quarta-feira, 27 de maio de 2015

Um elogio à timidez - proteção de retaguarda

                                                               
                                                                       

 “A timidez é sempre efeito de uma sensação de inferioridade, de um modo ou de outro. Se eu pudesse me convencer de que meus modos são perfeitamente graciosos e espontâneos, não seria tímido.” (Jane Austen, em Razão e Sensibilidade)
   
    “O sofrimento das pessoas tímidas provém de não saberem a opinião que os outros têm delas. Assim que essa opinião, qualquer que seja, se torna conhecida, o sofrimento termina.” (Lev Tolstoi, em Infância)

     Muita gente confunde timidez e reserva, inclusive eu. E estou aqui hoje para falar um pouquinho das duas.

   Normalmente, define-se timidez como apreensão, insegurança, desajeito ou desconforto que sente-se numa situação de início ou novidade: no primeiro dia de trabalho, quando se chega à uma escola nova, quando se está sendo apresentado a uma pessoa ou um grupo, encontrando-lhes e conversando com eles pela primeira vez. Reserva, por outro lado, é usualmente tida como um hábito de resguardo, distância, retração de uma pessoa em relação a outras. A pessoa reservada, dizemos, é fechada. Não conversa muito, raramente dá opiniões e pitacos, transparece ou deixa mostrar quem é. Dizendo assim, a distinção parece simples, e a confusão entre as duas coisas, boba e infantil.

    No entanto, eu acredito, ela - a confusão - tem uma razão de ser, um forte porquê. Timidez e reserva não têm fronteiras tão nítidas assim, e não são dissociadas uma da outra. Pelo contrário, a linha entre elas é tênue e esparsa; elas são intimamente relacionadas, têm uma mesma raiz.

    Esclarecendo, afora o aspecto do desajeito ou embaraço, e da novidade - teoricamente presente na timidez, ausente na reserva -, as duas coisas poderiam ser a mesma. Não é à toa que, muitas vezes, caracterizamos uma pessoa como reservada quando ela está apenas vivendo uma situação de timidez, e vice-versa.
    O que estou querendo dizer é que é pouco relevante tentar defini-las em separado, discutir os limites entre uma e outra; muito melhor é enxergar as continuidades entre elas, seus núcleos comuns. Pois, a timidez não é senão um estágio primeiro da reserva - comportamento que tem como motor uma insegurança profunda, um medo, receio de ser conhecido. Assim, uma pessoa pode não ser reservada mas estar tímida, como pode não estar tímida e ser reservada. (E essa diferença ainda pode cair por terra se considerarmos que todo dia é um novo, e que as pessoas se constroem e reconstroem aos olhos das outras em cada um deles, que são, portanto, não mais que sucessivos começos. Pensando assim, a pessoa reservada é uma que está sempre tímida.)

    De um jeito ou de outro, tudo pela mesma razão: uma autoconsciência pujante, uma percepção clara de si mesmo em relação ao outro, e de que se está sendo observado e julgado por esse outro o tempo todo, e de que se teme e receia esse julgamento, essa opinião, e se quer evitá-la, dando o mínimo possível de base para ela se formar negativamente.

    Aproveitando a brilhante colocação do meu guru Tolstoi, se essa opinião fosse conhecida, toda a timidez e a reserva cessaria. Completando com a de Jane, se fosse conhecida e favorável, mais ainda o ser se abriria e se mostraria. Não estando mais preocupado com o desconhecimento, do que ela pode ser, nem incomodado com o seu teor, tendo-a descoberto, ele poderia agora agir livremente, sem a sorrateira mas muito presente consciência de que, por suas ações, ele molda a opinião que o outro tem acerca dele.

    O ser humano é um bicho engraçadíssimo! Crescendo, incorporando em si ideias conjuntamente criadas e tendo as suas próprias, fruto de observação, ele julga e torna-se pouco tolerante. Mais do que isso, ele pode ser maldoso, e tão facilmente quanto respira, sabe bater a língua sobre seus companheiros viventes a outros companheiros viventes, expondo os primeiros ao escárnio.

