quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Conhecendo gente nova

                                                                  

      Muitos de nós, quando perguntados, dizemos que adoramos conhecer gente nova. Gente diferente, gente que não pertence ao nosso rol de conhecidos e convivência, gente com quem não teremos as conversas de sempre, com as exclamações de sempre, as reticências de sempre, os trejeitos de sempre. Os assuntos de sempre. Gente cujos traços não foram ainda esquadrinhados por nossa vista, gente cujas inflexões da voz não são ainda familiares aos nossos ouvidos, gente cujos movimentos e gestos, ações e reações temos atenção para observar, curiosidade em decifrar, porque ainda não nos são inteiros conhecidos, previstos e previsíveis. Gente que ainda nos são um mistério, cujo caráter, personalidade, temperamento ainda estamos a tatear. Não é verdade? Não é essa toda a graça de conhecer uma pessoa nova?

    Pois claro que não! Está é parte da graça, mas de modo algum toda ela. Talvez, não é nem mesmo a graça mais fundamental!

    A graça fundamental de conhecer gente nova não está nas pessoas que conhecemos. No novo que encontramos nelas. Está em nós mesmos, nas pessoas que podemos nos tornar quando estamos com elas. No novo que está contido em nós, então, apenas esperando para aflorar-se. Na possibilidade de nos reinventarmos que encontramos nesse terreno movediço e ainda a mapear da conhecença. 

      Pois, em companhia de gente que nos conhece, nós somos uma certa pessoa. Uma pessoa com certos padrões de comportamento, de pensamento e opinião. Uma pessoa que detesta portas batendo e ouve forró de raiz. Uma pessoa que prefere comida bem salgada e que interdita qualquer conversa de política que começa a se esboçar. Uma pessoa que lê sonetos e tem pavor de modernismos. Uma pessoa que pisa mais com o calcanhar que a ponta dos pés, se veste muito com cores frias e não entende de religião. Uma pessoa que ao fazer careta, puxa o canto direito  da boca para trás e amiuda os olhos. Uma pessoa que só põe a alça direita da mochila nas costas.

    Quando estamos diante de pessoas que não nos conhecem, e não esperam isso de nós, podemos nos reinventar. Temos a chance de não nos plagiarmos pela força do hábito e da expectativa alheia, de sermos uma versão original e inédita de nós mesmos, com pouca ou nenhuma semelhança àquela mais tradicional.
   
    Podemos ser alguém que não se importa com portas batendo e é pouco dado a irritar-se, de modo geral. Alguém que ouve hip-hop ou música flamenca. Que prefere comida sem tempero, e o doce ao salgado. Que é interessado em política e entendedor de poesia pós-moderna. Que pisa com leveza, apenas resvalando o chão, se veste combinando cores estrondosas e sorrisos devotados. Que admira a fé e estuda com fervor as religiões todas. Que troca caretas por sorrisos distraidamente divertidos e, por não gostar da mochila, usa bolsa transversal.
   
    Podemos ser alguém que não cometeu os erros que cometemos, nem carrega as culpas que carregamos. Podemos ter perspectivas de futuro e sonhos e desejos que nossos conhecidos jamais associariam a nós. Podemos reescrever nosso passado, acidentalmente borrando da memória partes que queremos esquecer, dando ênfase a outras que não é nosso costume lembrar. Podemos ter uma personalidade algo diversa daquela em que nos descrevemos usualmente, talvez um senso de humor que até então não nos caracterizava.

    Um dos grandes encantos de conhecer gente nova, portanto, é poder adentrar um território estrangeiro que ansiamos por conhecer com uma identidade que não é necessariamente aquela que carregamos em nosso país. É a liberdade de ser quem se quer ser naquele momento.



Foto: Manhã no porto, Antônio Garcia Bento. Óleo sobre tela. 46, 6 x 56, 2 cm.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Grandes e pequenos

                                                                   
     
      Quando eu era pequena, o mundo parecia grande e eu tinha medo dele. Tinha medo do escuro e não gostava quando me diziam que não existe essa bobeira de fantasmas. Não gostava de ficar sozinha e ficava feliz com qualquer companhia.

