quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Vivemos num mundo despalavrado?

O olho devora tudo instantaneamente, e o cérebro, agradavelmente provocado, se acomoda para ver coisas acontecendo sem se preocupar em pensar.” Virginia Woolf

    Como um mundo com pudor de menos é dito despudorado, um mundo com palavras de menos é dito despalavrado. De minha parte, acho que ainda não vivemos um mundo despudorado. Mas já vivemos às bordas de um mundo despalavrado. Isso, para mim, claro, que sou uma pessoa muito palavrosa.

    Sim, palavrosa. Palavrosa porque me guardo e me entrego, me sufoco e me desafogo, me perco e me compreendo, me calo e me expresso com palavras. Penso em prosa. Poesia, não, porque a poesia é muito musical para pertencer aos contadores de histórias.

    Por ser uma pessoa palavrosa, o hábitat natural do meu sentimento é o romance. Por ser uma pessoa palavrosa, é muito difícil que uma peça de teatro, um filme ou uma escultura me toquem mais que um romance. Ou um ensaio, ou uma crônica. Eu não costumo me identificar com um personagem transmitido à vida por um ator, em gestos, fisionomias e movimentos como me identifico por um cuja profundeza posso acessar pelas palavras, na descrição de um narrador ou no fluxo da consciência do próprio narrador-personagem. Não sinto tanta empatia ou transferência no cinema como na literatura. E quando quero dizer algo a alguém, demonstrar o que sinto, falsear o que não sinto, fazer um apelo sempre me vem mais fácil, me parece mais exata e mais capaz uma mão cheia de palavras que, por exemplo, uma mão cheia de imagens.
   
    Talvez isso seja sinal de que minhas sensibilidades são de algum modo aleijadas, tartarugas. Elas precisam da vagareza das palavras para sentir o que alguns sentem com o disparo do toque, da forma, da imagem, do som. Talvez seja indicador de que minha inteligência, minha razão governa soberana - possivelmente despótica - sobre meus sentidos.
   
    Não sei. Só sei que fato é que o mundo - ah, o mundo! - e sua maioria parecem estar na contracorrente da palavra. E eu, agarrada às palavras, na contracorrente do mundo.

    Cada vez mais gente parece associar ver como sinônimo a pensar. Cada vez mais gente consegue canalizar o que pensa, o que sente, o que quer contar pelo áudio e pelo visual. Cada vez mais gente prefere acompanhar uma história, experimentar uma sensação pelo áudio-visual.

    E eu fico a me perguntar se isso é questão de personalidade ou de coletividade. Se cada um de nós tem um pendor, por natureza, ou se nossas sensibilidades são condicionadas ao que somos expostos. Se é coincidência que no meu tempo existam aparentemente tão poucas pessoas palavrosas ou se isso se explica porque a calma das palavras não cabe, não convém no nosso frenesi moderno. Se a entrega que elas pedem não combina mais com a preguiça que nos domina.

    Eu fico a me perguntar se nós, perpétuos palavrosos, condenados a viver em meio às palavras porque não conseguimos desaprender a amá-las... Se nós estamos mesmo em extinção. E se o mundo não tem algo a perder com isso.
   
    Afinal, a mais rasa das palavras muitas vezes dá conta da mais profunda emoção. Um par bem arranjado de palavras tem um poder imenso de tocar, de despertar, de mover. Há certas explicações que se precisa dar na tranquilidade, na demora e no detalhe das palavras. Há certas vivências cujo narrar é incompleto sem as palavras. Há certas palavras que contemplam o infinito. Há certos “eu te amo” que não se substituem sem prejuízo por um ♥.

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