quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O vício da embalagem

                                                              

   Há algumas semanas (ano passado), um pequeno grande burburinho fez-se ouvir na mídia em torno de uma atriz que apareceu irreconhecível numa cerimônia em Los Angeles. Renée Zellweger pode ou não ter feito procedimento cirúrgico ou cosmético, mas o fato permanece de que mudanças em seu rosto são notáveis e serviram de mote para mais uma vez levantar o assunto estética, e até onde somos capazes de ir por ela.

    Em primeiro lugar, achei curiosíssima a postura de grande parte da mídia, que criticou e debochou as transformações da atriz, e talvez sua atitude de fazê-las, enquanto é, inegavelmente, a principal força motriz dessa generalizada obsessão por beleza, a principal difusora dessa indústria, a invisível instituição que instigou o germe que motiva as pessoas a tantas loucuras por sua imagem e colocou Renée nessa posição em que ela tende a fazer tudo e qualquer coisa para manter a aparência. Em segundo, os comentários favoráveis parecem fazer mais do que simplesmente prestar elogio ou apoio à estrela de “Bridget Jones”, parecem esconder o problema cerne da questão: estamos chegando à um ponto de culto à superfície que é doentio, no qual nem percebemos a tremenda insanidade de tudo isso.

    Muitos dizem que optar por botox, cirurgia plástica, cremes, tratamentos e afins é perfeitamente aceitável se isso vai te fazer mais feliz, se vai te ajudar a elevar sua autoestima, viver melhor consigo mesma e com os outros. Dizem que, caso a coisa toda seja feita com segurança, com um profissional qualificado e numa clínica especializada, por métodos confiáveis, está tudo bem. Desculpem, não está tudo bem.

     Cada vez mais as pessoas estão se submetendo a procedimentos caros e perigosos para se tornarem mais bonitas, tentando se admitir na zona do universalmente considerado belo, mesmo sabendo que o conceito é relativo, e há várias formas de beleza. Se submetem a procedimentos caros e perigosos para se sentirem mais bonitas e terem a ilusão de que estão mais felizes por isso, quando, na verdade, se fossem realmente felizes e bem resolvidas consigo mesmas, não precisariam recorrer à esse tipo de fútil coisa para se sentirem mais felizes.

    Sinceramente, o exterior é só um dos elementos que constituem uma pessoa. É importante, sim, o primeiro que se vê, mas não é o único, e nem de longe o mais importante, o essencial. Nós somos mais do que o estampado à vista. Mais que um sorriso bonito ou um corpo perfeito, mais que rugas, olheiras, nariz torto ou dentes desalinhados. Lindas ou feias, devíamos praticar a arte da aceitação, de ser feliz simplesmente com o que somos, ou temos, e parar de venerar a superfície. Ao invés disso, devíamos tratar do conteúdo. De conhecer pessoas interessantes, ter conversas enriquecedoras, ocupar-nos com atividades que nos dêem prazer, e fazer uma pequena diferença no mundo, um trabalho importante. Devíamos dedicar menos espaço mental, energia e tempo em aparência, e nos preocuparmos mais em viver a vida, em viver uma vida que valha a pena.

    Também devíamos parar com essa neura de ficarmos mais jovens, de tentar não envelhecer. Meu Deus, que besta idiotice! Os sinais da idade deviam ser comemorados! É uma grande vitória ter vivido muitos anos, visto muitas coisas, ter histórias e histórias pra contar. Ter vivido é algo celebrável. A idade é algo de que todos devíamos ter orgulho, e mostrar como um troféu, não tentar disfarçar, atrasar, ou pior, apagar.

    Posso estar soando deveras radical, e entretanto, no fundo sei que estou sendo apenas razoável. Afinal, porque subitamente é tão necessário gastar algumas centenas de reais por ano na própria imagem, quando melhor obra que a natural não há, e respeitá-la, sem violá-la com toda sorte de processos agressivos, é o curso mais seguro para a saúde e o bem-estar? Acompanhar todas as tendências não é uma opção para quem deseja uma existência plena. Tampouco o é ficar lutando contra a inevitável, e talvez muito positiva, ação do tempo. Além do que, estar sempre insatisfeito consigo mesmo é jeito pouco sábio de se viver; e incessantemente olhar-se no espelho e desejar voltar cinco anos no tempo para ter aquele rostinho de antes, ou os quilos a menos, não é maneira boa de viver tão curta vida, e de manter no rosto um sorriso que - além de fazer muito bem ao espírito -, evita rugas, e realça a sua beleza com o brilho da alegria.

