; se compridas e longas, ou breves e curtas; se assuntando sério ou brincalhonas, primeiro e antes de tudo, sinceras. Entregues, expostas, verdadeiras, muito mais verdadeiras do que as que se diz a um apenas conhecido não amigo, ou a um pouco conhecido ainda estranho.

    Amigo é aquele em quem se pode fiar. Aquele que vem sem titubeio socorrer-lhe, mesmo quando ele próprio está em apuros. Aquele que guarda o segredo que você não conta, que escuta o que você não diz, que acalma a raiva que você não explode, que disfarçado e furtivo oferece a ajuda que você não pede, e aberto puxa-lhe para o abraço que estava prestes a pedir.

    Amigo é aquele que não mede suas palavras. Aquele que acredita em você, incondicionalmente, exageradamente. Não é aquele que debocha, deprime, suprime seus talentos e sonhos e fica para sempre a lembrar-lhe dos obstáculos e empecilhos − mas aquele que, muito menos com sua (às vezes, mui correta) lógica, que com suas animadas palavras, radiante sorriso, persistente incentivo, e com a inquestionável confiança que deposita em você fá-lo confiar em si mesmo, e jamais esquecer das dificuldades, mas colocá-las em perspectiva, numa perspectiva tal que elas se tornem pequeninas, frágeis, sopradas até desaparecerem de todo.

    Amigo é aquele que deixa-lhe saber quando está certo, celebra contigo o seu triunfo, reconhece a sua razão, seu argumento, sua justa conquista, e com eles sorri genuíno. Mais ainda, amigo é aquele que repreende-lhe quando está errado, que é quase mais duro com você do que você pode ser consigo mesmo; aquele que diz todas as palavras que você precisava ouvir, e não raro algumas que não precisava, também. Amigo é aquele que sofre com a sua dor e a toma de você, fazendo-lhe rir de alívio ou ridículo no momento aparentemente ao riso menos propício. Aquele que xinga junto, enfaticamente, acaloradamente “Safado, cachorro, sem vergonha! Vagabundo, imprestável, monte de estrume humano!”  − embora ele nem muito bem conheça a pessoa que causa sua mágoa, e esteja correndo algum risco de ser injusto com ela, ao escolher enxergá-la unicamente pelo reflexo dos seus olhos.

    Amigo, sobretudo, é aquele que não mede seus silêncios. Aquele que aponta-lhe persistentemente a trilha errada, perigosa, visivelmente fadada ao desastre; e que, quando você teimosamente ainda assim decide tomá-la, espera-lhe pacientemente do outro lado, no fim da travessia, para dar-lhe colo, confortante e seguro colo que silenciosamente tanto diz “Eu te avisei. Eu disse.” quanto “Pode chorar. Pode chorar, que eu estou aqui.”

    Amigo é aquele bem curtido na difícil arte da aceitação. Não é aquele que que desfaz de seu gosto, dolorosamente ironiza-o, tenta induzi-lo a outro, impor a você sua opinião, seu julgamento. Em contrário, é aquele que faz de tudo para você manter consigo o que é seu, especialmente em questão de gosto e desgosto, crença, opinião. Aquele que tenta melhor conhecê-los, faz um esforço singelo (e, por vezes, magnânimo) de entendê-los − e, mesmo quando não consegue entendê-los, respeita-os. Respeita-o. Respeita a você, seu amigo, e perante o destrato de outrem, defende-o, ou blinda-o, da melhor maneira que pode.

    Amigo é aquele que tem boa memória. Não é aquele que esquece, é aquele que lembra. Aquele que, sem nada dizer, repara uma vez para não mais olvidar que seu sabor favorito de comida é a mineira; de livros, o romance; de pessoas, a doce. Não é aquele que tudo despercebe. Ou aquele indiferente. Principalmente, amigo não é aquele que é aquietado com qualquer conveniente desculpa para esquecê-lo; é aquele que não é podado e parado com quaisquer pequenas barreiras que fariam-no deixar de lembrar.
   
