quarta-feira, 24 de junho de 2015

A arte de conversar

                                                                             

                                                     
               Conversar: 1. falar com alguém. 2. discutir, falar sobre
               Conversa: s.f.: troca de palavras entre duas pessoas, diálogo
               Com, con ou co: conjunto, companhia
              Versar: versejar, pôr em versos uma história em prosa, versificar. Fazer versos, poetizar.

            Conversar. Parece tão simples que nós desmerecemos e ignoramos a arte em torno do ato. Afinal, não basta estar próximo a alguém, que às vezes nem é um conhecido, e começar com ele um intercâmbio de palavras que já se está conversando? Não necessariamente.
         Conversar. Con-versar. Versar com. Analisando poeticamente a palavra, percebemos que ela tem dois núcleos principais que já nos dizem seu significado. Con é o prefixo que indica, como apontei acima, companhia. É o mesmo presente em consenso, compartilhar, coexistência, conjunto. Embora na palavra conversar ele não funcione oficialmente dessa forma, eu não acho que ele está aí à toa; ele nos mostra que a conversa é uma atividade que não se pode fazer sozinhamente, é um empreendimento que precisa de, no mínimo, duas pessoas para ser realizado. É uma troca, um intercâmbio. Diálogo.
       Das duas etapas da construção artística, talvez esta seja a mais bonita. Pois, ela nos força a ver e, principalmente, ouvir o outro; a entrar em contato com ele no mais profundo sentido que “contato” tem, ligando-se a ele em seu interior, em suas ideias, sua alma, no que sente em relação ao tema conversado, em como se sente em relação a conversa em si, e a nós, como está reagindo frente a tudo isso. Conversar é a bela atividade de ler o outro, através também de sua falante linguagem que não é dita, e escrever com ele uma pequena história - ou uma cena - de nossas vidas, o diálogo que ali se faz. Envolve olhos nos olhos, o eventual toque, o sorriso e o aceno, coração. Conversar é um exercício de humanidade, pois pede empatia, a capacidade de colocar-se no lugar do outro e tentar entender o que ele está pensando e querendo dizer; pede paciência, tolerância e tranquilidade. Pede abertura para vários pontos de vista, ao conversarmos com diversos tipos de pessoa. Pede compreensão e bom senso, a sábia habilidade de perceber a hora de falar, de calar, de abrir e fechar parênteses, destacar exclamações, abrir travessões, deixar reticências...
        Versar sozinho, portanto, é muito diferente de conversar, que não é nem pode ser uma atividade de monólogo direcionado, explicação de uma teoria, falado poema de via única. Uma conversa é uma partilha, um ato de conhecimento, reconhecimento, autoconhecimento. Um ato conjunto. Um poema de mão dupla, uma escultura feita a dois, ou mais. Construída a partir da interação dos artistas.
        Versar, por sua vez, nos diz que quaisquer palavras trocadas não são obrigatoriamente elementos de uma conversa. É preciso versar, tanto no sentido da forma quanto do conteúdo. Do mesmo jeito que se tece uma história, um texto, uma música, é preciso tecer uma conversa. Com cuidado, com carinho, escolhendo as palavras, juntando-as como retalhinhos essenciais da colcha que é o diálogo. Fazendo algum sentido, tendo um fio condutor que amarre a prosa direitinho e a leve a algum lugar, fazendo com que os participantes tirem algum proveito da conversa. Pois, a conversa é uma troca não só de palavras, mas de palavras em verso. E nem só de versos, palavras versejadas é uma troca, mas de ideias. Ideias traduzidas em palavras, palavras que devem realmente dizer alguma coisa. Versar sobre um assunto, ter um sentido.
        Assim, tanto mais bela e inspiradora é a conversa quanto mais bem cabidos são seus termos, mais adequados eles são ao tema abordado, à situação contextual da conversa, à pessoa com quem se conversa. (E é por isso que vem antes o con, depois o versar; já que primeiro se faz um exercício de leitura e compreensão, depois de construção. Primeiro se compreende o “com quem” e seu entorno, depois se edifica e devagarzinhamente costura e borda o “o quê”.) E tanto mais rica e enriquecedora é a conversa quanto mais esforço e entrega são postos ali, quanto mais alma existe, e mais genuína e profunda doação e troca acontecem entre os entes conversantes.
          Con-versar, meus amigos, é uma obra conjunta, uma arte que deve ser feita a duas mãos. É das mais antigas a arte, e também das mais belas. Das mais sutis e mais grandiosas, enquanto mais cotidianas e mais melindrosas, a arte de trocar ideias através de palavras. A arte de poetizar em prosa, de prosear em grupo. De interiormente enriquecer e ao mesmo tempo externalizar sua riqueza, de expressar o que tem dentro de si e conhecer o expresso do outro.
        Que não negligenciemos a magia e o valor que pode haver numa conversa, e não nos deixemos esquecer de apurar e enxergar a arte que existe no fazê-la. A arte de conversar.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Sexting - outro problema do século XXI