     De qualquer forma, para mulheres e homens - que também vêm sofrendo as exigências da estética, mormente no quesito corpo e silhueta -, o cenário é grave e pede reflexão. Precisamos desesperadamente de uma virtude que está em falta: a habilidade de ser simplesmente feliz com o que se é, e não estar eternamente insatisfeito, especialmente com a própria imagem. Precisamos ainda mais urgentemente de um lema que devia governar também as nossas queridas marcas comerciais: deve-se largar um pouco de lado a embalagem, e preocupar-se mais com o conteúdo.
   
   

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Intolerância, uma questão de negação



    Recentemente, estive folheando a obra “Ordem e Progresso”, de Gilberto Freyre, o sociólogo que analisou a história do Brasil com tanta ciência. Em certo ponto, meus olhos caíram sobre o seguinte trecho, um depoimento de um homem abastado, nascido em 1888:

     “Jamais se aninhou em mim qualquer preconceito de raça. Cresci e me fiz homem, amando os meus semelhantes, tratando com especial deferência e carinho os pretos, os mulatos, os mais humildes. Pensava, assim, resgatar a injustiça da escravidão a que foram submetidos. Como já disse antes, minha família foi entusiasta da Abolição. E quanto ao aspecto concreto e pessoal da questão, poderá parecer que minha resposta a este item contradiz a dada ao anterior. Mas não há tal. [...] Não veria com agrado, confesso, o casamento de um filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor. Há em mim forças ancestrais que justificam essa atitude. São elas, percebo, mais instintivas do que racionais, como, em geral, soem ser aquelas forças, sedimentadas, há séculos, no subconsciente de sucessivas gerações.”

    Fiquei deveras impressionada. Há muito eu não lia algo tão verdadeiro, tão significativo enquanto tradução da realidade brasileira. Em seu relato, o homem admitiu uma das faces mais obscuras do inconsciente coletivo do país: sob a capa da diversidade, da convivência intensa e constante com a diferença, escondemos a nossa intolerância, o nosso preconceito.

    O nosso forte preconceito, que existe, sim, apesar de todas as tentativas de negação. E não digo somente quanto ao negro. A segregação racial exposta acima - velada sob o manto do discurso igualitário mas trazida à luz pela nítida aversão do moço branco à associação direta e equânime entre ele ou sua família à “gente de cor” - serve para ilustrar a nossa falta de tolerância e a nossa descarada falsidade ao afirmarmo-nos, em contrário, tolerantes. Negamos e negamos, mas sabemos que a discriminação realmente existe. Não gostamos igualmente daquilo que é diferente, “inferior”, daquilo que discorda do padrão ou que destoa da dominante maioria. E, repito, o problema não é só o racismo. A homofobia e o preconceito religioso são outros claros exemplos de como não sabemos conviver bem com o diferente. Sejamos francos, não adianta disfarçar. Não sabemos.

    Mesmo o bullying é uma expressão latente de intolerância. É a intimidação do oprimido - que, na maioria das vezes, é alguém que carrega algum marcante traço diferente, como um aparelho horrível nos dentes, uma estatura inferior, um corpo desenquadrado nos lindos formatos exigidos, gostos próprios e diferentes da onda - pelo dominante, uma pessoa insegura e carente que usa da intimidação para se impor, tentando convencer-se de que é melhor, de que tem mais valor.

    Não estou propondo que todos nós partilhemos da franqueza de Luiz Toledo, o senhor do depoimento, ou que é uma boa ideia aderir à linha de sua confissão. Uma confissão dessas não pode ser fácil. Se multiplicada, provavelmente semearia a discórdia. A verdade é perigosa. E, nesse caso, também é crime. Mas a hipocrisia é a pior das prisões.

