quarta-feira, 27 de maio de 2015

Um elogio à timidez - proteção de retaguarda

                                                               
                                                                       

 “A timidez é sempre efeito de uma sensação de inferioridade, de um modo ou de outro. Se eu pudesse me convencer de que meus modos são perfeitamente graciosos e espontâneos, não seria tímido.” (Jane Austen, em Razão e Sensibilidade)
   
    “O sofrimento das pessoas tímidas provém de não saberem a opinião que os outros têm delas. Assim que essa opinião, qualquer que seja, se torna conhecida, o sofrimento termina.” (Lev Tolstoi, em Infância)

     Muita gente confunde timidez e reserva, inclusive eu. E estou aqui hoje para falar um pouquinho das duas.

   Normalmente, define-se timidez como apreensão, insegurança, desajeito ou desconforto que sente-se numa situação de início ou novidade: no primeiro dia de trabalho, quando se chega à uma escola nova, quando se está sendo apresentado a uma pessoa ou um grupo, encontrando-lhes e conversando com eles pela primeira vez. Reserva, por outro lado, é usualmente tida como um hábito de resguardo, distância, retração de uma pessoa em relação a outras. A pessoa reservada, dizemos, é fechada. Não conversa muito, raramente dá opiniões e pitacos, transparece ou deixa mostrar quem é. Dizendo assim, a distinção parece simples, e a confusão entre as duas coisas, boba e infantil.

    No entanto, eu acredito, ela - a confusão - tem uma razão de ser, um forte porquê. Timidez e reserva não têm fronteiras tão nítidas assim, e não são dissociadas uma da outra. Pelo contrário, a linha entre elas é tênue e esparsa; elas são intimamente relacionadas, têm uma mesma raiz.

    Esclarecendo, afora o aspecto do desajeito ou embaraço, e da novidade - teoricamente presente na timidez, ausente na reserva -, as duas coisas poderiam ser a mesma. Não é à toa que, muitas vezes, caracterizamos uma pessoa como reservada quando ela está apenas vivendo uma situação de timidez, e vice-versa.
    O que estou querendo dizer é que é pouco relevante tentar defini-las em separado, discutir os limites entre uma e outra; muito melhor é enxergar as continuidades entre elas, seus núcleos comuns. Pois, a timidez não é senão um estágio primeiro da reserva - comportamento que tem como motor uma insegurança profunda, um medo, receio de ser conhecido. Assim, uma pessoa pode não ser reservada mas estar tímida, como pode não estar tímida e ser reservada. (E essa diferença ainda pode cair por terra se considerarmos que todo dia é um novo, e que as pessoas se constroem e reconstroem aos olhos das outras em cada um deles, que são, portanto, não mais que sucessivos começos. Pensando assim, a pessoa reservada é uma que está sempre tímida.)

    De um jeito ou de outro, tudo pela mesma razão: uma autoconsciência pujante, uma percepção clara de si mesmo em relação ao outro, e de que se está sendo observado e julgado por esse outro o tempo todo, e de que se teme e receia esse julgamento, essa opinião, e se quer evitá-la, dando o mínimo possível de base para ela se formar negativamente.

    Aproveitando a brilhante colocação do meu guru Tolstoi, se essa opinião fosse conhecida, toda a timidez e a reserva cessaria. Completando com a de Jane, se fosse conhecida e favorável, mais ainda o ser se abriria e se mostraria. Não estando mais preocupado com o desconhecimento, do que ela pode ser, nem incomodado com o seu teor, tendo-a descoberto, ele poderia agora agir livremente, sem a sorrateira mas muito presente consciência de que, por suas ações, ele molda a opinião que o outro tem acerca dele.

    O ser humano é um bicho engraçadíssimo! Crescendo, incorporando em si ideias conjuntamente criadas e tendo as suas próprias, fruto de observação, ele julga e torna-se pouco tolerante. Mais do que isso, ele pode ser maldoso, e tão facilmente quanto respira, sabe bater a língua sobre seus companheiros viventes a outros companheiros viventes, expondo os primeiros ao escárnio.

    Esse mesmo ser humano, porém, quer ser amado, precisa ser amado. Gosta de se sentir parte do grupo, de estar encaixado, sendo querido. E, vivendo e vivendo situações diversas - ora sendo aquele que bate a língua, ora do grupo que escuta, ora do que é objeto dessa fala toda, ora de um outro que só observa - ele sabe que tudo isso acontece. E, tendo uma enorme necessidade de ser querido, se sentir amado, conectar-se a seus semelhantes de forma boa e forte, é muito natural que tema a opinião desse semelhante na medida em que é ela que vai determinar em que condição está ou não de ser querido por ele.