       Esse é um tema que eu gostaria de poder não escrever sobre. Um tema em que gostaria de poder não tocar, por ele não fazer parte da nossa realidade, muito menos nas dimensões que adquiriu, como o pesadelo que se tornou. No entanto, já que é a realidade e é esta, e conforme isso se torna normal e constante, e conforme notícias saem de jovens recorrendo ao suicídio depois de vazamento de fotos e vídeos íntimos, de escolas que caotizam-se por esses acontecimentos, escândalos que se formam, famílias que se quebram, vidas que se perdem, eu sinto que não posso fugir dele.

    Para quem não sabe, sexting (texting sex) é o termo que sintetiza o muito moderno ato de envio ou compartilhamento de conteúdos (que deveriam ser) íntimos ou privados, através do celular e da internet, em fotos, vídeos, e, em menos grave domínio, mensagens de texto.

    Algumas pessoas consideram que não há nenhum problema nisso, nesse comportamento, que é hoje, entre muitos jovens, praticamente um ritual parte do processo de crescer. Nesse ponto de vista, sexting é enxergado somente como uma nova forma, propiciada pelas maravilhosas tecnologias de informação, com a qual as pessoas estão vivendo sua sexualidade e seus relacionamentos.

    Eu tenho sérias reservas em relação a esse pensamento e ao próprio sexting, mas, para o bem do debate, vou esclarecer os dois lados na questão.

    Além daqueles que, como dito acima, aceitam o sexting como algo muito normal, há também quem diga que as tragédias decorridas de situações de sexting nada têm a ver com o ato em si mas com como as pessoas lidam com isso e como a lei atinge os criminosos e resguarda as vítimas envolvidas. O argumento aqui é basicamente o seguinte: em privado, as pessoas têm o absoluto direito de fazerem o que bem quiserem, e não devem deixar de fazer o que quiserem (neste caso, utilizar da foto e da gravação de vídeo, manter os resultados estocados em seus aparelhos eletrônicos e naqueles das pessoas - somente as muito próximas, cuidadosamente selecionadas, absolutamente confiáveis, para não dizer o contrário - a quem foram enviados) por medo de abuso de outras pessoas - no caso, distantemente possível, de esse conteúdo sair das únicas mãos e dos únicos olhos que deveriam ter acesso a eles.

    Para essas pessoas, ninguém deve alterar o seu comportamento particular por medo dessas talvez acontecenças, da mesma forma que ninguém deve deixar de acessar sua conta no banco pelo celular ou checar o diagnóstico do médico ou as notas da escola que chegam pela internet, e o que deve ser feito para minimizar problemas é proteger de todo jeito e à toda custa o direito de todos à privacidade, inclusive no espaço virtual, e garantir que aqueles que perpetuem todo tipo de abuso ou distribuição sem o consentimento das pessoas envolvidas sejam devidamente punidos.

    Quanto a tudo isso, eu acredito que quem pensa assim está desconsiderando alguns fatores importantíssimos na problemática, como por exemplo o risco que se corre ao deixar no poder de um parceiro fotos e vídeos dessa íntima espécie. Além do perigo que sempre existe do indivíduo em questão não ter o melhor dos discernimentos e na maior inocência do mundo mandar tudo ao melhor amigo, que jura segredo, e manda ao outro melhor amigo, que manda ao outro e ao outro, existe outro ponto: relacionamentos terminam, o pacto talvez existido de mútuo cuidado e protetor silêncio se desfaz e dá lugar, muitas vezes, a uma ânsia por magoar e machucar muito grande - em cujo intento esse tipo de conteúdo, se distribuído, carrega um intenso poder, se tornando assim ferramenta excelente de vingança.

