quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Por que precisamos de História

                                                              
  
   Quando chegamos na faculdade, as primeiras coisas que somos perguntados são algumas como “por que você escolheu este curso” ou “por que acha que o que fazemos aqui é importante”. É introdução de praxe, uma espécie de quebra-gelo e primeira avaliação do nosso entendimento e maturidade. Mas, ao mesmo tempo, eu suspeito, elas também são feitas como provocação para nos fazer pensar.                                                 
      
    Comigo, a situação foi a seguinte: a primeira pergunta era de mui fácil resposta. Por que eu quis fazer história não é mistério para ninguém, muito menos para mim mesma - porque eu gosto. Adoro. Na hora de fazer a escolha, não teve jeito; coração falou mais alto mesmo. E como o meu é muito interligado à minha cabeça, eu tinha ainda outra explicação. A História - bem como a Filosofia, a Psicologia, as outras ciências humanas - estuda o homem, esse bicho esquisito e engraçado, misterioso e complicado, difícil de entender. A peculiaridade é que a História o estuda através do prisma das diferentes épocas. Só isso. E isso - especialmente para alguém, como eu, que vive com a cabeça em 1900 e antigamente - é lindo.

    Agora, quanto ao porquê do que fazemos ser essencial, “por que precisamos de história” me pegou de jeito. A essa pergunta eu já não tinha óbvia resposta. Por mais simples que ela pareça, acabou se mostrando simples apenas na superfície, uma pergunta em verdade bastante capciosa e profunda, como aquelas que não raro as crianças nos fazem e nós ficamos belamente perdidos quanto ao que responder.

    Eu fiz a minha escolha pautada naquilo que mais me satisfaz, e essa satisfação - não só a minha, creio, mas a de muita gente - nem sempre advém de um senso de utilidade imediata, prática. A gente não é feliz quando ama? Quando vê florescer um jardim? Quando aprecia a grandeza do universo, a luz da lua, ou a beleza de um exemplar sublime de arquitetura?

    Porém, quanto à profissão - que hoje é muito menos considerada um ofício, no verso sentido da palavra, uma contribuição que se faz ao seu meio e que dá sentido e prazer aos seus dias, e muito mais enxergada como uma simples via de ganha-pão e diferenciação social, por status - nós somos pressionados o tempo todo a explicar por quê, sob a lógica de um utilitarismo reducionista que mina toda a nossa humanidade e a leva à uma condição automática (paradoxalmente?) primitiva.

     Nessa lógica, na qual estamos todos (mesmo que deveras relutantemente) inseridos, nós das ciências humanas só saímos perdendo. O utilitarismo cego faz com que aquilo que é mais essencial, na sutileza e na profundeza da vida da gente, seja jogado à um segundo plano como dispensável acessório. E, assim, faz-se o desafio: como explicar o valor do que fazemos? Como virar a mesa e justificar que nem sempre o que não se percebe imediatamente não é menos essencial, que aquilo que não se consegue plenamente pôr em palavras, como certos sentimentos, quase sempre é o que mais nos é caro e fundamental? Como demonstrar a franca necessidade do que fazemos?

    Topando o desafio, eu estou aqui hoje, afirmando que tanto quanto a gente precisa do cozinheiro, do gari, do agricultor, do médico, a gente precisa do historiador, aquele que constrói a História. Embora no caso de todos os primeiros, não seja preciso pensar muito, já que as contribuições deles são visíveis, concluídas imediatamente; o fato de ser pedida mais demorada consideração em pensamento para responder a clara função dos escritores da história não significa que ela não exista ou seja de modo algum menor. Pelo contrário, quer dizer que sua magnitude é imensa para uma apreensão demasiado rasa.

   Pois, leitor, pense comigo. Por que precisamos de História? Por que precisamos do historiador, que é aquele que vai construí-la, edificá-la, concebê-la, registrá-la? Acho que podemos juntar as duas perguntas na seguinte “O que aconteceria se não tivéssemos passado?”

     Nada. Não aconteceria nada. Nada aconteceria se não tivéssemos passado.

