quarta-feira, 26 de abril de 2017

A praça

                                                                             
 
    É aí onde estão os patins e patinetes, correndo alvoroçados e risonhos, lambuzando-se de liberdade.

     É aí onde estão os bebês, no colo e nos móveis berços, encantando-se com as luzes do dia, os movimentos da vida e os barulhos e olhares das pessoas.
   
     É aí onde estão os avós, papeando entre si lá as suas doenças e seus remédios, os acontecimentos grandíssimos de suas vidas e da vida daqueles que amam, olhando sem inveja e com carinho a juventude juventudear-se.

     É aí onde estão os enamorados, em busca de um canto que seja a música para a melodia de algumas palavras baixinhas, o palco do singelo espetáculo de toques furtados, ou o cenário para a exibição de sua felicidade aos olhos alheios, que deles em verdade se fogem.

     É aí onde estão os papais, despreocupados de pula-pulas onde saltitam seus pequenos com a alegria colorida de toda a vida que ainda lhes é inédita.

     É aí onde estão os sós, sem laço nem melaço, sem intranquilidade nem drama, a observar seu entorno, somente e completamente estando.

     É aí onde estão as mentes, lúcidas ou desvairadas, daqueles cujos corpos vagamundam, e cujas palavras não raro teatrais e saracoteantes, longe de ferir a paz do recanto, são parte constituinte dela.

     É aí onde estão as pipocas, craqueteando-se nos gustadores das pessoas, decorando suas fileiras dentais, passeando pelo chão sempre acolhedor da praça.

      É aí onde desagarram-se as leituras, regadas pelo respiro de vida, a escuta piada do sabiá, da fonte, do cosmos humano e não humano a rebolar-se calmeiro.

      É aí onde passam e ficam as pombas, disputando os grãos e farelos minguadamente disponíveis e as hostilidades das pessoas pouco amenas, pouco escassas.

     É aí onde estão os sorveteiros e seus simpáticos gritos propagandísticos. É aí onde estão as massas de nuvens coloridas que as crianças tanto apreciam e os adultos fingem não apreciar tanto.

     É aí onde está a preguiça do domingo, a sonolência do almoço findado, o charme do roçar doce da tarde que se achega. Aí onde esperam reservados uns minutos calmeiros escapulidos da pressa da semana e dos agitos sabadisticos.

     Aí onde a eternidade da vida cabe, pouco mudada pela caminhada dos séculos.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

A saliência dos contornos e a poupança da verdade

                                                           

     Desde muito cedo, talvez não cedo suficiente, aprendemos a lidar com os diferentes usos públicos que fazemos do dinheiro. Por exemplo, somos instruídos por nossos pais e avós (quando louvavelmente cautos) a não fazermos espetáculo de item comprado com vultosa soma ou de alguma vultosa soma em espécie. Por segurança, para não colarmos em nós mesmos a perigosamente invejada marca da abundância. Porém, não nos preocupamos em demonstrar, em símbolos adquiridos ou em viveza de moedas, quantias humildes que são do acesso de todos, que não impressionam, não destoam do comum, não carimbam marcantemente a memória de alguém.

    Ultimamente tenho reparado que o mesmo deveria se processar com vivências e traços de personalidade, de nós mesmos e das pessoas à nossa volta. Devíamos economizar aquilo que manifestamos.

      Do que estou falando? Com exemplos, o argumento ficará mais claro.

     Já reparou que, quando algo dá certo em nossa vida, um plano ou um relacionamento, nosso primeiro impulso é contá-lo a Deus e o mundo? Queremos que quem nos ama saiba como estamos felizes, e quem nos odeia também. Queremos compartilhar nossa experiência e alegres sensações com quem nos é caro, despertar o olhar invejoso e despeitado em nosso desafeto. É nossa mais comum reação, até certo ponto compreensível. Gostamos de exercer poder sobre um outro, mesmo ou principalmente se for este o de machucá-lo, bem como de comunicar uma experiência que estamos tendo.

