quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O desafio do casamento

                                                                  

    O número de casamentos só cai. E, dentre os comparativamente poucos casamentos que se realizam, muitos se esfarelam. O número de divórcios só cresce. Entre as uniões estáveis, arranjos se fazem mais frequentemente e, depois deles, desarranjos e rearranjos também. Nada disso é novidade para ninguém, não é?
   
    Não, de fato, não é. A realidade é uma amplamente divulgada e amplamente lamentada, e eu não sei dizer o que é mais calamitoso, a realidade em si ou o "auê" que fazem em torno dela. Entre os que lamentam, há aqueles que analisam com sereno pesar e outros aqueles que, irritantes além da conta, tomam o fato como ponto de partida para momentosas reflexões e a produção de um tão sutil quanto tenebroso adestramento, através de pregações utópicas. Pregações estas que não raro incluem prescrições detalhadas em lindas cartilhas de comportamento, que só não são mais furadas que a estratégica fotografia do(a) autor(a) acompanhando o discurso em seu suporte, mostrando uma inebriante realidade ideal que é apenas isso: idealizada. Forjada, fabricada, muitíssimo irreal, e que só passa por legítima porque é legitimada pelas pessoas que se lembram de denegrir a própria vida e reclamar dela mas se esquecem de que a do outro, por baixo da superfície, tem tantos problemas e complicações quanto a sua.

     “Sinalize ao seu parceiro o que mais te incomoda, tudo pode ser conversado; imponha limites; não deixe o hábito parir a monotonia...” A lista é longa. Os conselhos e truques e receitas, as pequenas dicas, são bonitos, simples, teoricamente fáceis de pôr em prática. Teoricamente. Mas o discurso é um muitas vezes custoso de fazer-se aplicar.

    Nem sempre a sinalização do defeito, da falha, do incômodo, da omissão ou negligência do outro é tão simples quanto parece. Nem tudo sempre pode ser conversado; há certas conversas que são simplesmente muitíssimo complicadas, capciosas, difíceis, conversas cuja visualização em pensamento é fluida, mas a acontecença verdadeira, perante ao outro, aos olhos e ouvidos do outro... Às vezes se impõe limites e eles não são respeitados; às vezes quem tenta a imposição também infringe aquela do outro sem nem se dar conta disso... Às vezes, a monotonia faz parte sim, e é difícil evitá-la...

    O que estou querendo dizer aqui é que é muitíssimo melindroso dar palpites, dicas, sugestões nesse tema. Há pessoas e pessoas, casos e casos, situações e situações. Claro que algumas ajudas podem caber, podem funcionar, podem ajudar. No entanto, cada um deve lidar com o que vive, do modo como julgar mais adequado às suas específicas circunstâncias, como melhor encaixar-se às suas possibilidades no campo do real. O desafio do casamento é um universal e, ao mesmo tempo, estritamente particular. Cada um vive o seu, que pode ser (ou não) bastantemente distinto de todos os outros ao redor.
   
    Assim, não venho aqui propor soluções para o desafio, para dar ânimo ou desânimo para o leitor em relação a ele. Não finjo ter resposta a muitas perguntas que cutucam muita gente nessa questão, nem viável solução para muitos problemas que enfrentam nele. Mas, tampouco posso esconder que tenho cá minhas opiniões e palpites sobre o assunto, com os quais rabisco este comentário. Comentário que rodeei e rodeei para só agora culminar:

    Parece-me que a perseverança é uma virtude que está fora de moda (não só nesta questão, mas em várias outras) e a tolerância também. E também parece-me que o casamento não é vivência para ninguém se não para o perseverante, o tolerante, o paciente. Ou para aquele disposto a sê-los, a desenvolver esses predicados em si mesmo. Casamento é para os fortes, sim, e não adianta fingir o contrário.
   
    Pois, com o tempo e a constante companhia, os defeitos do outro não aliviam-se, mas acentuam-se. Assim como o laço do costume tem o poder de gradualmente “relevar” as qualidades, tirá-las de destaque, percepção, nota, gratidão. O poder de fazermo-nos take for granted. Da mesma forma, é verdade que o hábito aperta a corda sobre o encanto, faz esparecer qualquer paixão, empalidecer todas as cores da vivência que − em plano e sonho e anteriores conversas − pareceu tão vivo arco-íris. É verdade que, quando alguém se casa, os problemas dobram, a família se estende, o tempo para si escasseia, o espaço também... É verdade que verificam-se comprovadas um monte de verdades que gostaríamos que fossem mentiras, coisas inventadas.

    Por outro lado, é verdade tão verdadeira quanto também que chega um ponto na linha da vida em que até o mais incansável dos aventureiros quer descansar. Cansou de arriscar, esgotou-se da emoção e do suplício da constante novidade, da pequena duração, da incerteza. Mesmo ao mais aventureiro, torna-se tranquilamente tentadora em certo momento a segura praia, a raiz entranhada e profunda, a “tampa da panela”. Não acontece com todos; sempre há os aventureiros que terminantemente recusam-se a aceitar a ideia da estadia em um só porto. Mas, não é o caso da maioria.

    E quantos de nós, no fundo e na verdade, aventureiros somos? Quantos de nós gostamos de malandrar de galho em galho, sem fixar ninho em nenhum? Quantos de nós adoram a ideia de, num acidente de vôo, típica coisa de qualquer percurso, ter que pousar em qualquer galho, só, sem ter quem olhe por ti, cuide de ti, e venha lamber suas feridas? Quem, aliás, mesmo sem hipotetizar nenhuma ocorrência no percurso, adora a ideia de perambular (ou definitivamente instalar-se) para sempre desacompanhado? Sem ter quem te espere chegar seguro no fim do dia, quem abençoe a sua partida, celebre a sua chegada, pense em você na sua distância? Sem ter quem saiba que não existe outra pessoa como você, quem te conheça em cada detalhe, em suas inteligências e idiotices, seus hábitos dos mais peculiares e preferências sem sentido?

    Creio que o desafio do casamento é uma questão de “ou isto ou aquilo”. De saber escolher o que mais lhe cai bem, celebrar seus prós, aceitar seus contras, e abdicar do resto. Casamento é difícil? É! Sem dúvida. No entanto, quem disse que a sozinhez também não é difícil, vem com seus preços a se pagar?

   Quem não se acha disposto a fazer sacrifícios, e topar com bravura os desafios da convivência... Então... Fortaleça-se para o caminhar solo. Por outro lado, quem não acha que se acostuma facilmente ou alegremente a caminhar sozinho, precisa aceitar os desafios da convivência. Não se esquivar deles, nem ignorá-los, nem transformá-los em motivo para desistir de tudo. Aceitá-los como desafios, desafios que fazem parte, e podem ser até... comicamente divertidos...

Nenhum comentário:

Postar um comentário