    Esse mesmo ser humano, porém, quer ser amado, precisa ser amado. Gosta de se sentir parte do grupo, de estar encaixado, sendo querido. E, vivendo e vivendo situações diversas - ora sendo aquele que bate a língua, ora do grupo que escuta, ora do que é objeto dessa fala toda, ora de um outro que só observa - ele sabe que tudo isso acontece. E, tendo uma enorme necessidade de ser querido, se sentir amado, conectar-se a seus semelhantes de forma boa e forte, é muito natural que tema a opinião desse semelhante na medida em que é ela que vai determinar em que condição está ou não de ser querido por ele.

    Isso porque, convenhamos, nós normalmente amamos e admiramos e queremos perto o que achamos bom, agradável, positivo. E não gostamos tanto, queremos distância, do que é ruim e desagradável. (Embora, é claro, existam por aí gatos e gatas pingados que sentem um magnetismo aparentemente irresistível àquilo e àqueles que podem ser corrosivos, que dizemos incorretos e de virtudes, digamos, pouco uniformes. Mas isso é papo para outra história.)

    Dessa forma, voltando à discussão principal, eu vejo duas maneiras comumente utilizadas de as pessoas fugirem da potencial desfavorável opinião de outrem, tentarem mantê-la favorável ou ao menos neutra, no intuito de serem amadas. Uma é adotando uma personalidade maleável, camaleoa. Ou seja, sendo, para cada pessoa com quem se relaciona, exatamente aquela de que sabe que ela irá gostar.

    Por mais que muito tente não condená-la, eu desgosto bastante dessa maneira, porque ela significa que a pessoa não tem (ou, pior ainda, não quer ter) identidade própria. Não gosta de suas certas coisas, não tem suas opiniões, não age de uma sua certa forma, não se identifica com suas certas preferências, e despreferências, que fazem com que ela seja quem é. Essa pessoa é tudo, todo mundo, e ao mesmo tempo não é ninguém.

    É um tiro que pode sair pela culatra porque, ao passo que é difícil desgostar dessa pessoa - já que ela não tem rosto, é alguém que não é ninguém -, é igualmente muito difícil gostar dela, quando se percebe isso, pelo mesmo motivo.

    A segunda maneira é justamente a que estou elogiando hoje: a timidez-reserva. Ela é uma forma de proteção, uma proteção da sua retaguarda, sua essência, para que ela possa não ser diluída pelas demandas (ou pretensas exigências) de outrem a seu respeito, ou afetada e machucada pelas possíveis más opiniões deles. É um escudo contra o desgosto e a maldade de outras pessoas e a dor que pode vir disso, já que, com ele, se deixa transparecer, evidenciar, muito pouco do que realmente é. É uma inconscientemente inteligente forma de não abdicar da própria personalidade, preservando-a autêntica e firme, não submetendo-a aos olhares de outras pessoas, que podem não entendê-la e impiedosamente julgá-la.

    Obviamente, há pontos de perigo aqui também. Essa maneira também pode se mostrar contraprodutiva pois, se todos em volta desconhecem a pessoa linda que está contida naquele ser fechado, como podem amá-la? Contudo, eu acredito que esse desconhecimento por ser superado com o bálsamo de todas as angústias, o tempo; e essa possível desvantagem ser transformada em ponto positivo à medida que a pessoa conhece melhor aqueles em volta, passa a confiar neles, um pouco que seja, e se permite ser conhecida. Tendo sondado o terreno, percebido-se segura ali, ela pode sim se mostrar, gradualmente ir desvencilhando-se das camadas e camadas de neutra capa que cobrem quem ela é, de fato.

    (Mais uma vez me esclarecendo, não estou dizendo aqui que essas são estratégias cuidadosamente pensadas, analisadas, conscientemente adotadas por uns e outros de nós em nossas relações, porque não são. Estou só comentando o que percebo delas, o que podem ser implícitas motivações desses comportamentos que, vivendo, nós muitas vezes não percebemos, ou não paramos para pensar sobre.

