quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Pares e ímpares

                                                                       
 
   Já Aristóteles dizia, na mui antiga Grécia, “a melhor maneira de não se conhecer é ficar a olhar-se no espelho". Ou seja, nós nos construímos e nos reconhecemos através do contraste, contrapondo-nos ao nosso diferente, observando e reconhecendo o outro, nos deixando fascinar por ele.
   
    De fato, só podemos “pensar fora da caixinha” se primeiramente a reconhecemos, identificamos sua existência. E obrigatoriamente só a enxergamos se estivermos fora dela. Ou olhando-a de dentro, atentos, porém, ao tudo o que lhe é externo. Similarmente, o isolamento não é bom cenário para o autoconhecimento. Passar mais tempo em nossa companhia, unicamente, não concorre para conhecermo-nos melhor. Pelo contrário. Assim, não temos uma boa perspectiva para miramo-nos, não nos colocamos em situações em que nos comportamentos de certo modo, pensamos tal cousa e depois nos indagamos por quê.

    Analogamente, mais efetivo é o conhecimento que tomamos de nós mesmos se estamos entre nossos diferentes que entre nossos semelhantes. Precisamos do contraste para delinearmos nossas percepções, nossa silhueta, nosso perfil.

    Não é à toa que muito melhor podemos esboçar uma definição do que é “ser brasileiro” se voltearmos pela Argentina e Colômbia do que em nosso país. Aqui, tudo é brasileiro e tendemos a generalizar comportamentos humanos como próprios do Brasil. Lá, temos parâmetro para saber o que não é brasileiro e, portanto, o que é que nos particulariza e especifica.

    Por que então preferimos a proximidade de nossos pares e evitamos a de nossos ímpares? Por que tão desconfortáveis nos sentimos na presença destes últimos a ponto de desejarmos a fuga, de sofremos já por antecipação ao ter que estar com ela? Por que fechamos de tal modo nossos círculos àqueles mais semelhantes a nós?

    Será que não sabemos mais olhar para nós mesmos, através do mais liso e preciso espelho de todos, os olhos do outro? Será, por outro lado, pela liquidez que nossa personalidade e nossas convicções não raro assumem quando nos encontramos num hábitat estrangeiro em que de todo modo queremos ser incluídos e sabemos que muito menos hostil ele nos será se lhe parecermos parecidos do que estranhos, diferentes completos?

    Será por essa sensação de que não podemos “ser nós mesmos”, falarmos sobre os assuntos que mais nos apetecem, expressar opiniões que mais genuína e convictamente temos, com conforto e sem reservas, entre nossos ímpares? Será por que é mais difícil existir sendo fiel a si mesmo com segurança entre quem nos é diametralmente oposto? Ou pelo desconforto da autopercepção, da claridade límpida em que vemos a nós mesmos no ambiente entre outrem?

    Não sei. Talvez seja por tudo isso. Mas fato é que - e eu digo isso principal e especialmente para mim mesma, já que esta é uma dificuldade na qual me identifico - grande bem nos faríamos se passássemos a reservar mais tempo e ocasião para estar entre nossos ímpares. Entre quem leva a vida de modo outro ao nosso, tem dias regulares que nos parecem fenômenos alienígenas se comparados aos nossos. Entre quem tem concepções diferentes sobre tudo e em nada se comporta como nós.

    Clarões de autopercepção e entendimento nos ocorrem nesses ensejos que muito preciosos nos podem ser para vivermos - quando sozinhos conosco, entre nossos ímpares e nossos pares.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Vivemos num mundo despalavrado?

O olho devora tudo instantaneamente, e o cérebro, agradavelmente provocado, se acomoda para ver coisas acontecendo sem se preocupar em pensar.” Virginia Woolf

    Como um mundo com pudor de menos é dito despudorado, um mundo com palavras de menos é dito despalavrado. De minha parte, acho que ainda não vivemos um mundo despudorado. Mas já vivemos às bordas de um mundo despalavrado. Isso, para mim, claro, que sou uma pessoa muito palavrosa.

    Sim, palavrosa. Palavrosa porque me guardo e me entrego, me sufoco e me desafogo, me perco e me compreendo, me calo e me expresso com palavras. Penso em prosa. Poesia, não, porque a poesia é muito musical para pertencer aos contadores de histórias.

    Por ser uma pessoa palavrosa, o hábitat natural do meu sentimento é o romance. Por ser uma pessoa palavrosa, é muito difícil que uma peça de teatro, um filme ou uma escultura me toquem mais que um romance. Ou um ensaio, ou uma crônica. Eu não costumo me identificar com um personagem transmitido à vida por um ator, em gestos, fisionomias e movimentos como me identifico por um cuja profundeza posso acessar pelas palavras, na descrição de um narrador ou no fluxo da consciência do próprio narrador-personagem. Não sinto tanta empatia ou transferência no cinema como na literatura. E quando quero dizer algo a alguém, demonstrar o que sinto, falsear o que não sinto, fazer um apelo sempre me vem mais fácil, me parece mais exata e mais capaz uma mão cheia de palavras que, por exemplo, uma mão cheia de imagens.
   
    Talvez isso seja sinal de que minhas sensibilidades são de algum modo aleijadas, tartarugas. Elas precisam da vagareza das palavras para sentir o que alguns sentem com o disparo do toque, da forma, da imagem, do som. Talvez seja indicador de que minha inteligência, minha razão governa soberana - possivelmente despótica - sobre meus sentidos.
   