    Porém, mais sensato seria se fizemos o contrário. Muito calássemos, pouco falássemos. Tesouros nós são roubados muitas vezes pela informação que a seu respeito deixamos, sem querer, circular. Ou pela nossa insuportável alegria em tê-lo, que um (des) semelhante deseja para si, e tenta alcançá-la através do meio que nos causou-a, exatamente, tomando-o para si.

     Parecido ocorre com características - de pessoas ou coisas. Nossas palavras delineam realidades, com um poder de criação que barbaramente subestimamos. Elas dão contornos, inventando e criando traços que já estavam ali, mas antes indefinidos, fundidos ao todo.

   Ao dizermos a nós mesmos que somos inúteis gastadores de tempo e nada que preste conseguimos realizar, malgrado tenhamos absurda fartura dele, de fato nada faremos. Se dissemos a nós mesmos que somos plenamente capazes de cumprir o prazo desafiador que nos foi dado para certa tarefa, passaremos a obrar nessa direção e, no final, teremos cumprido com folga o limite já folgado. 

     Se dizemos a alguém que o que menos gostamos em si é seu jeito de fazer interjeições debochadas e cruéis, só o que veremos com esse dispêndio infeliz de sinceridade é que o traço se acentue e se saliente. A pessoa, que talvez nunca tenha se dado conta de possuir tais formas de expressão, passará a reparar nela e a efetuá-las. Repetir o padrão de comportamento que supostamente identificamos, replicar a realidade que na verdade estamos gestando com nosso bisturi delimitador das palavras.
  
    Uma das maiores dificuldades do ser humano é entender-se em meio ao seu caos, delinear características que é o definem em meio à sua névoa, a seu conjunto de luzes sombras, à sua metamorfose, à sua multiplicidade. Quando alguém, ou esse próprio alguém, se apresenta com uma receita, uma leitura pronta e fechada do ser, o mais fácil e quase inevitável é segui-la. É tão difícil e angustioso viver sem delimitar suas próprias fronteiras, sem assinar sua identidade, que pouquíssimos de nós contrariam alguém que faz isso por nós, por favor, por caridade. Por imprudência comunicativa, por desatino palavrório.

      Um indivíduo alcança sapiência e grandeza, assim, quando não se deixa usurpar de amores, viagens, memórias e projetos pelo desperdício imprudente de palavras. Quando sabe poupar o outro da exteriorização de um negativo julgamento, se não absolutamente necessário, porque sabe do poder de suas palavras em moldá-lo. Quando não se deixa generalizar, perdendo o que há de infinito em si ao circunscrever-se, limitar-se seguindo a prescrição de outros, se fazendo em conformidade com a imagem recortada e incompleta que alguém vê de si e congela.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

A lição do valete de copas

                                                          

  Era tarde, uma agradável tarde de verão alongada pelo comprida luz natural do dia e pelo esperto horário humano que se ajusta para aproveitá-la. Eu ainda tinha lá a idade em que o grande gosto da vida era brincar junto da molecada da rua e apostar pra ver quem ia pular o muro do vizinho e enfrentar seu pouco simpático cão para recuperar a bola. Ou, quando a coragem ajudava, para roubar um punhado de mexericas que chupávamos como se fosse o néctar dos deuses e, quando sobrava, exibíamos em casa como troféus de grande aventura.

    Devia ser fim de ano, época em que a família se ajunta. Depois do café com pão e conversa fresquinha, sentamos para jogar baralho: eu, minha irmã e duas tias da minha invejável coleção delas. Cada tia parejada com uma de nós, meninas, claro, para dar um páreo bom. Lembro da ocasião com detalhe, com a viveza típica de memória de criança e de momento marcante.
   
    Certa rodada, minha mão veio com uma sequência de jogo admirável. K,Q-10,9. Rei, dama, dez e nove de copas. Faltava o valete. Quem joga buraco sabe que jogo com números baixos no contar final vale menos, acima de 7 vale mais. Fora que a carta desenhada é mais bonita que aquela só com números. Eu era uma criança encantável e gostava de ganhar. Queria o valete. Estava determinada a conseguir o valete.
   