    Tampouco, entendam, misturo a qualidade do reservado com a do introspectivo - que é aquele que, naturalmente, vive mais consigo mesmo, de si consigo, e pouco investe ou busca intercâmbio com outras pessoas. São coisas diferentes. O introspectivo é quieto e calado porque esse é seu jeito. O reservado é quieto e calado porque assim esconde o seu jeito, que não é esse.

    Por último, também não estou dizendo que toda pessoa quieta e calada é obrigatoriamente ou introspectiva ou reservada. Há sempre aqueles, nós bem sabemos, que não falam nada porque realmente não têm nada a dizer.)

    Concluindo, eu registro aqui hoje meu elogio à timidez. Às vezes fofa, às vezes tão forte que sufoca, fato é que ela é uma maneira inteligente e curiosa - para alguns necessária - de se navegar pela vida entre as pessoas. Afinal, poucos de nós são orgulhosos e vaidosos ao ponto de ter alta opinião acerca de si mesmo, e desejar ser conhecido para que, certamente, todos - ou uma agradável maioria - possam ter a mesma alta opinião acerca dele que ele tem acerca de si mesmo.

    Mais ainda, infelizmente, pouquíssimos de nós são confiantes e seguros a ponto de, recebendo a notícia, por exemplo, de que “fulano não gosta de você. Diz que te acha isso e isso e isso”, genuinamente não se importar e dizer em retorno “ah, é mesmo? Não gosta? E daí? O problema é todo dele. Eu sou assim, e é ele quem está perdendo a minha companhia.”
    Até chegarmos a esse estágio de evolução humana, não é de todo um mal negócio viver timidamente.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

A obsessão da novidade

                                                                
    Já repararam como a todo momento nós somos encorajados a estarmos atualizados? Somos, a cada instante, bombardeados com milhares de informações ao mesmo tempo as quais sentimos um dever enorme de acompanhar, embora, talvez, nem saibamos bem o motivo pelo qual o fazemos.

    Nessa modernidade louca que vivemos, a era da informação, nós nunca estamos desconectados. Sentimos que, a qualquer hora, algo de muito extraordinário pode acontecer e mudar todas as nossas vidas, e nós estaremos danados se o perdermos, se ficarmos atrasados por alguns segundos. É um vídeo novo que sai, a próxima edição da revista, a seguinte tendência da moda, uma tragédia nova que as novas mídias noticiam com o maior entusiasmo, uma tecnologia nova que é apresentada e, imediatamente, tem que fazer parte das nossas vidas, pois aquela que segurávamos apenas agora há pouco já está ultrapassadíssima.

    Essa ânsia por novidades nos dá a sensação de que tudo é superado muito rapidamente - e deve ser mesmo porque, se não for, “algo está errado, nós pararemos no tempo”. Pois, se nós estamos evoluindo o tempo inteiro, alcançando progressos e avanços num ritmo extremamente veloz, nunca antes visto, se nós não pudermos perceber palpavelmente e ter acesso a essa evolução, essas mudanças, algo de fato não pode estar certo. Ou nós estamos completamente alienados na vida, isolados do mundo, ou - cientes do que acontece e de todas as últimas maravilhas e adventos, escolhendo não colocá-los em nossa vida - somos seres absolutamente retrógrados, demasiado rígidos e intransigentes, “cegos ao benefício e à diversão daquela novidade”, estamos ficando para trás, parados no tempo.

    Essa ânsia por novidades, também, nos leva a ter a questionável ideia de que a repetição é algo ruim, e o aprofundamento que ela traz, desnecessário. Para quê você vai ler o mesmo livro outra vez, se há tantos novos saindo para você ler, e que, ao optar por reler um já lido, vai estar fatalmente abdicando da oportunidade de lê-los, deixando o seu caminho impercorrido? Para quê procurar a revista do mês passado - aliás, da semana passada -, se ela não poderá trazer nada de bom, nenhum acréscimo, já que tudo nela é um passado inútil, está inevitavelmente datado e ultrapassado e só pode ter como destino o lixo? Para quê, realmente, meu Deus, continuar usando esse tijolo de celular da época dos dinossauros que você tem, se pode comprar um novo, que te dá acesso a um mundo de possibilidades antes impensável?