    Amigo, por fim, é aquele que não desiste. Aquele cuja amizade não está condicionada à circunstância, à festa ou ao riso, ao tempo das vacas gordas ou das vacas mais esbeltas. É aquele que acompanha-o, mesmo nos períodos de intempérie, e através de toda ela. Amigo é aquele que não desiste de você, que está procurando-o, mesmo quando você mesmo já desistiu de se encontrar. Amigo é aquele que faz todo o seu quinhão de possível para não deixar desatar-se o laço, mesmo quando sabe que muito provável é que, em algum ponto, ele venha enfim a esfarelar-se ou romper-se no curioso curso da corda da vida.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Simplicidade complicada

                                                                    

  Possibilidades. Expectativas. Aspirações. Multiplicidade. Excesso. Confusão.

    São algumas palavras que podemos tranquilamente associar ao estilo de vida da maioria de nós, seres humanos generosamente alocados no século XXI.

    Quero dizer, se contrastarmos os nossos dias àqueles das pessoas nos tempos de ontem, veremos que o presente que nos pertence é muito mais cheio, mais variado, diverso. Desde as pequenas coisas até as grandes decisões da vida, nós temos muito mais possibilidades dentre as quais escolher.

    Numa mera ida ao supermercado, é possível ficar zonzo ao tentar comprar apenas um litro de leite. A prateleira reservada ao artigo é enorme, larga e comprida, comporta caixinhas incontáveis, é leite que não tem mais fim, todos e cada um deles tentando mostrar (em suas ilustres inscrições enfeitando e emperiquitando a caixinha) o quanto é diferente dos demais, embora o produto seja, no princípio e no fim das contas, o mesmo... Leite com reduzido teor de lactose, leite sem lactose, leite integral, leite desnatado, leite semi-desnatado, leite vitaminado, leite de soja, leite de arroz... Leite... Montes e montes de leite.

    Na época de nossas avós, se uma comadre chegasse à casa da outra para uns dedos de prosa e perguntasse “ó, comadre, que tipo de leite é este que estou tomando?”, a única resposta que receberia (provavelmente acompanhada de um desconfiado franzir de cenho) seria “ora, de vaca!”. Ou, no máximo, caso um dos filhos da casa fosse alérgico a ele, ou a criação de caprinos fosse muito farta, “de cabra”. Vejam só, meus amigos, simplicidade pura! Pura mesmo!
   
    Quanto ao que fazer na noite para variar seus dias e encontrar outras pessoas, nós - ou aqueles de nós que residem em lugares que os oferecem - também temos muitas possibilidades. São bares, restaurantes, shows, clubes, cinemas, shoppings... Restaurantes de comida tradicional, ou pouco tradicional, vegetariana, vegana, mineira, baiana, gaúcha, brasileira, árabe, japonesa, italiana... Shows de rap, MPB, rock, pop rock, punk rock, rock alternativo, jazz, blues, samba, pagode... Ir ao cinema, ver o quê? Drama, melodrama, comédia, épico, ação, aventura, animação, tragédia... Gente! São tantas opções!

    De pensar que, era uma vez, todos os jovens e todas as jovens numa cidade interiorana dos anos 30, que esperavam ansiosamente pelo mês de junho (ou qualquer outro destacado no calendário religioso), pelas festas da igreja e as quermesses que nessas ocasiões se faziam... Nelas, e também na eventualidade de alguém da comunidade se achar com parente adoentado, e sem muitas condições para custear o tratamento, em que toda gente montava a festa e tomava parte nela, nos leilões e nas pequenas atrações que gerariam o dinheirinho que seria dado a ele.
   
    Quando não era isso, só mesmo o circo que muito de quando em vez passava, com seus homens elásticos fazendo espetáculo, acrobacias de encher os olhos; e mais aquele que engolia fogo e não se queimava, e o sempre preferido palhaço, arrastando consigo para lá e para cá a criançada:
   
    - Hoje tem marmelada?

    - Tem sim, sinhô!

    - Hoje tem goiaba?

    - Tem sim, sinhô!
   