    Nós só seríamos todos órfãos. Órfãos mesmo, sem saber de onde viemos, quais são as nossas referências, raízes, sem saber bem onde ou a quem pertencemos. Sem História, nós seríamos ETs no nosso próprio mundo, porque seria como se tivéssemos chegado descendo de uma nuvem, aparecendo aqui do nada sem ninguém ter nos parido. Viver sem passado, sem história, sem poder olhar para trás e ver alguma coisa, alguma coisa com que se identifique, que o identifique, deve ser incrivelmente desconfortável.

   Sem História, a angústia humana de viver, e de morrer, seria muito maior do que já é. Sem História, tudo o que já foi não seria, vez que não teria o registro que é sua certidão de existência; e tudo que é não será, não seria, nem jamais teria sido, pois igualmente teria passado sem se deixar, sem deixar marcas. Como se não existisse...

    E num sentido, digamos, mais imediatamente prático, precisamos de História porque a memória está desaparecendo, sendo levada na correnteza do tempo, que parece passar cada vez mais rápido. Só a título de fácil exemplo, não é difícil elencar coisas com as quais a nossa geração anos 90 (que nem é tão velha assim) conviveu e que já não vemos mais. Videocassete, fita cassete, walkman... Eu me pergunto se quando o meu filho vier me perguntar o que é (era) um disquete, eu terei um para mostrar para ele de exemplo, ou conseguirei fazê-lo entender a arcaica lógica de seu funcionamento e tamanho...

    As memórias da vida também estão se tornando de certa forma mais efêmeras, fugidias, tênues e frágeis. As fotos de anos da sua vida, os trabalhos feitos em toda sua trajetória escolar, as confissões tecladas ao computador, todas estão sujeitas às facilidades e aos perigos do universo digital, e podem ser perdidas por vírus, formatações, ou simplesmente excluídas quando não se quer mais tê-las, o que é um crime... Meu Deus, um crime. E uma perda... imensurável. Mesmo este blog pode desaparecer com alguns cliques meus... Desaparecer para sempre...

    Agora, mais do que nunca, em vários sentidos, tudo está mudando muito rápido, chegando e saindo das nossas vidas em pequeno intervalo de tempo, e sem deixar rastro. É a História que cuida do registro daquilo que se esvai. Do registro, da narrativa, do tornar eterno, inserido no tecido do conjunto, na sequência de todas as coisas. E é aí que entra o historiador, aquele vai atrás desse rastro e não o deixa escapar; esse detetive, buscador de resquícios, que recolhe-os, examina-os, ata-os não menos com instinto que com raciocínio e vai construindo a história a partir deles. Construindo, isso mesmo, porque ela não se escreve sozinha, autônoma e mágica. A história, essa coletânea de estórias e peripécias do bicho-homem, também é escrita e desenhada, inescapavelmente, por homens. A história sem a qual seríamos andarilhos sem norte, buscadores sem rumo, jogados nesse mundo selvagem sem mapa nem lanterna, nem mesmo um chão firme sob nossos pés, já irreversivelmente desconhecedores do ponto de chegada, sem ela perdidos sem saber também o ponto de partida, ou pelo menos uma boa parte do caminho que nos trouxe ao ponto em que estamos.

    Em suma, o meu palpite, a resposta que ao meu ver melhor sossega a interrogação incessante que de toda a parte nos chega é a seguinte: precisamos de história porque precisamos nos localizar, no espaço e também no tempo. Precisamos de referências, de um enredor inteligível, para nos sentirmos confortáveis, para melhor sustentar e equilibrar a nossa já tão confusa existência.

    A História, e o conhecimento de um passado e lugar no tempo, é bem como a arte (que tem um poder de que já falei noutro texto aqui): você pode muito bem, no estrito sentido da palavra, sobreviver sem ela. Continuará respirando, seu corpo executando todas as primárias funções vitais, talvez até a sociedade prosseguirá a existir em sua confusa organização. Mas será que é só a sobrevivência que queremos, e não uma plena existência? No verdadeiro e mais profundo sentido da palavra, precisamos muito dela para viver, a nossa vida é feita melhor por ela. A História, como a arte, nos move. Primeiro nos segura, depois seguramente nos move. Para onde, não sabemos, é possível que nem precisemos saber. Mas move. E isso é o que, de fato, precisamos saber.

    Como diz uma música de que gosto muito (e que tem inclusive esse título - roots before branches), é preciso ter raízes antes de ter galhos.
   