    O que ninguém parece notar é que esse estilo de vida é insustentável, não só para a natureza como para a sanidade humana. O que ninguém parece notar ou questionar são os danos que isso - essa obsessão por novidade consequente, dentre outras coisas, do grande volume de informações que nos é facilmente disponível e que somos encorajados a consumir - traz para a nossa vida, como a superficialidade das leituras e construções e a inquietude interior coletiva, só para dar alguns exemplos.

    Pois, se a informação agora é democrática, de todos para todos, acessível em crescente quantidade, o aproveitamento que fazemos dela é francamente duvidoso. Quantas vezes não ligamos o computador com um certo objetivo - uma pesquisa - e abrimos outras tantas abas com outras tantas coisas, em nada relacionadas ao objetivo, e depois de uma hora escorrida, quase nada de fato produzimos e temos para apresentar por causa dessa dispersão?

    Quantas vezes não vemos pessoas exibirem orgulhosamente uma estante enorme - ou, realmente, um quarto inteiro - cheio de livros, e dizemos “nossa, quantos livros você tem!”. Se perguntamos, no entanto, quantos ali ela realmente leu, aproveitou profundamente até o final, ouvimos uma resposta vaga, seguida de um sorriso amarelo. Devíamos exclamar, na verdade, “quanta cultura, quanta sabedoria você tem!”, coisa que não é, necessariamente, advinda de muitos livros lidos, mas, dentre outras coisas, de poucos livros muito bem lidos. Devíamos nos inspirar na lógica dos antigos, que possuíam alguns poucos, seletos exemplares mas os tinham como verdadeiros tesouros, os liam de novo e de novo e de novo, aproveitando-os ao máximo, extraindo toda a contribuição que eles podiam dar.

    Mas, não, hoje nós valoramos informação ao invés de conhecimento, quantidade ao invés de qualidade. E tudo tem que ser fresquinho, ligado ao novo - de ontem, não; de hoje. De agora.

    Com isso, a capacidade das pessoas de concentrarem-se, focando e investindo toda sua capacidade mental, intensamente, por prolongado (ou mesmo curto) espaço de tempo numa só, específica tarefa está sendo tragicamente comprometido. As constantes interrupções e distrações trazidas pelas novidades - que sejam em forma de sociais digitais contatos ou paralelas informações - tiram nosso foco no durante inteiro da tentativa.

    Da mesma forma, vai esvaindo-se a capacidade - ou o interesse - por uma leitura demorada, densa, longa, funda e profunda. Todos parecem passar grandes horas a ler (fáceis e acessíveis) pequenos textos ou pequenas bobagens, mas ninguém se dispõe a ler livros como Guerra e Paz, de Tolstoi, ou Middlemarch, de George Eliot, paçocos de livros que, vistos de fora, intimidam mas quando se pára para ler... Aí, realmente se percebe que as páginas estão cheias não só de linhas e tinta, mas de conteúdo, conteúdo valioso que pode nos ajudar a viver melhor, ver melhor, pensar melhor, se apenas nós nos permitimos encontrá-los e absorvê-los - largando, um pouquinho só, os milhares de fragmentos que, juntos, não são tão construtivos quanto.

    Nós estamos com a péssima mania de ver nossas ocupações de tempo não como investimento, mas como gasto. Assim, não investimos mais em algo substancial, profundo, sólido, que demande paciência e perseverança, precise ser pensado a logo prazo. Algo que, igualmente, no futuro, trará recompensas e frutos fortes e confiáveis, substanciais, profundos e sólidos. Além do que, como tudo é muito fácil, qualquer coisa que fique um pouco difícil já é conquista impossível e chata para nós.

    Até as relações estão sofrendo com esse mesmo processo: as pessoas hoje se casam pensando “ah, se não der certo, depois eu separo” e, mesmo antes disso, vivem seus relacionamentos assim “por que ficar com a mesma pessoa duas vezes, se o gosto do beijo é o mesmo?”.