    Desconsidera-se ainda, no pensamento favorável, que ingenuidade enorme é acreditar que a internet é segura e privada, e que a lei - que é muito falha inclusive no espaço real -, se ela existe, será devidamente cumprida no espaço virtual e será suficiente para preservar a vítima, prevenir ou reparar todo o dano e a devastação que a exposição dessa natureza pode causar. (A devastação que, em todos os sentidos, é muito diferente e muito mais intensa que os incômodos e das dores da cabeça que alguma invasão em conta de banco ou outro tipo de dado pessoal pode desencadear.)

    Eu, de minha parte, no entanto, creio que tudo isso é secundário. A discussão maior do problema transcende esse trâmite pós-sexting, o lado mais prático e imediatamente perceptível da questão. Ela deve bailar sobre o sexting em si e a mentalidade que o legitima, a forma de pensar que leva a este comportamento.

    Pois, para quem acha que ele é parte de uma conduta normal, coisa típica do nosso tempo, um advento inevitável da era da informação, eu respondo que devemos ter um pouco de senso, e pensar que nem tudo o que está disponível e sendo usado e praticado em toda parte é de fato razoável e normal e prudente. Eu respondo que o cerne da questão, o coração desse absurdo, o que devemos mesmo questionar e criticar aqui é uma cultura de superexposição em que somos a toda hora encorajados a dividir com o mundo coisas que deveríamos guardar. Uma cultura do aparecer, do compartilhamento exagerado, de uma pane geral no desconfiômetro das pessoas que estão perdendo a noção entre o que pode ser público e o que deveria ser privado, dissolvendo perigosamente as fronteiras entre elas.

    Nós estamos vivendo em um universo tão doido que muita gente parece estar se colocando - voluntariamente - em uma situação de abdicação da própria privacidade, ela que era um luxo inigualável que os nossos antepassados valorizavam como a um tesouro, de cujos poucos momentos eles desfrutavam como quem prova uma especiaria, coisa rara, com muito júbilo, e com muito prazer.

    Em resumo, o que eu queria dizer hoje era isto: se você sente que precisa e quer muito registrar os seus momentos de nudez ou sexo, faça-o na memória. Ou, no máximo, tire as fotos, mas, pelo seu próprio bem, revele-as. Não seja ingênuo a ponto de sentir-se salvo na nuvem digital e seja cauteloso para de forma alguma deixar isso cair na rede mundial de computadores, a terra onde tudo se vê, tudo se compartilha. Poupe-se disso. E quanto a mandar para alguém especial, considere: a excitação do momento passa rapidinho, enquanto o dano e a dor que provocam a invasão, a publicidade e o escárnio é muito difícil e demoradamente superada. Se superada, afinal.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Entre a padronização e a diferença

                                                                    
                                                                 


    1.491.721 cirurgias plásticas no total, entre
    * 228.000 lipoaspirações
    * 226.000 implantes de silicone nos seios
    * 63.925 implantes de silicone nos glúteos
    * 77.224 cirurgias de correção do nariz
    * 8.319 transplantes de cabelo
    foram realizadas no Brasil - líder mundial na realização desse procedimento - no ano de 2013, de acordo com dados da Sociedade Internacional de Cirurgias Plástica Estética.

    Vamos conversar um pouquinho sobre isso?

    Os números assustam. Chocam até. Entre tanta gente que celebra - a existência na atualidade de recursos para as pessoas “consertarem” aquilo que não gostam em si mesmas e assim poderem viver melhor consigo; o fato de as pessoas terem acesso a esses recursos; das clínicas especializadas e dos cirurgiões se multiplicarem, muito satisfeitos pelos bolsões de dinheiro que ganham com isso - eu acredito que há mais razões para temor e reflexão nesses números do que para comemoração.