    - E o palhaço, o que é?
   
    - É ladrão de muié!

    Hoje, as crianças têm muitas coisas, muitos brinquedos. Bonecas, bonecos, (quase todos agora falantes, com chips, baterias, movimentos automáticos) bolas, quebra-cabeças, bichos de pelúcia e plástico, sem contar os tais tablets e videogames, que parecem ser seus preferidos... Os recursos são muitos, e de amplo acesso; ao passo que, antigamente, eram poucos e raros, e mesmo estes para muito reservada fatia da população. Mas, por outro lado, a falta de recurso justamente estimulava a imaginação, a camaradagem, o jogo ao ar livre. Se não se tinha com o quê brincar, inventava-se o que brincar... Viuvinha, a canoa virou, roda, corre-cotia, passa-anel, o mestre mandou, pique-isso e pique-aquilo, quem roubou pão na casa do João... Brincar era fácil, simples, uma alegria palpável e contagiante, e que não carecia mesmo de muitos ornamentos e aparatos...
   
    Na idade adulta, menos mistério ainda a vida tinha. Seus pais escolhiam com quem você se casaria e contra isso, não se tinha vez ou voz. Se desse errado e a combinação fosse ruim, você teria a eles para culpar pelo resto da vida, sem dúvidas; se não desse tão errado assim e o arranjo se tornasse um bom par, “Deus escreve certo por linhas tortas”... Quanto à profissão, e ao que se podia conquistar com ela, as possibilidades não eram muitas, e assim também diminutas eram as expectativas, e inquietações. Nem tudo era possível para todos, e isso era algo aceito sem contestações ou problemas por (quase) toda gente. As divisões eram mais firmemente marcadas, cada um sabia o “seu lugar” e que a possibilidade de ele se alterar ao longo da vida era pequenina. Quem nascia entre a terra, nela permanecia; um lavrador de pouca monta queria antes ser uma lavrador de maior monta que um comerciante ou bancário. Os meninos com um pouco mais de instrução seriam bacharéis, ou engenheiros, ou médicos; as meninas, professoras, com o diploma do magistério...

    Nos nossos dias que correm, em contrário, os arranjos que podemos fazer para a nossa própria vida são muitos. Casar, juntar, não juntar nunca, separar e casar de novo, viver com amigos. Relação aberta, relação fechada, várias relações de diferentes cunhos. E quantas profissões não se pode ter, quantos cursos não existem! São milhões de faculdades para atender todo mundo, pois todo mundo vai à faculdade (quem não quer ver o filho “estudado”?). E para aqueles poucos que não vão (para quê inventar moda, meu pai?) as opções também existem... Inclusive, muitos desses poucos parecem acabar se dando melhor do que os mais afortunados poucos daqueles muitos que vão estudar... Pode-se trabalhar em vários regimes, período integral, meio período, presencialmente, à distância... São tantas as opções que podemos ficar até meio perdidos...
   
    Não se engane com o meu nostálgico argumento, leitor. Reconheço que essas opções todas são algo bom, representam algo positivo. Mesmo! São ótimas, extremamente comemoráveis, na verdade, na medida em que com elas existem várias trilhas para vários trilheiros; alternativas que se encaixem aos vários perfis de pessoas, ao objetivo e gostos de cada um, que podem ser muito diferentes uns dos outros. A multiplicidade visível e permitida e aceita é celebrável. É uma conquista, e magnífica!

    No entanto, eu me pergunto... Sou só eu que às vezes me pego querendo um mundo mais simples? Um mundo em que, quem não casa, por exemplo, não vive a deitar olhares suspirados aos casais que passam na rua; enquanto quem casa, por sua vez, não adora lamentar as alegrias perdidas e agora impossíveis de sua solteirice de outrora? Um universo em que não é dada permissão e - entusiástico estímulo - a sonhar mais alto a quem, por outro lado, são negadas condições viáveis de lutar por esses sonhos? Por mais igual que a nossa sociedade pareça, ela não é ainda exorbitantemente desigual?

