quarta-feira, 27 de julho de 2016

A arte de criar problemas

                                                              
   
      Nós seres humanos deste tempo tresloucado parecemos nascer doutos na arte de criar problemas para nós mesmos e ficarmos insanamente dependentes das soluções para eles. Isso mesmo. Não, eu não estou enlouquecendo. Talvez, para os parâmetros da época em que vivemos, só um pouco. Já disse que ela é que é tresloucada. Mas, que fique avisado, este texto é contra indicado no caso de suspeita de normalidade, ausência inteira de loucura. Pois, se a loucura é o desvio completo do normal, acho que ela é o estado mais saudável para se viver neste mundo maluco.

    Do que estou dizendo quando digo que nós criamos problemas para nós mesmos? Estou dizendo que criamos padrões. O cabelo liso, por exemplo, colocado como apogeu e ideal de cabelo torna o cabelo destoante, enrolado, um problema. Cria um problema (que em verdade não existe, já que a mesma natureza planejou que fôssemos variados uns dos outros até para nos tornamos mais fortes) e ficamos dependentes da delirante “solução”: alisar o cabelo. Até que essa solução se torna um problema, já que bem nenhum pode fazer um acúmulo enorme de estranhos materiais combinados e agressivos aplicados continuamente em nosso lindo corpo. E aí, vamos aos hospitais a fim de tratar do câncer que provocamos em nós mesmos.

    Isso mesmo. Não, repito, e com ênfase. Não estou delirando. Você que está, se não o percebeu ainda. Quer outro exemplo? Protetor solar. Quem disse que temos que usá-lo? Uma indústria que se interessa por vendê-lo. Certo? Certo. Mas, você pode dizer, é uma indústria que prima por cuidar de nós. E em resposta, eu posso dizer, você que não cuide de você mesmo, corpo e mente, e vai passar a acreditar nas amassadas e aparentemente apetitosas abobrinhas que te oferecem generosamente e sofrerá as consequências de aceitá-las e digeri-las.

    Mas e o câncer de pele? Ele também é um problema criado? É. O sol também faz parte do plano harmônico e bem dirigido da natureza para a vida da gente. Você tente escapar dele, estando sob efeito das abobrinhas estragadas que te deram sob a atraente roupagem da propaganda, e terá falta de vitamina D. E vai procurar um médico, o mesmo que te receitou o protetor solar - que contribui para você desenvolver câncer de pele, ao invés de evitá-lo -, para receber dele um suplemento artificial de vitamina D. Caríssimo, com certeza, o tal medicamento será. E você pagará com seu tempo para resolver um problema que criou para si mesmo. Que poderia nem existir se você tivesse tomado uma boa dose dessa embriagante maravilha que é o sol sem borrocar-se de protetor solar antes.

    Está vendo? Eu estou fazendo sentido. Não estou inventando problema, enxergando-o onde ele não existe. Os psicólogos é que estão. Isso mesmo. Você já parou pra pensar que até pouco tempo as pessoas passavam a vida inteira sem cogitar ir em um psicólogo, psicoterapeuta, psicanalista e as demais varianças? E que mais antigamente ainda as pessoas nem cogitavam a ideia de que precisavam de tais profissionais e suas ajudas? Parando pra pensar a respeito, eu concluí que nós passamos a pensar que precisávamos disso no momento em que isso foi inventado.
   
    Não é que a vida moderna seja mais complicada que a antiga. Nem que nos evoluímos e nos tornamos mais complexos e agora precisamos de tratamento. Na verdade, o que acontece é que um dia nos disseram que esses profissionais existem e devem ser parte fundamental de nossa vida é nós passamos a acreditar, e a criar necessidades para serem atendidas por eles. Só isso.

    As pessoas sempre tiveram questões com as quais precisaram lidar que às vezes (muitas vezes) lhes traziam angústias e dificuldades. E elas lidavam com isso. Em diários, em conversas, trabalhando e dirigindo energias e pensamentos ao seu trabalho, interagindo com aqueles à sua volta, com seu deus e a natureza. E nós de modo algum podemos dizer que hoje lidamos com nossos problemas melhor do que as pessoas de antes o faziam. Só podemos dizer que agora carecemos (ou pensamos carecer) de ajuda profissional pra isso. Terceirizando a nossa conversa com nosso íntimo.

    (Que fique claro: não estou dizendo que não existem pessoas que precisem de ajuda profissional, e que esses profissionais não tenham um papel importante a fazer. Porém, acredito que a maioria das pessoas que realmente precisa de ajuda, não a recebe, não pode tê-la, não tem acesso a ela. E a maioria das pessoas que recebe essa ajuda não precisa dela. Pensa que precisa.)