    Não sei. Só sei que fato é que o mundo - ah, o mundo! - e sua maioria parecem estar na contracorrente da palavra. E eu, agarrada às palavras, na contracorrente do mundo.

    Cada vez mais gente parece associar ver como sinônimo a pensar. Cada vez mais gente consegue canalizar o que pensa, o que sente, o que quer contar pelo áudio e pelo visual. Cada vez mais gente prefere acompanhar uma história, experimentar uma sensação pelo áudio-visual.

    E eu fico a me perguntar se isso é questão de personalidade ou de coletividade. Se cada um de nós tem um pendor, por natureza, ou se nossas sensibilidades são condicionadas ao que somos expostos. Se é coincidência que no meu tempo existam aparentemente tão poucas pessoas palavrosas ou se isso se explica porque a calma das palavras não cabe, não convém no nosso frenesi moderno. Se a entrega que elas pedem não combina mais com a preguiça que nos domina.

    Eu fico a me perguntar se nós, perpétuos palavrosos, condenados a viver em meio às palavras porque não conseguimos desaprender a amá-las... Se nós estamos mesmo em extinção. E se o mundo não tem algo a perder com isso.
   
    Afinal, a mais rasa das palavras muitas vezes dá conta da mais profunda emoção. Um par bem arranjado de palavras tem um poder imenso de tocar, de despertar, de mover. Há certas explicações que se precisa dar na tranquilidade, na demora e no detalhe das palavras. Há certas vivências cujo narrar é incompleto sem as palavras. Há certas palavras que contemplam o infinito. Há certos “eu te amo” que não se substituem sem prejuízo por um ♥.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

O sucesso, o fracasso e as horas vagas

                                                              

    Às vezes, sinto que queria fracassar. Sim, queria ter a oportunidade de viver um fracasso. Mas não um pequeno fracasso, desses que colecionamos discretamente todos os dias, como o término de uma relação, ou a continuação daquela que já azedou. Não, um grande fracasso. Um fracasso estrondoso, desses que deixam a gente sem chão, ou sem casa, e que engrandecem os olhos e a língua das pessoas.
   
    Você deve estar achando que enlouqueci. Que joguei todo o meu juízo pela janela. Que devia ser mais prudente com as palavras, que têm poder, e “tomar cuidado com o que desejo”. Vai que uma hora acontece.
   
    Não finjo conhecer a sensação, provavelmente a princípio muito indigesta, muito amarga, angustiante do grande fracasso. Não finjo, tampouco, não sentir medo dessa sensação. Contudo, percebo que o fracasso liberta. E me sinto atraída pelo sabor dessa liberdade que o fracasso dá.

    Pois, quando somos uma promessa, sentimos que temos que cumpri-la. Temos que cumprir-nos. Mostrar que são justificadas as esperanças das pessoas em nossa volta, que foi certo o palpite daqueles que apostaram em nós. Ou, por outro lado, demonstrar o engano daqueles que apostaram contra nós. Queremos provar algo a alguém. Seja que estão errados a nosso respeito, seja que estão certos. Queremos provar algo, também, a nós mesmos.
   
    E quando alcançamos algum sucesso... em geral contraímos um doentio vício a ele. Estamos presos a ele, presos por ele. Passamos a viver nossa vida em sua órbita, a seu favor, a seu serviço, submissamente. Viramos escravos de nossas conquistas.

    Quem tem um ponto comercial bombando logo quer abrir outro, noutro ponto da cidade. E depois mais um. E depois outro, numa cidade vizinha. Quem se tornou capitão, quer se tornar major. Quem fez um nome, tem um nome a zelar e se torna zelador dele em tempo integral. Num trabalho que não é nada flexível.

    Quem alcança o sucesso, em geral o coloca em primeiro lugar. Deixa a vida para mais tarde, para depois. Para as horas vagas.

    Não pode ler aquele livro que quer ler há tanto tempo, que flerta consigo na estante todo dia e toda noite, porque não tem tempo ou paz de mente para isso. Precisa ler as últimas inovações de seu campo de atuação, ser um profissional atualizado. Antenado.

    Não pode fazer aquela viagem àquele lugarzinho lindo que dá um quentinho no peito ao pensar sobre porque tem muitos compromissos. Deixa de passar tempo com aquele amigo cuja companhia faz tão bem, aquele que tão perfeitamente lhe entende, que parece conhecer sua alma do avesso... porque está sempre muito ocupado.

    Ficar à toa? Tempo para si mesmo? Fica para as horas vagas.
   
    Viajar sem destino, conhecer gente interessante? Experimentar sabores e paisagens, momentos e cores lindas? Para as horas vagas.
   
    Jogar tudo para o alto, uma só vez? Passar o dia na cama? Passear com os cachorros? Horas vagas. Quando tiver um tempinho. Talvez nas férias do próximo ano.

    Viver a vida fica para depois. Para as horas vagas. Que de alguma forma parecem não existir. Desaparecem sempre que se aproximam.
   
    Por isso eu sinto que gostaria de fracassar, no sentido mais senso comum da palavra. Para viver mais. Para não deixar a grandeza das pequeninas alegrias para depois. Para não adiar os ousados e tão desejados projetos para mais tarde. A vida para as horas vagas.