    Será que não havia um curioso conforto no lugar cômodo que se ocupava antigamente? Na realidade escancarada, e não velada, das coisas? Justamente na falta de perspectivas, na paradeza, na quase certeza de que não haveria mudança? No concentrar-se em apreciar o que se tem, ao invés de resmungar pelo que não se tem? Na simplicidade da ordem, da segurança, da firmeza, da garantia do previsível e do estável e de enxergar o impossível e ser feliz com o possível assim mesmo?

    É preciso ter uma sabedoria fora do comum para transitar nas turbulentas águas do hoje ou é impressão minha?

    “A canoa virou/ Pois deixaram ela virar/ Foi por causa de Maria/ Que não soube remar”

     É possível termos calmaria e simplicidade hoje também? Será que a questão não é a época, mas o jeito de levar a vida das pessoas? Será que basta saber remar? E saber em antecipado qual tipo de leite se quer comprar? E só lembrar que, apesar das pequenas varianças, leite é leite de todo jeito, e o seu sabor é ainda o mesmo de sempre?

    Quentinho e com canela, ainda... Hmmmm... Delícia!


sábado, 12 de setembro de 2015

Medianeras - solidão, arquitetura e cidade grande

        Eu adoro cinema argentino! Além de um humor sarcástico afiado, linhas bem escritas e bem entregues, atuações excelentes, enredos pouco convencionais e muito intrigantes, ele quase sempre traz em suas produções críticas inteligentes. Críticas pertinentes, vorazes, que, apresentadas de forma simples, quase delicada, se fazem ainda mais marcantes ao espectador.

                                                      

       Fazendo um belíssimo questionamento acerca do papel que a arquitetura e o planejamento urbano têm em modelar as nossas vidas através do espaço, Medianeras (2011) conta a história de duas pessoas que são feitas uma para a outra e dariam o melhor dos casais, se apenas se conhecessem. Eles moram na mesma rua, em prédios vizinhos, mas nunca se encontram.

      Acompanhamos Mariana e Martín - ela, uma arquiteta por formação que se torna, por falta de oportunidades, desenhista de vitrines; ele, um web designer - em suas jornadas pela vida a um só tempo corrida, frenética, múltipla e extremamente solitária e cinza que levam na Buenos Aires da era digital. A vulnerabilidade de cada um, o isolamento, o modo como vivem seus dias, acanhados, retraídos, frustrados e carentes, é tanto o que os separa quanto o que, à distância, os junta, e no outro lado da tela, o que cala o espectador, angustiado com o que vê e sabe ser apenas tão verossímil, ansioso para que alguma mudança aconteça - na estória e na realidade.

     A canção - "True love will find you in the end" de Daniel Johnston, cantada na sua voz crua e agreste, como o filme, sem grandes produções e retoques a enfeitá-la - é perfeita para "Medianeiras". Embala uma de suas cenas mais emblemáticas, não só; mas chega a ser o musical representar de toda a película, melodiando as sensações que ela desperta, traduzindo a nostalgia pintalgada de vaga esperança, doçura, suspiro que ela deixa em quem se deixa por ela tocar.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Por que precisamos de História

                                                              
  
   Quando chegamos na faculdade, as primeiras coisas que somos perguntados são algumas como “por que você escolheu este curso” ou “por que acha que o que fazemos aqui é importante”. É introdução de praxe, uma espécie de quebra-gelo e primeira avaliação do nosso entendimento e maturidade. Mas, ao mesmo tempo, eu suspeito, elas também são feitas como provocação para nos fazer pensar.                                                 
      
    Comigo, a situação foi a seguinte: a primeira pergunta era de mui fácil resposta. Por que eu quis fazer história não é mistério para ninguém, muito menos para mim mesma - porque eu gosto. Adoro. Na hora de fazer a escolha, não teve jeito; coração falou mais alto mesmo. E como o meu é muito interligado à minha cabeça, eu tinha ainda outra explicação. A História - bem como a Filosofia, a Psicologia, as outras ciências humanas - estuda o homem, esse bicho esquisito e engraçado, misterioso e complicado, difícil de entender. A peculiaridade é que a História o estuda através do prisma das diferentes épocas. Só isso. E isso - especialmente para alguém, como eu, que vive com a cabeça em 1900 e antigamente - é lindo.