    E fiz por onde achá-lo! Evitei lixar durante toda a rodada, para não encher a mão de muambas enquanto podia estar comprando e conseguindo o valete. Deixei passar descartes desatentos da minha irmã que completavam o jogo da minha parceira porque precisava comprar o valete. Aliás, até esqueci que tia Zinha era minha dupla, e eu precisava jogar em dupla.

    Também não prestei atenção que minha irmã e tia Lourdes foram avançando no jogo, pegando o morto e podendo logo encerrar a rodada muitos pontos à nossa frente. Nem preciso dizer que ao comprar, e seguidamente não ser premiada com o valete, descartei partes de pequenos joguinhos que se formavam, talvez um 5-4-3 de espadas. Mas eles não valiam o que meu jogo grande valia. Ou valeria, se tivesse acontecido. Se o bendito valete tivesse dado as caras. Não deu.

    A rodada logo terminou com saldo minguado pra nós. Pontuamos muito pouco, quase nada. Porque tia Zinha jogou sozinha e eu joguei fixada no fantasma do valete, o que lamentei abertamente, com direito a carranca emburrada e muxoxos variados. Não deixando passar a ocasião para valoroso conselho, minha tia-parceira se pronunciou. Perguntou se eu tinha entendido porque perdemos tão feio, e percebido que deixei passar várias oportunidades, deixei escorrer o jogo inteiro por causa de uma única carta. Que nem encontrei.

    Então, eu corei. O rosto ardeu e os olhos procuraram o chão como acontece com quem sabe que a lição cabe, é bem dada. Nunca esqueci aquele dia. Mas, passados alguns anos da minha era de moleca, de novo eu quase me peguei remoendo um valete de copas - que não era carta de baralho. Felizmente, percebi a bom tempo. E quis abrir aqui essa conversa.

    Quantas pessoas não sofrem com valetes de copas? Quanta gente não quer tanto ir a um determinado show, ou viajar a um evento específico, tão longe no futuro, que se fecha a qualquer oportunidade de diversão para poupar dinheiro para a meta e deixa de aproveitar as presenças da vida?

    Quanta gente não se encasqueta com um caminho pré-definido de carreira, um concurso, e passa batido por várias outras opções que aparecem e não raro descaradamente se oferecem, se insinuam? E deixa os anos passarem num estupor sem mesmo aproveitar a escolha? Quantos de nós não cismamos tão doentiamente com um par maravilhoso que não conhecemos mas mentalmente criamos que nem enxergamos a talvez igualmente maravilhosa pessoa que divide conosco elevador todos os dias?

    A falta de foco produz imagem de reduzida qualidade e um caminhar vagueante, de que tiramos pouco proveito. Mas o excesso de foco tampouco resulta num harmônico conjunto. Deixa borradas partes da vista que subtraem dela o seu possível sublime. Deixa a gente blindado, impermeável, ensebado de certeza e obsessão. Barrando com um escudo revestido de burrice o encanto do inesperado.

    É bom deixar espaço para o inesperado. Para as várias possibilidades. Não condicionar o olhar buscando um só elemento do horizonte. Não estreitar a visão, perfeitamente capaz de abarcar primeiro, segundo e terceiro plano, centro e periferia, com sábia perspectiva. É apenas sensato não se esconder da oportunidade ou bloquear sua aparição. Alforriar o espírito da fixidez e a vida do roteiro traçado.

    Às vezes, o universo sabe melhor que nós o que é melhor para nós mesmos. E o que visualizamos não nos convém tanto quanto aquilo que se intromete, que improvisa, que surge antes de qualquer expectativa, qualquer plano. Ou contra eles.

    Quando precisamos deles, sinais aparecem. Alternativas. O universo pode ser, se quisermos, um multiverso. Mas é imperativo nos permitirmos perceber. Tirar a venda e a anestesia que o valete de copas pode nos colocar. Cuidar para que ele não nos enfeitice para a vaziez da linha reta, acabe trancando portas e janelas. E nos fazendo perder rodadas tristonhas de um jogo de baralho, indo para o buraco...