    De cabelo à protetor solar aos médicos da mente, à comida de todo dia. Tantos são os problemas que inventamos para nós mesmos - problemas que não raro provém de elementos absolutamente naturais de nossa vida que transformamos artificialmente em problemas e defeitos, aos quais procuramos soluções que acabam trazendo novos problemas... Talvez seja bom parar pra pensar na relação que mantemos com as pequeninas coisas à nossa volta, e no poder que nós mesmos temos de torná-las problemas e dores de cabeça... Ou, pelo contrário, belezas e delícias (ou dificuldades) que fazem parte da nossa vida, e as quais podemos desfrutar e experimentar em sua plenitude.

    É, minha gente... Pensar é mesmo um perigo. Mas, mais perigoso, eu acho, é não pensar. É deixar que os outros pensem por nós e nos deem de presente alguns probleminhas que não existem para resolvermos.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Os vários afluentes da bacia do amor


     O amor, podemos dizer, é como um rio. Um rio que, por tão longo alcance, tão imensa profundidade, tão fértil poder, é necessária água para sobrevivermos e bem vivermos na estepe da vida. É necessária inundação para o pantanal da existência.

    O amor, como um rio, pode ser considerado de modos diferentes por suas características. Pode ser perene, de tão firme volume e fluxo, constante mesmo na seca e na escassez, na aridez da paisagem, no desespero do frio escaldante e do calor capaz de evaporar. Ao contrário do que ocorre com os rios, porém, creio, a maioria dos amores do mundo não pode ser presenteada com o qualitativo de perene. Até porque, aqueles que de fato mais perene são têm o dom de passarem discretamente presentes e impercebidos. Quase nunca entram nas estatísticas.

    Mais percebíveis são, na verdade, os amores intermitentes. Aqueles que desaparecem na estiagem e reaparecem na estação chuvosa. Aqueles que precisam da irrigação da conveniência, ou do desespero, para voltarem à vida. Aqueles que precisam sofrer a ameaça de extinção ou a festa da abundância para aflorarem à superfície. Ou aqueles que, apenas tímidos, embora muitíssimo genuínos, existem somente no subterrâneo e não mostram-se e demonstram-se à luz senão esparsamente. Pode haver um tipo de perenidade nos amores intermitentes. Como pode haver também um fundo e caudaloso egoísmo.
   
    Os mais comuns de todos, porém, são os amores efêmeros. Aqueles que, incapazes de penetrar a terra e o reino do coração, ficam na passarela da superfície e da pele. A maioria de nós, contudo, não é impermeável a ele. Bebemos de sua água com frequência. Ele acontece a nós quase que inevitavelmente. E é praticamente impossível resistir à sua cascata, deixar de nutrir-se de seus doces filetes, quando aparecem. A passagem dessas águas efêmeras do amor pode ser refrescante delícia - contanto que, é claro, não se torne demasiado áspero, seco, árido, dolorido e sofrido seu natural escoamento a outras terras, ou sua simples evaporação.

    Há também, como rios, amores efluentes e influentes. Os primeiros são os mais belos e os mais difíceis de viver, ao passo que os segundos, os mais arrebatadores e por isso mesmo, fáceis de morrer.

    Amores efluentes são amores práticos, amores que viram corrente volumosa e robusta no curso de todo dia. Amores, portanto, difíceis mas importantíssimos de se manter. São os amores que, saídos do esconderijo do subterrâneo e do devaneio para existirem na exterior realidade, sujeita a intempéries e predadores, permanecem. Amores que avolumam-se e engrandecem-se em seu curso ao saírem do subsolo. Amores que continuam.
   
    Amores influentes, por seu turno, são aqueles, como já adiantado, menos difíceis de se viver e mais frequentes e fáceis de ver morrer. São os amores platônicos, amores que existem nas cordilheiras do desejo e da distância. São os amores que, ao desfilarem do fino lençol do devaneio para subirem o despenhadeiro da vida concreta e real... terminam. Perdem volume ao invés de ganharem. Diminuem sua vazão, morrendo antes de chegar ao mar.

    Por questão de sobrevivência, sua existência deve mesmo confinar-se às cavernas do pensamento, do sonho, da imaginação. Por questão igual de sobrevivência, entretanto, sua existência em alargada dose pode ser um perigo, e deve ser balanceada com a presença de alguns amores efluentes.
   
    A moral da história - ou, aliás, da geografia do amor? Ela confunde-se a uma das lições mais primárias da biologia, se não me engana a traiçoeira memória. Do que são feitos os rios, afinal, bem como os lagos e as lagoas, os mares e oceanos? De água. E a água é um elemento essencial da vida. Uma condição indelével de existência. Sem ela, nada se cria e nada se transforma. Tudo se despedaça.

    Assim também é o amor, esteja ele em qualquer de suas formas de expressão, quaisquer de suas configurações. 70% do nosso corpo, pelo menos, deve ser feito de amor, e de amor continuamente abastecido. No mínimo, de 2 litros de amor devemos nutrir o nosso organismo todos os dias. E o planeta terra - água - é azul... Tem 3/4 de sua superfície cobertos de amor. O amor é azul, já nos disseram Djavan e Clara Nunes

    A ecologia do amor, portanto, é uma das quais devemos muito nos empenhar em proteger e preservar. Sem ela... não há vida que seja possível.