    Desiste-se muito facilmente de alguém, de uma relação, já que qualquer obstáculo vira uma provação imensa, razão pela qual desistir desta e “partir pra outra”. Movidos sempre por uma necessidade de novas e diferentes experiências, nós o fazemos à custa da sua profundidade e segurança. Vivemos a incerteza dos começos muitas vezes - vezes demais. Ao invés de - porque realmente gostamos dela - investirmos num pessoa, persistirmos com ela, lutarmos por ela, dispostos a gradualmente vencer as dificuldades que se apresentem, entender os nossos erros e aqueles do outro, aprender a lidar com ambos e quem sabe melhorá-los, o esforço é demasiado e nós desistimos. Desistimos muito fácil, paramos no primeiro desafio, vamos buscar algo novo. Apenas para, com esse novo, vivermos tudo de novo, a superficialidade, o envolvimento raso, a curta frustrante duração, o efêmero.

    Assim, ao invés de termos um grande e forte porto seguro, nós pipocamos em várias paradas, como bolinhas de pingue-pongue, em portos inseguros, dos quais logo partimos carregados de uma sensação de vazio. Vazio, insegurança, inquietude, incerteza, como se estivéssemos andando imersos numa areia movediça que ameaça dissolver-se a qualquer momento e finalmente nos deixar mesmo sem chão.

    É a mesma, tão conhecida sensação que nos povoa o corpo e coração quando abrimos a caixa de email, ou qualquer plataforma de digital contato, e, depois de um dia inteiro (ou, realmente, algumas horas), não vemos nada de novo. “O mundo me esqueceu, ninguém liga para mim.”

    É a mesma, tão horripilantemente conhecida, sensação que nos toma também ao fim de mais um noticiário - dos quais nos entupimos seguidamente para mantermo-nos a par das últimas, as mais novas, efêmeras, que rapidamente sucedem-se e ficam ultrapassadas, nos fazendo cair num círculo vicioso, consumindo-nos das tantas coisas ruins, que parecem ser só o noticiado.

    A saída? Não, gente, não estou sugerindo que voltemos à idade média - embora, ouso dizer, então, as pessoas tinham uma mais segura noção do agora, e de si mesmos nele, e uma menos ávida necessidade de novidades do que de verdades que lhes serviam perenemente e ensinavam a viver e sossegavam a alma.

    Talvez, uma possível saída - ou, mais brandamente digamos, um escape - seria desconectarmo-nos um pouquinho, tentar viver a sabedoria do jardineiro: se você encher seu jardim de coisas, tentar trocá-las a cada dia ou querer que frutifiquem muito rápido, você será um falho, potencialmente sempre frustrado jardineiro. Mas, se você selecionar bem o que quer no seu jardim, deixá-lo decorado e preenchido com parcimônia e não excessos, cuidar dele com gosto, carinho, paciência, um pouquinho todo dia, e esperar o tempo que ele precisar, aí sim, você terá um jardim alegre, segura e coloridamente florido e forte e vivo.
                                                                   

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Ao maior amor que existe - mãe

                                                                


    Oi, mãe!
 
    Tudo bem?

    Que saudade...

    Eu queria te falar tantas coisas, mas justo agora que me ponho a escrever, as palavras me faltam. Danadinhas; quando a emoção parece demais para elas, elas fogem.

    Nessas horas, normalmente, a gente fala mais por gestos. Como você tantas vezes fez.

    Lembra quando você me dava colo, acalmando meu cabelo enroladinho, depois de eu espetacularmente ralar o joelho brincando na rua? E, mais velha um pouquinho, também nos primeiros dias da escola, quando eu tinha medo de ficar lá sozinha e precisava perceber a sua presença na hora do recreio para ficar tranquila? E, mais velha ainda um pouquinho, quando eu comecei a descobrir como o mundo pode ser cruel; e, as pessoas, maldosas, e precisava do seu aconchego para me sentir segura de novo?

    Você não me iludiu naquela ocasião, não disse uma sequer palavra de consolo ou engano, mas deixou a desilusão terminar, sempre mostrando que estava ali para mim. Então, eu não sabia, mas hoje eu sei: naquele momento, naqueles todos momentos, você me ensinou a ser forte. Você me ajudou a crescer.