    Agora, quanto ao porquê do que fazemos ser essencial, “por que precisamos de história” me pegou de jeito. A essa pergunta eu já não tinha óbvia resposta. Por mais simples que ela pareça, acabou se mostrando simples apenas na superfície, uma pergunta em verdade bastante capciosa e profunda, como aquelas que não raro as crianças nos fazem e nós ficamos belamente perdidos quanto ao que responder.

    Eu fiz a minha escolha pautada naquilo que mais me satisfaz, e essa satisfação - não só a minha, creio, mas a de muita gente - nem sempre advém de um senso de utilidade imediata, prática. A gente não é feliz quando ama? Quando vê florescer um jardim? Quando aprecia a grandeza do universo, a luz da lua, ou a beleza de um exemplar sublime de arquitetura?

    Porém, quanto à profissão - que hoje é muito menos considerada um ofício, no verso sentido da palavra, uma contribuição que se faz ao seu meio e que dá sentido e prazer aos seus dias, e muito mais enxergada como uma simples via de ganha-pão e diferenciação social, por status - nós somos pressionados o tempo todo a explicar por quê, sob a lógica de um utilitarismo reducionista que mina toda a nossa humanidade e a leva à uma condição automática (paradoxalmente?) primitiva.

     Nessa lógica, na qual estamos todos (mesmo que deveras relutantemente) inseridos, nós das ciências humanas só saímos perdendo. O utilitarismo cego faz com que aquilo que é mais essencial, na sutileza e na profundeza da vida da gente, seja jogado à um segundo plano como dispensável acessório. E, assim, faz-se o desafio: como explicar o valor do que fazemos? Como virar a mesa e justificar que nem sempre o que não se percebe imediatamente não é menos essencial, que aquilo que não se consegue plenamente pôr em palavras, como certos sentimentos, quase sempre é o que mais nos é caro e fundamental? Como demonstrar a franca necessidade do que fazemos?

    Topando o desafio, eu estou aqui hoje, afirmando que tanto quanto a gente precisa do cozinheiro, do gari, do agricultor, do médico, a gente precisa do historiador, aquele que constrói a História. Embora no caso de todos os primeiros, não seja preciso pensar muito, já que as contribuições deles são visíveis, concluídas imediatamente; o fato de ser pedida mais demorada consideração em pensamento para responder a clara função dos escritores da história não significa que ela não exista ou seja de modo algum menor. Pelo contrário, quer dizer que sua magnitude é imensa para uma apreensão demasiado rasa.

   Pois, leitor, pense comigo. Por que precisamos de História? Por que precisamos do historiador, que é aquele que vai construí-la, edificá-la, concebê-la, registrá-la? Acho que podemos juntar as duas perguntas na seguinte “O que aconteceria se não tivéssemos passado?”

     Nada. Não aconteceria nada. Nada aconteceria se não tivéssemos passado.

    Nós só seríamos todos órfãos. Órfãos mesmo, sem saber de onde viemos, quais são as nossas referências, raízes, sem saber bem onde ou a quem pertencemos. Sem História, nós seríamos ETs no nosso próprio mundo, porque seria como se tivéssemos chegado descendo de uma nuvem, aparecendo aqui do nada sem ninguém ter nos parido. Viver sem passado, sem história, sem poder olhar para trás e ver alguma coisa, alguma coisa com que se identifique, que o identifique, deve ser incrivelmente desconfortável.

   Sem História, a angústia humana de viver, e de morrer, seria muito maior do que já é. Sem História, tudo o que já foi não seria, vez que não teria o registro que é sua certidão de existência; e tudo que é não será, não seria, nem jamais teria sido, pois igualmente teria passado sem se deixar, sem deixar marcas. Como se não existisse...