    A modernidade trouxe melhoras à vida das pessoas, mas também trouxe armadilhas. As mulheres (87, 2 % do total de pessoas que fizeram as tais cirurgias) não são mais escravas da casa ou dos maridos, mas são escravas do espelho - como eles também estão se tornando. Não vivemos mais cárceres políticos ou, em dominante escala, o cárcere da pobreza, mas vivemos uma aprisionamento que talvez seja pior - aquele psicológico, interior, incrivelmente mais sorrateiro e mais danoso e mais difícil de identificar como mais difícil de combater.

    Apesar de já haver uma melhora no quadro - dadas as mais frequentes presenças de, por exemplo, modelos plus size, “minorias” étnicas, religiosas, de orientação sexual, em suas telas e outdoors - a mídia ainda faz papel problemático na questão ao predominantemente escolher pessoas muito bonitas (num padrão e tipo comum, tradicional e muito específico de beleza) e aparentemente perfeitas para participar de suas exibições, sendo retratadas numa avalanche de positividade, como as gostosonas do pedaço, heroínas da vida que devem inspirar o restante de nós, reles mortais cheios de defeitos.

    A maioria das próprias pessoas que estão sob os holofotes não ajudam e - ao invés de terem ciência de seu lugar público, do poder que elas assim ganham de influenciar as massas e procurarem fazer algo bom desse seu poder -, por conta própria, fazem seu marketing-tipo, postando venenosas fotos de si mesmos enfocando aspectos belos e admiráveis de suas ilustres pessoas e da vida que levam, que seja seu corpo escultural (e como investe na melhora de seus já lindos traços em malhação) ou uma vestimenta bombástica ou a viagem dos sonhos que está fazendo a um lugar paradisíaco.

    (Engraçado, o que há de mais belo e admirável para mim numa pessoa é sua sensibilidade. E nós muito raramente vemos esses pobres coitados, temporárias estrelas sem real brilho, clicando si próprios em situações de aprimoramento e exercício dessa sensibilidade, como na calma leitura de um livro ou no singelo ato de cuidar de um jardim. Engraçado, não é?, como uma imagem de simples bom moço/boa moça não vende.)

    Mas, eu acredito, o maior problema não é esse. O maior problema não é algo externo, que vem a nós, pelo qual somos afetados; mas algo interno, que está em nós, parte de nós, e que nos permite sermos afetados. Pois, meu leitor, se todos tivéssemos consciência da grande palhaçada digna de desprezo que todo esse circo é, e das pessoas especiais que nós - reles mortais cheios de defeitos - somos, sem a necessidade de copiar ninguém, tudo isso seria sim lançado a nós, mas seria na mesma hora rebatido ou ignorado, sem gerar a menor inquietação. Tudo isso chegaria, pelo menos, fazendo bem mais fraco efeito do que o terremoto que causa hoje.

    Igualmente, é por esse problema de consciência que cada vez mais é difícil topar com alguém que tenha a configuração original de seus dentes. Na primeira oportunidade - muitas vezes sem necessidade, por pura estética - a pessoa os corrige, deixando-os alinhadinhos, perfeitinhos, normaizinhos.

    É por esse problema de consciência que o número de pessoas encaixadas na categoria dos depressivos só cresce. Ninguém tem mais direito a um pouquinho de tristeza. Ninguém parece perceber a simples verdade da vida de que todos inevitavelmente passamos por períodos e momentos muito bons, mais felizes, mais tranquilos, e por outros não tão bons assim, mais turbulentos, mais tristes, e que cada um de nós deveria poder ter tempo e espaço para desenvolver seus próprios jeitos de levar a vida, passando por cada um desses momentos da melhor forma possível, tendo maneiras de aproveitar ao máximo os primeiros, e mecanismos para lidar bem com os últimos. É questão de sabedoria. Não de medicação ou terapia.

    É por esse terrível problema de consciência, meu Deus, que cada vez mais crianças, cada vez mais cedo, são diagnosticadas com transtornos como hiperatividade, ansiedade, deficit de atenção. Qualquer agitaçãozinha maior da criança e os pais - tão pacientes com seus filhos - os levam logo ao especialista, que logo bate o martelo e, adivinhem, prescreve remédios.

    Como se houvesse um eixo de normalidade da qual aquela criança está se afastando perigosamente e ao qual precisa ser restituída. Como se as crianças sapecas não fossem aceitáveis, e até mais simpáticas, perto das quietinhas quietíssimas - aquelas que, certamente, todos desejamos. Como se cada uma não pudesse ter seu próprio tempo de aprendizado, não pudesse desenvolver-se plenamente em sua particularidade. Como se ninguém pudesse ser diferente.

