quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Segregação social



    Adoro acompanhar temas de redação de prova, independentemente das que estou fazendo, daquelas nas quais estou me envolvendo. Vira e mexe a gente topa com algo tão provocativo, os temas nos instigam a pensar em coisas que normalmente não passariam por nossa cabeça.
   No último domingo, a redação do exame para a USP foi um pequeno baque: camarotização da sociedade brasileira: a segregação das classes sociais e a democracia. Quando o esperado era água, lixo, o regime militar e sua memória, você abre o caderno de prova e vê um negócio desses... É sério isso? É esse o tema? De onde que eles tiraram isso? Depois daquele gelinho, bate a indignação. O regime de chuvas no Brasil está doido, a inflação está subindo, e tem gente esquecendo filho no carro! O mundo está virando de ponta-cabeça, e tudo o que nós temos pra discutir são os espaços vip, de shows e estádios... Sinceramente...
    Mas, quando parei pra pensar (e pra ler os textos-base com atenção, entender realmente a proposta) vi que o ridículo teminha era na verdade um temaço. Fiquei admirada da sacada de quem fez a prova e morrendo de vergonha do meu julgamento precipitado.
   O ponto-chave é o seguinte: se você olhar para o problema como camarotização, a separação de gente em espaços vip e espaços “comuns”, seja em qualquer ambiente, realmente parece certa bobeira. Mas se você enxergar o quadro como um todo, ler o contexto de maneira ampla, verá que isso é apenas uma amostra de um mal maior: a desigualdade social está chegando em estado de calamidade pública, e as coisas que somos obrigados a testemunhar todos os dias, como sutis manifestações dessa separação abismal, passaram do nível de absurdo, estão tocando o status de tragédia.

     Eu sei de uma tragédia dessas. Na minha cidade, o principal hospital público - público - tem duas entradas. Uma é a porta da frente, obviamente, e a outra é a dos fundos, que se dá através do serviço funerário vinculado à instituição.

      A porta da frente é reservada àqueles que têm plano de saúde, ou que estão visitando alguém que tem plano de saúde. Atendimento pelo SUS? “Dê meia-volta, querida, a entrada é pelos fundos, junto à funerária.” Gente de Deus! Que coisa mais doida, e mais doída! Além de claramente estar falando para o pobre assim “vai se acostumando, meu filho, seu caminho é por aí mesmo”; além da humilhação de fazer a pessoa entrar pelos fundos, como um ser inferior, indigno, essa situação está segregando as pessoas pela condição financeira, acentuando a diferença que existe entre ricos e pobres e transferindo-a até para o isolamento de convívios, não deixando-as ‘se misturarem’.

    E a tragédia se espalha, se dilata como água nos poros de um guardanapo. Vejam os condomínios fechados, os complexos de favelas. Como filhos de ricos e filhos de pobres simplesmente não vão à mesma escola, não se divertem nos mesmos espaços, não dividem a atenção de uma loja. Foi isso que os rolezinhos tentaram quebrar e não conseguiram, e é por isso que causaram tanto auê. As pessoas não querem enxergar a triste realidade que está em nossa cara: estamos vivendo um quadro de separação de sociabilidades, s-e-g-r-e-g-a-ç-ã-o, não muito diferente daquela do apartheid sul-africano, ou da segregação racial norteamericana que vigorou até os 60. A diferença é que, agora, o determinante da segregação não é a cor da pele, e sim o dinheiro que se tem, os privilégios que ele dá, a posição que ele confere. E, também, que a nossa segregação não é oficialmente amparada pela lei, mas suportada pela condescendência burra da extensa maioria da sociedade, que se sente confortável com a situação e a perpetua, toda vida, achando certo, achando-se segura com a separação...

    Para onde estamos indo? Onde vamos parar? Segregar as pessoas por uma coisa tão vazia quanto o dinheiro, as roupas que elas usam e explicitamente denotam o quanto elas têm... Dinheiro, aparências, poder...

    Apartar as pessoas, de qualquer modo, é algo ruim, lamentável. Ao invés de querer erguer barreiras, distinguirmo-nos, separar os convívios, devíamos querer abrir pontes, aproximarmo-nos, igualarmo-nos uns dos outros... Como os grandes sábios fizeram. Tolstoi, por exemplo, desfazendo-se do que lhe distinguia, tentando viver em comunidade, sociedade comum, e de fato igualar-se aos seus semelhantes... Como Christopher McCandless, o inspirador do filme ‘Into the wild’, que abdicou de todos os seus privilégios, de toda a hostilidade e a divisão que eles geravam, para viver uma vida mais próxima, próxima de si mesmo, das pessoas em sua essência, da natureza, do que ele considerava a sua verdade.

   Somos todos iguais, e olhando o lado humano desse fenômeno urbano, a tristeza é ainda maior. Só temos a perder com esse negócio de apartar... A transmissão de culturas, a convivência enriquecedora, a surpresa que as pessoas nos pregam, o amor entre as pessoas...
    O sol brilha igualmente para todos, então por que devemos abrir corredores exclusivos onde pode haver um grande campo aberto?

   Acabou que o tema da redação da Fuvest 2015 foi, sob o meu olhar, brilhante. Relevante, instigante, inesperado. E falou sim, dos erros do passado, tocou em patrimônio e memória, e em sustentabilidade, no seu vetor mais importante - a sustentabilidade da espécie humana, como um todo, que não pode mais só existir, em tanto desequilíbrio, tem que aprender a viver. A CONviver.

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