    E num sentido, digamos, mais imediatamente prático, precisamos de História porque a memória está desaparecendo, sendo levada na correnteza do tempo, que parece passar cada vez mais rápido. Só a título de fácil exemplo, não é difícil elencar coisas com as quais a nossa geração anos 90 (que nem é tão velha assim) conviveu e que já não vemos mais. Videocassete, fita cassete, walkman... Eu me pergunto se quando o meu filho vier me perguntar o que é (era) um disquete, eu terei um para mostrar para ele de exemplo, ou conseguirei fazê-lo entender a arcaica lógica de seu funcionamento e tamanho...

    As memórias da vida também estão se tornando de certa forma mais efêmeras, fugidias, tênues e frágeis. As fotos de anos da sua vida, os trabalhos feitos em toda sua trajetória escolar, as confissões tecladas ao computador, todas estão sujeitas às facilidades e aos perigos do universo digital, e podem ser perdidas por vírus, formatações, ou simplesmente excluídas quando não se quer mais tê-las, o que é um crime... Meu Deus, um crime. E uma perda... imensurável. Mesmo este blog pode desaparecer com alguns cliques meus... Desaparecer para sempre...

    Agora, mais do que nunca, em vários sentidos, tudo está mudando muito rápido, chegando e saindo das nossas vidas em pequeno intervalo de tempo, e sem deixar rastro. É a História que cuida do registro daquilo que se esvai. Do registro, da narrativa, do tornar eterno, inserido no tecido do conjunto, na sequência de todas as coisas. E é aí que entra o historiador, aquele vai atrás desse rastro e não o deixa escapar; esse detetive, buscador de resquícios, que recolhe-os, examina-os, ata-os não menos com instinto que com raciocínio e vai construindo a história a partir deles. Construindo, isso mesmo, porque ela não se escreve sozinha, autônoma e mágica. A história, essa coletânea de estórias e peripécias do bicho-homem, também é escrita e desenhada, inescapavelmente, por homens. A história sem a qual seríamos andarilhos sem norte, buscadores sem rumo, jogados nesse mundo selvagem sem mapa nem lanterna, nem mesmo um chão firme sob nossos pés, já irreversivelmente desconhecedores do ponto de chegada, sem ela perdidos sem saber também o ponto de partida, ou pelo menos uma boa parte do caminho que nos trouxe ao ponto em que estamos.

    Em suma, o meu palpite, a resposta que ao meu ver melhor sossega a interrogação incessante que de toda a parte nos chega é a seguinte: precisamos de história porque precisamos nos localizar, no espaço e também no tempo. Precisamos de referências, de um enredor inteligível, para nos sentirmos confortáveis, para melhor sustentar e equilibrar a nossa já tão confusa existência.

    A História, e o conhecimento de um passado e lugar no tempo, é bem como a arte (que tem um poder de que já falei noutro texto aqui): você pode muito bem, no estrito sentido da palavra, sobreviver sem ela. Continuará respirando, seu corpo executando todas as primárias funções vitais, talvez até a sociedade prosseguirá a existir em sua confusa organização. Mas será que é só a sobrevivência que queremos, e não uma plena existência? No verdadeiro e mais profundo sentido da palavra, precisamos muito dela para viver, a nossa vida é feita melhor por ela. A História, como a arte, nos move. Primeiro nos segura, depois seguramente nos move. Para onde, não sabemos, é possível que nem precisemos saber. Mas move. E isso é o que, de fato, precisamos saber.

    Como diz uma música de que gosto muito (e que tem inclusive esse título - roots before branches), é preciso ter raízes antes de ter galhos.
   

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Em busca de sentido

  
 Sabe aquela sensação de perdido e desnorteado que nos assola de vez em quando? Aquele desânimo que bate de esperar os dias passarem só, sem nada que os preencha, que nos mova? Aquela percepção de que estamos sendo meros espectadores de nossa própria vida?
   