    Isso porque, convenhamos, nós normalmente amamos e admiramos e queremos perto o que achamos bom, agradável, positivo. E não gostamos tanto, queremos distância, do que é ruim e desagradável. (Embora, é claro, existam por aí gatos e gatas pingados que sentem um magnetismo aparentemente irresistível àquilo e àqueles que podem ser corrosivos, que dizemos incorretos e de virtudes, digamos, pouco uniformes. Mas isso é papo para outra história.)

    Dessa forma, voltando à discussão principal, eu vejo duas maneiras comumente utilizadas de as pessoas fugirem da potencial desfavorável opinião de outrem, tentarem mantê-la favorável ou ao menos neutra, no intuito de serem amadas. Uma é adotando uma personalidade maleável, camaleoa. Ou seja, sendo, para cada pessoa com quem se relaciona, exatamente aquela de que sabe que ela irá gostar.

    Por mais que muito tente não condená-la, eu desgosto bastante dessa maneira, porque ela significa que a pessoa não tem (ou, pior ainda, não quer ter) identidade própria. Não gosta de suas certas coisas, não tem suas opiniões, não age de uma sua certa forma, não se identifica com suas certas preferências, e despreferências, que fazem com que ela seja quem é. Essa pessoa é tudo, todo mundo, e ao mesmo tempo não é ninguém.

    É um tiro que pode sair pela culatra porque, ao passo que é difícil desgostar dessa pessoa - já que ela não tem rosto, é alguém que não é ninguém -, é igualmente muito difícil gostar dela, quando se percebe isso, pelo mesmo motivo.

    A segunda maneira é justamente a que estou elogiando hoje: a timidez-reserva. Ela é uma forma de proteção, uma proteção da sua retaguarda, sua essência, para que ela possa não ser diluída pelas demandas (ou pretensas exigências) de outrem a seu respeito, ou afetada e machucada pelas possíveis más opiniões deles. É um escudo contra o desgosto e a maldade de outras pessoas e a dor que pode vir disso, já que, com ele, se deixa transparecer, evidenciar, muito pouco do que realmente é. É uma inconscientemente inteligente forma de não abdicar da própria personalidade, preservando-a autêntica e firme, não submetendo-a aos olhares de outras pessoas, que podem não entendê-la e impiedosamente julgá-la.

    Obviamente, há pontos de perigo aqui também. Essa maneira também pode se mostrar contraprodutiva pois, se todos em volta desconhecem a pessoa linda que está contida naquele ser fechado, como podem amá-la? Contudo, eu acredito que esse desconhecimento por ser superado com o bálsamo de todas as angústias, o tempo; e essa possível desvantagem ser transformada em ponto positivo à medida que a pessoa conhece melhor aqueles em volta, passa a confiar neles, um pouco que seja, e se permite ser conhecida. Tendo sondado o terreno, percebido-se segura ali, ela pode sim se mostrar, gradualmente ir desvencilhando-se das camadas e camadas de neutra capa que cobrem quem ela é, de fato.

    (Mais uma vez me esclarecendo, não estou dizendo aqui que essas são estratégias cuidadosamente pensadas, analisadas, conscientemente adotadas por uns e outros de nós em nossas relações, porque não são. Estou só comentando o que percebo delas, o que podem ser implícitas motivações desses comportamentos que, vivendo, nós muitas vezes não percebemos, ou não paramos para pensar sobre.

    Tampouco, entendam, misturo a qualidade do reservado com a do introspectivo - que é aquele que, naturalmente, vive mais consigo mesmo, de si consigo, e pouco investe ou busca intercâmbio com outras pessoas. São coisas diferentes. O introspectivo é quieto e calado porque esse é seu jeito. O reservado é quieto e calado porque assim esconde o seu jeito, que não é esse.

    Por último, também não estou dizendo que toda pessoa quieta e calada é obrigatoriamente ou introspectiva ou reservada. Há sempre aqueles, nós bem sabemos, que não falam nada porque realmente não têm nada a dizer.)

    Concluindo, eu registro aqui hoje meu elogio à timidez. Às vezes fofa, às vezes tão forte que sufoca, fato é que ela é uma maneira inteligente e curiosa - para alguns necessária - de se navegar pela vida entre as pessoas. Afinal, poucos de nós são orgulhosos e vaidosos ao ponto de ter alta opinião acerca de si mesmo, e desejar ser conhecido para que, certamente, todos - ou uma agradável maioria - possam ter a mesma alta opinião acerca dele que ele tem acerca de si mesmo.

    Mais ainda, infelizmente, pouquíssimos de nós são confiantes e seguros a ponto de, recebendo a notícia, por exemplo, de que “fulano não gosta de você. Diz que te acha isso e isso e isso”, genuinamente não se importar e dizer em retorno “ah, é mesmo? Não gosta? E daí? O problema é todo dele. Eu sou assim, e é ele quem está perdendo a minha companhia.”
    Até chegarmos a esse estágio de evolução humana, não é de todo um mal negócio viver timidamente.

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