       Quando eu era pequena, me alegrava quando passava no céu do dia um avião de barriga branca e braços vermelhos plainando calma e barulhosamente. Gritava para ele os presentes que queria para o natal, com toda a força de meus pulmões de moleca e toda a cacofonia de meus primos em volta fazendo o mesmo. Achavamos que aquele era o avião do papai noel, porque... O trenó é mesmo um transporte muito antigo e agora o papai noel deve ser mesmo mais moderninho.

        Quando eu era pequena, tinha pesadelos engraçados que me atormentavam ainda quando eu acordava em que eu chutava uma bola, sozinha num campo, e em vez de seguir em frente ela vinha para trás, me fazendo um trágico gol contra de cobertura. E quando me sentia triste, olhava para o céu da noite, como o rei Leão, em busca da estrela mais brilhante, que eu acreditava ser meu avô. Ele era mesmo como uma estrela, assim calado, quieto e com uns olhos que viam tudo. Eu acho que ele me ouvia.

        Quando era pequena, não entendia porque as pessoas viviam em casas nos morros, se elas sabem que dali elas podem cair quando chove. Por que não vão para outros lugares? Tem lugares mais retos sem casas na cidade!
      Também não entendia porque quando dois meninos da rua brigavam, a brincadeira acabava, ia todo mundo murcho pra casa, e só quando as mães vinham com eles pela orelha, eles se pediam desculpas. Pedir desculpas não pode ser tão difícil assim, tão difícil ao ponto escabroso de fazer a gente perder o dia de brincadeira.

       Quando era pequena, queria mesmo crescer. Porque a água do chuveiro deve ser mais quentinha lá em cima do que aqui embaixo. Porque é tão mais elegante ser grande e ter pernas que alcançam o chão quando se está sentado, em vez de ficarem balançando bobamente, incapazes de alcançarem o chão a não ser que me eu me deite na cadeira. Porque quando se é grande, o céu está mais perto, e vai ficar mais fácil de o vô me ouvir e o papai noel também. Vou até poder alcançar as nuvens, se der um pulo bem forte e me esticar bastante. Porque vou poder usar a faca para cortar o queijo e passar a água fervendo no pó para virar café.

     Agora que sou grande, não estou tão crescida assim. Ainda não me dou muito bem com o escuro e acredito piamente em fantasmas. Ainda não faço gosto em passar muito tempo sozinha e tenho o hábito de, quando isso acontece e não pode ser evitado, sair só pra ver gentes.

      Agora que sou grande, não grito para o papai noel os presentes que quero para o natal, porque... Bom, o céu continua longe, e ele não vai me ouvir. Só a voz da criança tem o timbre exato do som que os ouvidos de papai noel vão escutar. Mas ainda olho para o céu estrelado da noite para fazer minhas confidências e pedir por guia.

       Hoje, boa parte de meus pesadelos - dormidos e acordados - ainda envolvem a vida me surpreendendo com seus truques e me levando a situações que não estavam em meu estrito roteiro e com as quais não sei lidar. Isso ainda não superei. Por mais que tenha me acostumado a tomar gols de cobertura na quadra.

      Hoje, entendo porque certas pessoas moram em casas nos morros. Não é escolha delas, é necessidade. Mas ainda não entendo como as pessoas, as outras pessoas, que moram em casas bem melhores e bem maiores, especialmente aquelas que vão de vez em quando trabalhar numa casa velha, franzida e severa que é batizada de "câmara municipal", conseguem ver isso acontecer e não fazer nada a respeito.

      Hoje, ainda acho um grande pecado as pessoas perderem tempo que podiam estar de bem estando de mal só porque não podem dizer algumas poucas palavras. Ainda lamento a dificuldade dos meninos em dizer certas coisas, principalmente as coisas boas. Mas já entendo melhor como um pedido de desculpas pode custar para sair da boca, parecendo machucar os lábios, cortar a língua, como um ácido. Entendo porque sou uma menina e aprendi que, ao contrário do que imaginava, as meninas normalmente têm mais dificuldades para pedir desculpas que os meninos.

       Hoje, me alegro quando vejo em mim vestígios de minha versão pequenina. Felicito-me pela geometria básica do universo que orquestra que o grande pode conter o pequeno, mas o pequeno não contém o grande. Alegre do grande que tem em si o pequeno. E mais alegre ainda o pequeno, que, mesmo sem saber, não tem em si nada do grande.
        Afinal, as pessoas grandes são mesmo muito bobas.