    Isso é sintoma da falta de um nutriente que eu sinto essencial para a vida da gente: sentido. Sentido como direção e significado. Um rumo que nos aponta onde queremos chegar, o que estamos buscando; um objetivo e uma alegria que nos façam sentir que a nossa vida vale, e não está sendo passada em vão. Que estamos com ela cumprindo alguma espécie de tarefa que colocamos a nós mesmos, fazendo a nossa contribuição, realizando algo que nos seja importante.
   
    Recentemente, eu li um livro (e vi seu filme) que aborda esse tema de modo brilhante. “O diário de Carson Philips” conta os dias de um jovem cujo sonho é ser jornalista, trabalhar nas mais respeitadas publicações dos EUA. Ele mora em uma cidade do interior onde nada acontece, e precisa sair dali para ter qualquer oportunidade. A pessoa mais próxima e querida dele, sua avó, vive em uma clínica porque sofre de Alzheimer. Sua mãe é uma mulher destemperada da cabeça que depois de separar-se do marido desistiu da vida e decidiu passá-la inteirinha no sofá, a base de muito remédio e álcool. Seu pai é um canalha que nunca está presente. Na escola, ele sofre por ser “a única pessoa que tem QI maior do que o número da calça”, por pensar, em meio a um bando de pessoas que só acompanham a corrente, de tão mergulhadas nela que estão; incapazes de terem um pensamento independente, uma conduta autônoma, uma conversa inteligente.

    Seus dias seriam completos pesadelos - não fosse pelo fato de que eles tinham um sentido. Ele vivia fazendo algo que amava (escrever, cuidar do jornal da escola, clube da escrita e similares) e tinha um objetivo, uma perspectiva de futuro muito clara que estava determinado a fazer sua realidade concreta. No final da história, ele olha para trás e percebe o quanto isso era importante. Percebe que muito mais importante que chegar no ponto desejado, era o querer chegar que preencheu cada um de seus dias nesse caminho, e os fez felizes, marcantes, intensos, bem vividos. Mais importante do que o ponto final do jornada era cada um dos pontos e das estações de sua trajetória, que foram cheios e vibrantes porque tinham um significado, um motivo.
   
    Além de mostrar a história de alguém que sabia o que queria e estava disposto a pôr a mão na massa para consegui-lo, o livro deixa uma muito poderosa mensagem que - talvez, lá no fundo - todos nós saibamos: todo mundo precisa de um sentido. Um motivo, uma razão, um amor maior, um querer. Aquele algo que faça o coração dançar um bom samba e o tempo congelar no relógio. Algo que empolgue, entusiasme, faça você levantar da cama todas as manhãs com ânimo e gana e energia.

    Sem um sentido, nós só vagamos, não vivemos. Passamos pelo mundo, mas não existimos. Sem um sentido, tocamos a vida como quem toca uma charrete sem ter para onde ir ou porquê caminhar, uma charrete por acaso encontrada na estrada como um presente que alguém resolver deixar, mas nós não sabemos muito bem o que fazer com ele, ou como aproveitá-lo.

    Uma vida sem pretensão, sem propósito, sem um porquê e um rumo não é realmente uma vida. É uma coleção de dias passados simplesmente, em uma sequência que entedia, e progride andando como uma esteira, nos deixando no mesmo lugar em que estamos: lugar nenhum.
   
    Temos alguma determinada missão aqui, um papel específico e bem estabelecido a cumprir? Fazemos parte de um plano maior, de Deus ou do Destino, do que seja que cada um acredite? Talvez. Talvez sim, talvez não. Não sabemos, e não podemos saber. Mas enquanto não sabemos, justamente também por não sabermos, não podemos esperar cair do céu o nosso papel ditado certinho com instruções escritas de como realizá-lo. Precisamos preencher essa lacuna por nossa conta, projetar o nosso próprio plano, e fazê-lo acontecer. Escrever a nossa própria vida, dar um jeito de nos tornarmos protagonistas da nossa história. Protagonistas, nem coadjuvantes, nem espectadores - que só assistem e só esperam. A vida é curta demais para esperar, urgente demais para adiar, breve e fugaz e preciosa demais para escolhermos não vivê-la, só vê-la passar...