    E se fizéssemos um exame do próprio consciente, ou inconsciente? Cada um de nós, fazendo um exame - que não precisa ser público -, averiguando a própria conduta, a própria forma de pensar? Se buscássemos corrigir nossos erros, profunda e honestamente aceitar a diferença? Se tentássemos identificar nossos preconceitos, e, enfim, tentar dissolvê-los? Seria um bom começo. Afinal, o primeiro passo para resolver um problema é reconhecê-lo, vencendo a negação. Se continuarmos a escondê-lo, não trataremos de lidar com ele, estaremos sempre afastando-o, varrendo-o para debaixo do tapete, para longe dos olhos e da mente. A intolerância é um problema sério; a tolerância é a virtude a ser almejada, praticada, mas com sinceridade. Sem teatro, sem sorrisos treinados, sem discursos demagógicos. Será que conseguimos? É algo no que pensar.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Divagações de uma mente antiquada


 

    Tenho um amigo escritor. Seu nome é Lucas (ou L.S. Bertolino, como ele imprime em seus trabalhos). É barbacenense, formado em Letras, tem vinte e três anos, e seus livros são verdadeiros organismos, espécimes poderosas e surpreendentes de literatura fantástica.

    Mas não é de Lucas ou de sua obra que eu venho falar hoje (embora eu sincera e entusiaticamente a recomende. O segundo volume de sua série “A lenda de Arion” foi publicado recentemente e vale a pena cada página). Venho falar sobre a mídia principal de seu marketing - seu e da maioria dos outros escritores e artistas independentes dos nossos tempos modernos. Venho discorrer um pouquinho sobre a internet, seu novo papel enquanto rede de comunicação, e as diferentes formas de interação que nasceram com ela.

    Lucas tem seu perfil em várias redes sociais, sua estória tem um site. É natural que, como profissional das letras e difusor de sua produção, ele queira atingir o maior número possível de pessoas e possibilitar que elas também tenham acesso a ele. Entretanto, não é mais incomum que essas outras pessoas também tenham seus próprios canais, compartilhem suas opiniões, sugestões, gostos e vivências através da internet, promovendo-se e fazendo contato com muita gente, mesmo sem um produto, uma ideia ou arte específica para divulgar. A rede mundial de computadores revolucionou o nosso conceito de interação, tornou-se plataforma importante de convívio, de comunicação, de ampliação de círculos de amigos, cultura e informação. Chega a ser onipresente, a ponto de os mais jovens se perguntarem como pode haver vida sem ela.

    Mas pode, e já houve. A internet é invenção novíssima, afinal, se comparada à humanidade, que tem seus milhares de anos, e que apenas mais recentemente passou a conviver com as grandes mídias audiovisuais. O cinema é das primeiras auroras do século XX. Os anos 30 do mesmo século viveram a era do rádio, e os anos 70 viram o estouro da televisão  - estouro tão poderoso que inclusive a produção musical do período girava em torno do que era veiculado pela telinha. Programas de rádio eram parte essencial do cotidiano de nossos avós; telenovelas eram o entretenimento imperdível das noites de nossos pais. Dessa época, sabemos ao ouvi-los contar. Ninguém perdia um capítulo. Todos ficavam ansiosamente querendo o prosseguimento da história, esperando a hora da novela, e tinham olhos grudados à TV quando ela finalmente começava. Hoje, nós não nos desligamos é da internet, estamos a toda hora conectados.

    Similarmente, os protestos contra a ditadura militar eram todos combinados por grupos que se reuniam em casas particulares ou redutos estudantis, que se contactavam por telefone fixo e divulgavam, na medida do possível, suas ideias por panfletos e jornais. As contestações eram, também, diluídas e disfarçadas em letras de música. No século XXI, porção significativa da Primavera Árabe iniciou-se e articulou-se através das redes sociais da internet, assim como as manifestações de junho de 2013 no Brasil.

    É curioso perceber como os diferentes tipos de mídia foram sucedendo-se, umas às outras, transformando-se e ao mundo continuamente, transformando o poder das anteriores e paralelas em regime de importância e presença na vida das pessoas. Até mesmo o Enem 2014 chamou a atenção para a mais contemporânea expressão desse fenômeno, trazendo numerosos textos produzidos na internet, gêneros próprios do ciberespaço, charges e imagens que atentavam para o fato de que a mídia virtual vem suplantando todas as outras. Já é impossível fazer televisão sem a participação da “galera da internet”. As grandes lojas virtuais têm a lapela de sua página eletrônica cheia dos produtos “mais compartilhados nas redes sociais”. As grandes marcas não podem mais existir sem lojas virtuais, em primeiro lugar... Não há dúvida. Vivemos na era da internet.