    Por tudo isso, nós precisamos trabalhar essa consciência, resolver o problema - coisa que não que não pode ser feita com nenhum aparelho, terapia ou remédio. Precisamos desenvolver e deixar crescer, disseminar-se, uma maior aceitação de nós mesmos e dos outros, em sua completa singularidade, em seus defeitos e suas qualidades. 

    Precisamos largar essa noção besta de padronização, de adequação, de tentarmos “ser como fulano de tal”, pois “só quando tivermos um corpo igual a esse” seremos felizes. Precisamos aprender que não existe perfeição; todo mundo é imperfeito. E se o seu defeito não é aparente, isso não significa que ele não existe, só que é oculto. E esse oculto pode ser muito pior que o aparente.

    Precisamos aprender a viver a vida como ela é, sendo bem como nós somos, naturalmente, originalmente. Aprender a aproveitar melhor a era da liberdade que vivenciamos e toda a margem para diferença que ela dá. Uma diferença celebrável. Uma diferença preciosa.

    Meu recado por hoje é este, bem bobo mas surpreendentemente necessário: com narizes grandes ou pequenos, corpos magros ou não tão magros, olhos claros ou escuros, inteligência aguçadíssima ou um pouco lenta, que todos sejamos felizes. Felizes assim, bem como somos, sem cirurgicamente procurar mudar nada. A diferença é divertida, e não deve ser remediada. A diferença é uma benção. Pois, convenhamos, se toda gente fosse igual, o mundo seria muito sem graça...
   

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Amor por escrito

                                                             


 “Eu não sei como te dizer o que quero te dizer, por isso estou escrevendo. Nunca vou encontrar a coragem para te entregar essa carta, de qualquer forma. Quando eu te olho, não consigo tirar meus olhos de você. Eu quero tanto ter seus braços me envolvendo, sentir seu corpo contra o meu. Sei que você não sente o mesmo que eu, e é por isso que não tenho coragem de assinar isto. Mas eu amo você mais do que as palavras podem dizer.”

    Calma, gente, não é isso que vocês estão pensando. Eu garanto.

    E agora que eu mesma estou pensando, nem deveria ter aberto o texto com essa mensagem. É bem possível que agora uma dúzia de moços bonitos e inteligentes do meu conhecimento estejam caindo para trás de emoção, cada um pensando que é para ele. Sosseguem os corações aí, meus queridos, sinto dizer que essas linhas não são para vocês.

    A bem da verdade, elas nem são minhas. São a abertura de um filme bobíssimo que eu assisti, “A admiradora secreta”, filme que é realmente desses que você não acredita que desperdiçou duas horas da vida assistindo. E, mesmo assim, no entanto, de alguma forma ele me provocou. É curioso perceber retratado nele o extraordinário poder de uma simples carta: as linhas acima reproduzidas são o ponto de partida de todos os conflitos da débil trama e, ao mesmo tempo, o ponto de chegada no qual todos se resolvem.

    O legal no filme é que, se passando nos saudosos 80, nos quais computador era realidade distante, a carta é escrita à mão - numa letra até muito bonitinha, em papel comum, dobrado em duas retas paralelas no clássico formato "carta". Num tempo (o nosso) em que muitas pessoas só escrevem à mão uma listinha de compras - ou, às vezes, nem isso, já que agora é tudo no celular -, eu me pergunto quem, além de mim, escreveria algo nesses moldes dessa manuscrita forma, e se ainda resta espaço e tempo no cotidiano e no coração das pessoas para o mágico casal da caneta e do papel.

    Eu funciono assim: tudo escrevo à mão, no papel, com caneta ou lápis, calma e cursivamente, e depois, apenas o que preciso, como um trabalho a ser entregue, ou os textos do blog, digito ao computador - com "quem" vivo um verdadeiro caso de amor e ódio. Amor porque eu realmente preciso dele, não posso mais viver sem ele. Ódio porque, quando (muito frequentemente) eu passo dias seguidos sem olhar para a tela dele, ele fica magoado, se sente deixado de lado, e depois fica se fazendo de difícil, fazendo hora com a minha cara, dando tiltis dos mais espetaculares, insistindo em não abrir nada do que eu carinhosamente peço que ele abra, me deixando ‘p’ da vida. Sabem como é, né?