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Lições do renascimento

                                                             
                                                              
    Ah, minhas leituras acadêmicas! Elas furtam-me das minhas leituras literárias e dos escritos literários... Aliás, dos escritos todos − ou nem todos já que este está aqui. Mas elas fazem-me pensar. Cobram tributo do meu tempo, mas dão recibo em pensamento. Acho que está valendo.

    Dia desses, li cousa muito bonita, que me levou a pensar muito além da nuvem acadêmica. Um autor que gigantescamente me agrada, Peter Burke, ao perguntar sobre os possíveis porquês de a Itália ter sido o berço do renascimento, diz que um destes está no desprendimento italiano ao gótico. Ou seja, a arte na terra da bota desenvolveu-se magnífica, intensa e vastamente para frente porque tinha-se ligado menos aferrada e intimamente ao que houvera antes.

    Se não é isto uma escultura em palavras de uma verdade dispersa e opaca na realidade, nos corações e nas mentes da gente!

    Sempre pensando nesse respeito, não tinha até essa leitura tido sobre ele um estalo de compreensão tão claro, tão preciso. Só abre-se para receber (ou dar) abraço apertado e caloroso do futuro quem despediu-se bem resolvido e leve do passado. E só se põe nesse movimento também quem está inteiramente inteiro, em um único e concentrado pedaço, presente no presente.

    Cada vez mais acredito que esse é um dos mais importantes e decisivos − e talvez por isso mesmo um dos mais difíceis − desafios da nossa existência: aprender a lidar com essa belezinha mágica, linda, temperamental, esquiva e pirracenta que é o tempo. O tempo em suas várias esferas, seus vários planos, seus vários volumes e suas várias arestas.

    O tempo do relógio das obrigações; o tempo do calendário, das metas e dos balanços; o tempo do agora e das livres borboletas; o tempo dos corações, dos ferimentos e das cicatrizes; o tempo da realidade social da qual somos pequenina e vital partícula; o tempo da vida da gente, da história de cada um de nós. O tempo de lembrar, o tempo de esquecer, o tempo de somente - sem pensar - sentir e viver. O tempo: passado, presente e - quem sabe? - futuro.

    Mais especificamente falando do casamento entre o tempo do qual temos flutuante sensação de certeza (passado) e aquele que nos instiga perpétua certeza de dúvida (futuro), creio que, como em todas as relações, deve-se procurar aí um equilíbrio. Como nos chama a pensar Peter Burke, é preciso desvencilhar-se das sedutoras e confortáveis chamadas do passado para jogar-se nos braços do futuro, e vivê-lo magnificamente. É preciso, caso necessário, deixar morrer a morte do medíocre para viver o renascimento do sublime.

    Do contrário, corre-se o risco de prender-se ao passado numa amarra cega e fazê-lo durar mais tempo do que deveria. Corre-se o risco de - ao estar voluntária e conscientemente amarrado e vendado - não ver passar um futuro e um presente que... ó! passaram. Num instantinho terão passado. Serão passado, sem que nada de lindo se tenha feito deles, sem que nenhuma intensa vida se tenha vivido. Serão um passado que se acumulará pesado nas costas, como um fardo, fardo que grande tem volume, sem nenhum valor.

    Por outro lado, é também preciso deixar na ponta dos dedos, ao alcance dos olhos, alguns nós bem atados do passado, para jamais nos permitimos esquecê-lo por completo. Pois, quem se liberta muito rebelde e radicalmente do passado, torna-se justamente refém dele. Comete sempre os mesmos erros, cai sempre nas mesmas armadilhas, vagueia sempre pelos mesmos caminhos. Quem extremisticamente se desgarra, realisticamente se agarra. Empaca.

    Em suma, é preciso andar pra frente, ser para frente, fazer para frente. A fênix é parte de nós, o renascimento chama, é preciso renascer. E para tal, é mister esquecer e deixar o passado passar, ir descansar bem calminho nas profundezas de sua lápide. Contudo, não se pode querer demolir essa lápide para substituí-la por qualquer comum e virgem pedra. É para o fundamental ato de lembrar que servem as necessárias inscrições esculpidas na lápide.

    Todavia, acima de qualquer coisa, antes de tudo e de mais nada, não podemos deixar que passado e futuro em seu cabo de guerra, sua sedução altamente persuasiva pelos sussurros da lembrança e do projeto, vençam o apelo do presente e façam-no mumificado pelas cordas do devaneio.

    É preciso fazer do frustrantemente fugaz momento presente uma atração inelutável e perpétua. Um vício, sanado e alimentado contínua e constantemente, sem fim. É preciso sim, como nos dizem os sábios conselheiros num já muito sabido conselho, viver intensamente o agora. Viver intensa, descarada, exaltada, atrevida, curiosa, sedenta e regaladamente o presente. Ser insaciável por ele e fartar-se dele na mais indiscreta gula, na mais declarada paixão.

    Como não me deixam esquecer minhas volumosas leituras acadêmicas...