    Eu, declaradamente alguém bastante “pé atrás” com o universo virtual, me pergunto se não estamos passando dos limites. Se as pessoas não estão se expondo demais, e desnecessariamente; se não há um exagero no que é compartilhado (quase tudo) - momentos especiais que poderiam ser saboreados mais intimamente, com mais reserva; minutos cotidianos que poderiam ser mais simples, mais privados. Se muitas ocasiões não estão sendo, equivocadamente, vividas para serem postadas. Eu me pergunto o que será feito dos jornais impressos, das agências tradicionais de publicidade, das antenas de rádio e TV,  já que “tudo está na internet”. Eu me pergunto onde vão parar as relações pessoais essenciais, o olho no olho, o abraço, ou o telefonema em que você ouve a voz de uma pessoa e a faz tão feliz apenas por ter se dado ao trabalho de discar seu número, de procurá-la, de ir até ela quando ela não estava imediatamente disponível, talvez online. Eu me pergunto onde vai parar a simples delícia do elogio, já que hoje basta “dar um joinha” ou “curtir" o que uma pessoa posta.

    Em suma, fico a pensar se não estamos nos deixando engolir, usando de forma exagerada, inadequada, uma ferramenta tão útil. A internet é útil, tanto uma realidade inevitável quanto uma benção, o local em que primeiro ouvimos falar de músicas, filmes e livros, onde conhecemos bons autores e temos contatos com boas ideias. Mas... continuo com meus receios, minha desconfiança, tenho minhas reservas. Bobagens? Não sei. Talvez sejam divagações de uma mente antiquada.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Coisas que os mineiros não sabem


   Sabe aquelas coisas que quando alguém conta, você fala assim “ó”. Isso é coisa de mineiro. E o mineiro mais roceiro um cadinho fala assim “ óia bem!”. E o mais roceiro ainda põe a mão na cintura, dá aquele sorriso faceiro que só o mineiro sabe fazer, e diz “vê se pode um trem desse!”.

    Pois é. Hoje, eu vim contar uns trens desse. Não sei se é porque estou longe de casa que estou assim suspirante, querendo falar de Minas... Engraçado como certos amores palpitam mais fortemente à distância, não é? Ou talvez seja só o fato de eu gostar de colecionar essas bobeiragens interessantes, curiosidades culturais - que aliás não são bobeiragens nada -, e gosto de dividi-los também, quando posso.

    Bom, mas já enrolei bastante, vamos a elas.

   A maioria dos mineiros não sabe que a expressão ‘pé rapado’ é muito nossa. Na Minas Gerais colonial, havia igrejas separadas para brancos ricos - que nada faziam, e trabalhavam com afinco numa ocupação chamada ócio -, outras para negros - que não eram considerados gente -, e outras para brancos pobres, que, em sua maioria, trabalhavam em pastos, fazendas e roças, e viviam com as botas sujas de barro ou das excretas de certos mamíferos nossos companheiros. Então, antes de entrar na igreja, estes últimos rapavam o pé (a bota, tamanca ou chinela) em uns ferrinhos dispostos no chão ao lado das entradas dos tais redutos de reza. Pobre coitado, que trabalha e trabalha, e mal tem onde cair morto. Pé rapado.

    Da mesma forma, a expressão ‘tem ouro aí’ que é dita quando você tropica em algum lugar. Essa eu acho um charme! Na Minas Gerais do mesmo período, tanto ouro havia que todos diziam que não era difícil tropeçar nele. Era só cavacar um tiquinho em qualquer canto, que se achava ouro.

    Muitos mineiros não sabem, mas Minas hospedou Machado de Assis, e em um momento particularmente difícil de sua vida, em que sofria muito dos castigos da epilepsia - e da vergonha de suas crises, tornadas espetáculos públicos. Ele veio com a sua Carolina, a convite de alguns conhecidos, e escondeu-se um pouco, estando em um sítio em Antônio Carlos, além de visitar Três Corações, Juiz de Fora, e Barbacena, que uma outra pessoa documentante da viagem descreveu como “cidade velha e feiíssima, enladeirada, e com péssimo calçamento de pedras irregulares”. Isso em 1890... Em 2015, não está muito melhor, tadinha.

    E pobres cariocas de passagem! Se acharam Barbacena enladeirada, imagine se fossem à Ouro Preto. Eu suspeito que Deus não só dá o frio conforme o cobertor, também dá o morro à medida que as pernas aguentam.