    Lembra quando, pequenina, eu te via lendo e, querendo crescer, me punha a imitá-la? Lembra quando, malandrinha em termos, eu ficava lendo e lendo e esquecia de estudar, e você passava, olhava, continuava, com um sorriso sorrateiro, sem falar nada?

    Você pôs o primeiro gibi na minha mão e o primeiro lápis. Você me ensinou a juntar as letras, a brincar com as palavras e, muito mais do que isso, a fazer sentido do mundo, a ler as pessoas, a compreender a mim mesma. Mãe, você me ensinou a pensar, a pensar com minha própria cabeça. Você me ensinou a usá-la bem. E isso não é pouco.

    Lembra quando você me deu gostoso abraço e me cobriu de beijos quando, certa vez, eu ganhei um prêmio na escola? E, no final do ano seguinte, quando eu não ganhei o mesmo prêmio e fiquei desapontada, você me deu mais gostoso e forte abraço ainda e mais torrencial chuva de beijos, dizendo que não precisava que eu ganhasse medalha nenhuma, porque você era muito orgulhosa de mim, independentemente, e me amava muito, por eu ser a simples tão especial pessoa que eu sou?

    Tudo o que eu fazia era para ver um sorriso no seu rosto, um sorriso de orgulho, e ver você estufando o peito para falar de mim com as outras mães. Mas, eu não entendia que você é muito maior que isso - você não liga para títulos e medalhas e conquistas. Você só precisa de mim, que eu seja eu mesma e seja feliz e esteja perto, para você ser feliz.

    Lembra, na primeira vez que eu saí de casa, para passar uma semana inteira longe, como você me ligava de dez em dez minutos, durante a viagem, só para ouvir minha voz e assegurar-se de que eu estava bem, e, durante o dia, todos os dias, umas dez vezes, no mesmo propósito? Lembra, quando eu cheguei, como você fez uma festa para mim, para a minha chegada, e preparou todas as coisas gostosas de que eu tanto gostava, e nós ficamos acordadas até tarde só para a gente poder falar de todas as minhas aventuras, todas as minhas novidades?

    Se eu parecia achar chato ou obsessivo o seu zelo, a sua preocupação, hoje eu sei que tudo isso só significa cuidado. E, mesmo na época, no fundo, eu achava fofo, era grata, ficava feliz: você me fez perceber como eu era amada.

    Lembra quando eu estava crescendo e queria sair e papai ficava de cara fechada, olho arregalado e não queria deixar, de jeito maneira, e você revirava os olhos a todas as objeções dele, a todo o bombardeio de perguntações de onde eu ia, com quem, o que estaria fazendo? Lembra como, com um olhar, você convencia-o a deixar eu ir e, com o mesmo olhar, erguia as sobrancelhas para mim, dizendo - no silêncio, para ele não ouvir - “a vida é uma só e a juventude também, vá viver a sua, e viva bem. Mas veja lá o que vai aprontar, hein? Juízo. E não pense que não sei o que vai pela sua cabeça porque sei sim. Eu já tive a sua idade”.

    Você me deu liberdade para eu agir com responsabilidade. E assim, eu fiz. Ou gosto de pensar que fiz. Ali, eu ficava radiante não só por poder ir e aprontar todas (mentira, mãe, eu sempre fui bem comportada!) mas por sentir em você uma amiga, uma companheira, uma confidente - que, ainda por cima, tinha a vantagem da experiência e podia me ajudar a lidar com todas as coisas das quais eu ainda não sabia. Você tinha percorrido o caminho antes de mim.

    Lembra quando as primeiras decepções vieram, e você esteve ali para mim, o tempo todo? Acho que, no fundo, você sabia que seria assim. Mas tinha que deixar eu ir, tentar me alertar seria inútil, e era importante eu quebrar a cara sozinha. Deixar eu cometer meus próprios erros era parte de uma jornada dura mas necessária para mim e para você também: para mim, a dura jornada de crescer. Para você, a de me ver crescendo, crescendo para o mundo.