4 comentários:

  1. Oi, Vitória!
    Ah, essa é uma questão muito complexa! Nós discutimos "O que é História?" e "Pra que serve a História?" numa disciplina minha de primeiro semestre e (ainda) não sabemos as respostas, hehe. Eu acho o ponto que tu trouxeste muito importante e eu penso - em vários momentos - mais ou menos nessa linha. No entanto, queria trazer um pouco de antropologia para pensarmos, pode ser?
    Ao mesmo tempo em que a NOSSA sociedade está classificada no utilitarismo radical, nós também temos - no geral - consciência de que a História é uma necessidade, mesmo sem saber o porquê. Será que isso não é uma coisa apenas nossa? Relatos de etnólogos que estudaram diferentes tribos indígenas mostram que nem todas as sociedades precisam e têm História. Engraçado, né?
    Muitas tribos tem concepções de tempos diferentes da nossa e, por esse motivo, pra elas é mais importante entender as relações familiares de apenas uma ou duas gerações que passaram. E isso de forma alguma desvaloriza o conhecimento temporal delas, hehe. O que eu quis dizer com isso é: se não tivermos História, ainda teremos passado. A História serviu, em diferentes épocas, como arma de construção do nacionalismo, como veículo de manipulação de massas e como estudo de minorias (que é comum hoje), por exemplo.
    (Vou deixar essa questão no ar)
    Um beijo e um cheiro, querida. /Cadu

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    1. Alô, Cadu!
      Muito obrigada pelo comentário, e pelo outro ângulo que propôs! Fico feliz que possa ter vindo conversar aqui :)
      Creio que essa questão nunca se resolverá de fato, e é linda exatamente por isso. Tudo o que podemos fazer é palpitar, arriscar, fazer tentativas de discussões que englobem uma parte das várias possíveis respostas.
      Sendo assim, acho que entendi bem o seu ponto. As sociedades que mantêm uma relação mais viva e dinâmica e natural com sua memória e tradição não precisam construir uma História. O seu passado é mais imediato e palpável, ele passa mas não se desfaz de todo, ele permanece. As nossas memórias e tradições, por outro lado, são muito mais facilmente atropeladas pelas mudanças, perdidas até, e é por isso, também, que precisamos de História.
      Decerto, é intrigante perceber como não existe um absoluto, e as concepções diferentes de passado e tempo podem moldar distintamente o conceito de História para uns e outros, e tambem sua própria razão de ser...
      Beijos historiográficos!

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  2. Como completo leigo interessado no assunto, achei o texto ousado e brilhante, como é sua autora.
    Concordo em especial que o conhecimento da história faz a nossa vida melhor, bem como a ideia da nossa morte mais confortável, ou menos desconfortável...
    Digo, não sei se é vaidade da minha parte pensar assim... Não é que todos queremos ser lembrados, eternos, imortais, mas é que também não queremos ser apagados, totalmente. Entende? E a idéia de que um pouco de nós permanece, não se desfaz, a nossa a história, para contar a história... Como uma "certidão de existência"... Acaricia a alma da gente. Acalma. Conforta.
    Ser, ou se sentir, parte da história maior é bom, bem como ser, ou se sentir, uma pequena história em particular.
    Não sei se estou fazendo muito sentido.
    Mas, enfim. Lindo texto. E lindo perceber como suas escolhas, assim como suas palavras, (con)dizem com quem você é.

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    1. Olá, Anônimo!
      Que bom que minhas palavras dizem quem eu sou, e que minhas escolhas condizem com o que eu penso! Acho que seria um pouco triste, se não fosse assim, não é mesmo?
      Quanto à questão de sermos apagados, te entendo perfeitamente. E não acho que seja vaidade. (Mas, se for, então eu sou mais vaidosa do que me imagino, e a maioria das pessoas que conheço também são) Acho que esse pensamento de cair no esquecimento, em vida ou na morte, é uma angústia do ser humano de forma geral. Afinal, quem quer passar sem se deixar, sem largar por onde e por quem passou um pedacinho de si? Todos gostamos de pensar que somos especiais, de alguma forma, e que deixaremos boa e cara lembrança, por menor que seja.
      Obrigada pelas palavras doces! E fico feliz que esteja acompanhando.

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