    Muitos mineiros sabem, mas se esquecem, do nosso aviador pai, Santos Dumont, nascido na Serra da Mantiqueira, para brilhar nos céus de Paris. Embora mineiro de nascença, do sítio Cabangu, ele deve ter se lembrado muito pouco daqui, tão pequeninho foi embora, primeiro para Valença, no RJ, em seus quatro anos, depois para Ribeirão Preto, Paris - que foi o seu lar -, e suas várias andanças nos finais anos melancólicos que passou aqui no Brasil. Ele foi outro gênio lastimado por doença triste - no caso dele, a esclerose múltipla -, que tanto frustrou-o em suas provocadas debilidades e não lhe permitiu levar adiante sua vida de aviador.

    Muitos mineiros não sabem, mas especula-se que o triângulo original de nossa bandeira era verde. Mudou-se depois pra vermelho, que é a cor republicana, e um grande símbolo, o tom maior, das revoluções. Eu não sei porquê, esse detalhe me agrada. Gosto da ideia de pertencer à um estado, digamos, calmamente rebelde.

    Se tem algo que é uma marca muito minha é isso: meu orgulho de minhas origens, e meu apego a elas. Eu posso ir para onde for, mas de alguma forma, sinto que sempre estarei de volta. Meu lugar é aqui. Aliás, lá. Minas Gerais é a ponta seca do meu compasso, onde minha referência está, meu lar, e não importa o quão longe o raio grafitado da vida me faça orbitar por um tempo, eu sinto que tenho em mim o ponto de onde tudo partiu, e para o qual tudo voltará. Sou mineiríssima, de nascença, de coração, por opção. (Embora eu goste bastante do mar, e ame o Rio de Janeiro, cidade com a qual tenho um caso de amor seríssimo. Mas esse é causo para outra história.)

    Eu sou tão mineira, mas tão mineira, que antes mesmo de saber de sua história, eu já cultuava seus maiores símbolos. Meus pais contam que quando eu era menor, gostava de ‘juntar dinheiro’, mas só em moedas de ouro, as ‘douradas’. Não gostava das ‘de prata’, e desconfiava das ‘de bronze’. Curioso esse instinto mineiro, né? E, a propósito, eu juntava dinheiro para comprar uma fazenda grande e enchê-la de cavalos. Eu era fanática por cavalos... Ainda sou, aliás... E não sei se posso dizer que desisti, lá no fundo, da minha fantasia de ser sinhá da roça, num sobrado imponente, com fogão à lenha crepitando e a lavoura preenchendo toda a vista. Num lugar bonito, onde minha comadre venha me visitar pra uma broa, ou pra um café com pão de queijo; onde eu tenha vários bichos e vá dar bom dia pra eles. Um cantinho quieto, onde nada pode macular o sossego dos dias, onde a loucura da civilização não chega, onde poesia maior não há que o som do berrante, junto com passos de uma botina de couro... Como são engraçados esses sonhos de infância dos quais a gente não se desgarra!

    Ai, meu coração apertado... Eu quero minhas galinhas, meus bichinhos, minha rua de pedra... Ai, que saudade de casa!

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Segregação social



    Adoro acompanhar temas de redação de prova, independentemente das que estou fazendo, daquelas nas quais estou me envolvendo. Vira e mexe a gente topa com algo tão provocativo, os temas nos instigam a pensar em coisas que normalmente não passariam por nossa cabeça.
   No último domingo, a redação do exame para a USP foi um pequeno baque: camarotização da sociedade brasileira: a segregação das classes sociais e a democracia. Quando o esperado era água, lixo, o regime militar e sua memória, você abre o caderno de prova e vê um negócio desses... É sério isso? É esse o tema? De onde que eles tiraram isso? Depois daquele gelinho, bate a indignação. O regime de chuvas no Brasil está doido, a inflação está subindo, e tem gente esquecendo filho no carro! O mundo está virando de ponta-cabeça, e tudo o que nós temos pra discutir são os espaços vip, de shows e estádios... Sinceramente...
    Mas, quando parei pra pensar (e pra ler os textos-base com atenção, entender realmente a proposta) vi que o ridículo teminha era na verdade um temaço. Fiquei admirada da sacada de quem fez a prova e morrendo de vergonha do meu julgamento precipitado.
   O ponto-chave é o seguinte: se você olhar para o problema como camarotização, a separação de gente em espaços vip e espaços “comuns”, seja em qualquer ambiente, realmente parece certa bobeira. Mas se você enxergar o quadro como um todo, ler o contexto de maneira ampla, verá que isso é apenas uma amostra de um mal maior: a desigualdade social está chegando em estado de calamidade pública, e as coisas que somos obrigados a testemunhar todos os dias, como sutis manifestações dessa separação abismal, passaram do nível de absurdo, estão tocando o status de tragédia.