    Lembra quando, ainda crescendo, eu tive que escolher minha vida, escolher o meu caminho, e andava pela casa angustiada, inquieta, falava e falava e falava e você só ouvia, sem dizer nada, até eu chorosamente perder a paciência e pedir ajudar, e você pacientemente pôr a mão no meu ombro e dizer que você não podia me ajudar mais, agora, porque a decisão não era sua, era minha para tomar? Porque a minha vida estava nas minhas mãos e cabia a mim, somente, a decisão do que fazer com ela, de que rumos dar a ela, enquanto você apoiaria o que quer que fosse que eu decidisse e me ajudaria de todas as formas possíveis nos primeiros passos desse caminho. Lembra, mãe?

    Naquele momento, mais uma vez, você me ajudou. Você me forçou a ser eu mesma, a construir o meu próprio caminho, a construir a minha identidade, eu mesma. Eu sou grata, mãe, você me deu todo o apoio. E você não podia, mesmo, escolher por mim.

    Lembra quando, tantas vezes, maior um pouquinho, eu duvidei de minha capacidade, tive dúvidas e medos e descrenças, achando que tão fácil quanto alcançar os meus sonhos seria alcançar o céu? Lembra quando você não me deixou desistir?

    Hoje, eu já alcancei um pouquinho dos dois, e boa parte da boa culpa por isso é sua. Tem dedo seu nisso; dedo e mão e dedicação e alma inteira.

    Aliás, você está mesmo em tudo. Você é minha referência maior, minha certeza, minha segurança, meu lar. Você me fez a pessoa que sou hoje. A você, eu devo a minha vida, o que tenho, o que sou. O que penso. O que escrevo. E hoje, estou aqui, desastradamente tentando pôr em palavras todo o meu amor, toda a minha gratidão.

    Porque, no fim das contas, é isso o que mais sinto, e isso é tudo mesmo o que tenho a dizer.

    Obrigada, mãe, por tudo. Eu espero que, no futuro, eu possa ser para os meus filhos um pouquinho da mãe que você é para mim.

    E, por último, só mais uma coisinha: eu te amo.

    Essas são as palavras que, para você, não fogem nunca.

    Um beijo,
    Vitória
   

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Alegoria do tempo

                                                                  
    O tempo é uma coisa engraçada.

    O tempo prega peças na gente.

    O tempo é um excelente ator...

    O tempo vai andando assim devagar e depois, como criança levada, começa a correr e a correr e foge do controle da gente.

    O tempo corre tanto que a gente nunca alcança - embora ele sempre alcance a gente.

    O tempo dissimula, disfarça, esconde, se esconde. Mas o tempo nunca engana.

   O tempo é professor, ensina coisas. Espera cada um de nós fazer a sua parte, mesmo que isso tome todo o seu tempo, além de todo o nosso.

    O tempo, às vezes, dá duras lições; o tempo bate na gente.

    Tempo, tempo, tempo.

    E de novo. Mas a gente é mau aluno, e não aprende.

    O tempo nos revolta, nos indigna, o tempo nunca espera.

   O tempo acalma. O tempo nos dá tempo, nos faz respirar, nos dá a possibilidade de acertar.   

   O tempo nos traz um dia após o outro, outro dia depois desse, infaltavelmente. Podemos contar com ele.

    O tempo é amigo, é piedoso. O tempo conhece o nosso tempo.

    Aquele outro tempo, que não é externo, que está em nós. O tempo que é um coração, o tempo que é indeciso, e que precisa de tempo.

    O tempo deixa marcas na gente - mas a gente quase nunca deixa marcas no tempo. A gente passa. 

    A gente passa.

    A gente sempre passa.

    Isso é difícil de aceitar.

    Meu Deus, e o tempo fica.

    O danado do tempo sempre fica.

                                                                
    O tempo nos ensina a andar, o tempo nos ensina a falar, e a guardar.

    O tempo nos ensina a viver, mas não nos ensina a morrer.

    O tempo é tão irônico!

