quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Intolerância, uma questão de negação



    Recentemente, estive folheando a obra “Ordem e Progresso”, de Gilberto Freyre, o sociólogo que analisou a história do Brasil com tanta ciência. Em certo ponto, meus olhos caíram sobre o seguinte trecho, um depoimento de um homem abastado, nascido em 1888:

     “Jamais se aninhou em mim qualquer preconceito de raça. Cresci e me fiz homem, amando os meus semelhantes, tratando com especial deferência e carinho os pretos, os mulatos, os mais humildes. Pensava, assim, resgatar a injustiça da escravidão a que foram submetidos. Como já disse antes, minha família foi entusiasta da Abolição. E quanto ao aspecto concreto e pessoal da questão, poderá parecer que minha resposta a este item contradiz a dada ao anterior. Mas não há tal. [...] Não veria com agrado, confesso, o casamento de um filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor. Há em mim forças ancestrais que justificam essa atitude. São elas, percebo, mais instintivas do que racionais, como, em geral, soem ser aquelas forças, sedimentadas, há séculos, no subconsciente de sucessivas gerações.”

    Fiquei deveras impressionada. Há muito eu não lia algo tão verdadeiro, tão significativo enquanto tradução da realidade brasileira. Em seu relato, o homem admitiu uma das faces mais obscuras do inconsciente coletivo do país: sob a capa da diversidade, da convivência intensa e constante com a diferença, escondemos a nossa intolerância, o nosso preconceito.

    O nosso forte preconceito, que existe, sim, apesar de todas as tentativas de negação. E não digo somente quanto ao negro. A segregação racial exposta acima - velada sob o manto do discurso igualitário mas trazida à luz pela nítida aversão do moço branco à associação direta e equânime entre ele ou sua família à “gente de cor” - serve para ilustrar a nossa falta de tolerância e a nossa descarada falsidade ao afirmarmo-nos, em contrário, tolerantes. Negamos e negamos, mas sabemos que a discriminação realmente existe. Não gostamos igualmente daquilo que é diferente, “inferior”, daquilo que discorda do padrão ou que destoa da dominante maioria. E, repito, o problema não é só o racismo. A homofobia e o preconceito religioso são outros claros exemplos de como não sabemos conviver bem com o diferente. Sejamos francos, não adianta disfarçar. Não sabemos.

    Mesmo o bullying é uma expressão latente de intolerância. É a intimidação do oprimido - que, na maioria das vezes, é alguém que carrega algum marcante traço diferente, como um aparelho horrível nos dentes, uma estatura inferior, um corpo desenquadrado nos lindos formatos exigidos, gostos próprios e diferentes da onda - pelo dominante, uma pessoa insegura e carente que usa da intimidação para se impor, tentando convencer-se de que é melhor, de que tem mais valor.

    Não estou propondo que todos nós partilhemos da franqueza de Luiz Toledo, o senhor do depoimento, ou que é uma boa ideia aderir à linha de sua confissão. Uma confissão dessas não pode ser fácil. Se multiplicada, provavelmente semearia a discórdia. A verdade é perigosa. E, nesse caso, também é crime. Mas a hipocrisia é a pior das prisões.

    E se fizéssemos um exame do próprio consciente, ou inconsciente? Cada um de nós, fazendo um exame - que não precisa ser público -, averiguando a própria conduta, a própria forma de pensar? Se buscássemos corrigir nossos erros, profunda e honestamente aceitar a diferença? Se tentássemos identificar nossos preconceitos, e, enfim, tentar dissolvê-los? Seria um bom começo. Afinal, o primeiro passo para resolver um problema é reconhecê-lo, vencendo a negação. Se continuarmos a escondê-lo, não trataremos de lidar com ele, estaremos sempre afastando-o, varrendo-o para debaixo do tapete, para longe dos olhos e da mente. A intolerância é um problema sério; a tolerância é a virtude a ser almejada, praticada, mas com sinceridade. Sem teatro, sem sorrisos treinados, sem discursos demagógicos. Será que conseguimos? É algo no que pensar.


Nenhum comentário:

Postar um comentário