     Eu sei de uma tragédia dessas. Na minha cidade, o principal hospital público - público - tem duas entradas. Uma é a porta da frente, obviamente, e a outra é a dos fundos, que se dá através do serviço funerário vinculado à instituição.

      A porta da frente é reservada àqueles que têm plano de saúde, ou que estão visitando alguém que tem plano de saúde. Atendimento pelo SUS? “Dê meia-volta, querida, a entrada é pelos fundos, junto à funerária.” Gente de Deus! Que coisa mais doida, e mais doída! Além de claramente estar falando para o pobre assim “vai se acostumando, meu filho, seu caminho é por aí mesmo”; além da humilhação de fazer a pessoa entrar pelos fundos, como um ser inferior, indigno, essa situação está segregando as pessoas pela condição financeira, acentuando a diferença que existe entre ricos e pobres e transferindo-a até para o isolamento de convívios, não deixando-as ‘se misturarem’.

    E a tragédia se espalha, se dilata como água nos poros de um guardanapo. Vejam os condomínios fechados, os complexos de favelas. Como filhos de ricos e filhos de pobres simplesmente não vão à mesma escola, não se divertem nos mesmos espaços, não dividem a atenção de uma loja. Foi isso que os rolezinhos tentaram quebrar e não conseguiram, e é por isso que causaram tanto auê. As pessoas não querem enxergar a triste realidade que está em nossa cara: estamos vivendo um quadro de separação de sociabilidades, s-e-g-r-e-g-a-ç-ã-o, não muito diferente daquela do apartheid sul-africano, ou da segregação racial norteamericana que vigorou até os 60. A diferença é que, agora, o determinante da segregação não é a cor da pele, e sim o dinheiro que se tem, os privilégios que ele dá, a posição que ele confere. E, também, que a nossa segregação não é oficialmente amparada pela lei, mas suportada pela condescendência burra da extensa maioria da sociedade, que se sente confortável com a situação e a perpetua, toda vida, achando certo, achando-se segura com a separação...

    Para onde estamos indo? Onde vamos parar? Segregar as pessoas por uma coisa tão vazia quanto o dinheiro, as roupas que elas usam e explicitamente denotam o quanto elas têm... Dinheiro, aparências, poder...

    Apartar as pessoas, de qualquer modo, é algo ruim, lamentável. Ao invés de querer erguer barreiras, distinguirmo-nos, separar os convívios, devíamos querer abrir pontes, aproximarmo-nos, igualarmo-nos uns dos outros... Como os grandes sábios fizeram. Tolstoi, por exemplo, desfazendo-se do que lhe distinguia, tentando viver em comunidade, sociedade comum, e de fato igualar-se aos seus semelhantes... Como Christopher McCandless, o inspirador do filme ‘Into the wild’, que abdicou de todos os seus privilégios, de toda a hostilidade e a divisão que eles geravam, para viver uma vida mais próxima, próxima de si mesmo, das pessoas em sua essência, da natureza, do que ele considerava a sua verdade.

   Somos todos iguais, e olhando o lado humano desse fenômeno urbano, a tristeza é ainda maior. Só temos a perder com esse negócio de apartar... A transmissão de culturas, a convivência enriquecedora, a surpresa que as pessoas nos pregam, o amor entre as pessoas...
    O sol brilha igualmente para todos, então por que devemos abrir corredores exclusivos onde pode haver um grande campo aberto?

   Acabou que o tema da redação da Fuvest 2015 foi, sob o meu olhar, brilhante. Relevante, instigante, inesperado. E falou sim, dos erros do passado, tocou em patrimônio e memória, e em sustentabilidade, no seu vetor mais importante - a sustentabilidade da espécie humana, como um todo, que não pode mais só existir, em tanto desequilíbrio, tem que aprender a viver. A CONviver.