    O tempo faz a gente de brinquedo. Mas a gente deve brincar com o tempo também, o tempo é uma grande brincadeira. Vamos rir com o tempo.

    O tempo é uma massinha que a gente molda. Cada um com seu pedacinho de tempo faz dele uma coisa diferente, de uma forma diferente, conforme a sabedoria de suas mãos permite... Ou não permite.

    E acaba que descobrimos, porém, que o tempo é teimoso. É difícil torcer o tempo. E o tempo acaba. A quantidade de massinha é muito pouca. Tia, dá mais!

    O tempo é marrento, o tempo não recebe amarras. O tempo não ouve súplicas.

    O tempo é soberbo. O tempo é supremo.

    O tempo nos deixa frustrados.

    Mas o tempo nos completa.

    O que seria de nós todos sem o tempo?

    Páginas soltas de uma história não contada, pontos perdidos de uma frase não escrita. Pontos perdidos, pontos... esparsos...

    O tempo é o narrador de todas as histórias. O tempo conta histórias, além de ser uma.

    O tempo é um eterno vovô.

    Que, inclusive, faz de suas chantagens emocionais conosco, vem rezar suas ladainhas, exigir-nos o nosso dever. Que exerce seu frustrante poder sobre nós e às vezes nos faz deixar de escolher o que muito queremos, deixar de fazer... tanta coisa.

    Não dá tempo.

    Não dá, tempo.

    O tempo não dá.

    O tempo é muito chato.

    Eu odeio o tempo. E o ódio é uma outra face do amor.

    O tempo não conhece limites.

    O tempo conhece os limites da gente.

    O tempo é um grande limite, o tempo limita a gente.

    O tempo é cruel, mas não é tão cruel assim. Só um pouquinho.

    Pois o tempo é um troféu, um êxito. É uma peça rara, mesmo que tão abundante. Quem sabe lidar com ele tem um tesouro nas mãos. Quem vive bem o seu tempo é sábio. Quem tem muito tempo é alguém de sorte.

    Pois o tempo não é muito comprido, para nós, mas o tempo é largo.

    Nele cabem muitas coisas. Uma vida.

    O tempo nos dá uma vida. Uma vida inteira. Uma vida interrompidamente - por ele, é claro, o maestro do espetáculo.

    O espetáculo que por mais simples que seja sempre merece aplauso. O espetáculo que é um presente. Um presente sem igual. Para todos os aniversários.

    O tempo é um infinito livro, em que escrevemos um pouquinho, em que muito já está escrito, muito ainda está em branco. Um livro que também podemos ler. O tempo nos auxilia no conhecimento.

    Mas, nem sempre. A gente é mau aluno, e nem sempre aprende.
  
E o que mais quer aprender, que ironia!, o tempo não sabe ensinar. O tempo não nos diz como dizer adeus. O tempo não facilita a despedida.

    O tempo é um professor engraçado!

    Um professor que não sabe escutar mas nos deixa ouvir. Nos deixa ouvir a nós mesmos.

    O tempo nos envolve. 

    O tempo nos deixa enrolados.

    O tempo não é passado quando deixa um rabinho.

    O tempo não é passado senão quando já não resta mais.

    E não é presente senão quando nele de fato estamos. Quando desfazemos o embrulho.

    E o tempo jamais será futuro.

    O tempo é.

    O tempo está aqui.

    O tempo permanece.

   O tempo é uma constante. Uma constante que revoluciona-se, e não muda. Tempo atrás de tempo atrás de tempo. Para sempre.

    Nada mudou.

    Nada muda.

    Só a gente.

    A gente muda. 

    A gente muda muito, a gente sempre muda. A gente muda o tempo todo, o tempo todo muda a gente, a gente muda para sempre.

   E coitado o tempo fica aí parado. Parado eternamente. Isso deve ser um pouco entediante.

    O tempo não muda, não muda nunca. O tempo não morre.

    No fim das contas, o tempo é um companheiro fiel, ele nunca nos deixa.

    O tempo...

    Ah, o tempo é mesmo muito engraçado!