    Mas não é só por causa dessa minha difícil e complicada relação com o computador que eu prefiro o papel, nem só porque escrever com frequência à mão, em postura certinha e tranquilo estado mental, deixa a respiração mais corretamente rítmica, a memória mais desenvolvida, apura seu domínio da língua que utiliza e aguça e acelera sua capacidade de leitura. É, além de tudo isso, simples e principalmente, porque me é mais prazeroso.

    Escrever à mão faz bem. Pode ser mais lento (ou não, né, cada caso é um caso; no meu por exemplo, a minha lerdeza digital é tanta que escrever à mão acaba sendo mais rápido que digitar) mas é mais gostoso, e mais saudável.

    Quando você escreve à mão, normalmente é mais lento porque está mais consciente do que está fazendo. Seus sentidos estão em ação, a caneta ou o lápis em sua mão, o papel está sendo modificado, marcado por uma ação sua. Você presta atenção para ver se sua letra está legível, se está seguindo a linha ou não, se está escrevendo o que está pensando, e como está pensando. Você também é mais lento porque (já que não pode ‘editar’ tudo no papel, rearranjar frases de lá para cá, remanejar a ordem das palavras, consertar a ortografia sem borrocar, deletar um páragrafo inteiro e começar de novo) você sem querer organiza tudo anteriormente na cabeça para o escrito sair mais “de acordo”, sem carecer da edição completa.

    Além de todo esse lado espiritual - escrever à mão é quase entrar em um estado de meditação -, da integração que ocorre de você com o que está fazendo, com o seu escrito, de você com os próprios pensamentos, com você mesmo, ainda há o lado físico. A caneta encaixadinha entre seus dedos, e a sua percepção dela, a textura do papel, a rotação do seu pulso enquanto escreve, o ângulo que sua caneta descreve com o papel, o movimento que sua mão faz, percorrendo a página enquanto os escritos a preenchem, num vai e vem, o próprio som que a pontinha da caneta faz, ou o lápis, riscando o papel... Escrever à mão chega a ser um ato sensual.

    E fora que é mais íntimo em todos os sentidos. É mais privado, mais seu. Enquanto no computador, você não sabe se está seguro, pois está em rede, e qualquer um pode entrar e roubar seus dados, ler seus escritos, ou um vírus vir e apagá-los e você perdê-los para sempre; no papel, isso simplesmente não é possível. É mais fácil guardar o que quer manter de seu, porque quem quiser ler o seu escrito - escrito à mão - terá que entrar na sua casa, arrombar a sua escrivaninha, furtar os seus papéis. E o risco desse crime - ao contrário de um virtual, cibernético, nem sei como se diz - você certamente quase não corre.

    É mais íntimo também porque mais único, particular, algo que se outra pessoa for fazer, jamais fará como você. No computador, ou tablet, smartphone, as variâncias tecnológicas que você usa, qualquer um que tenha um produtor de textos igual ao seu, use uma fonte igual à sua, terá um texto igual ao seu. Tudo é padronizado. O espaçamento é definido, impecável; a “letra” sairá certinha, sem seus borrocados particulares, seus deslizes... A perfeição da máquina não tem graça nenhuma.

    Ao passo que, escrevendo à mão, você realiza algo único. Você vê a folha floriando-se com sua letra - que é sua, só sua, de mais ninguém -, que às vezes é um escrito marcante, deixando sequelas visíveis nas próximas coitadas páginas, às vezes mais delicado, pode ser mais redondinho ou mais quadradinho, inclinado para a direita, esquerda, ou altivo e altaneiro mantendo sua postura firmezinha...

    Desde a escolha da caneta - mais gordinha, mais magrinha, de ponta grossa ou fina, ponta mais ou menos - até o jeito como você escreve, o seu escrito à mão não pode ser copiado, é único, tem a sua identidade.

    Pensando em tudo isso, é razoável perguntar, em contrário, por que as pessoas cometem o pecado de preferir os meios eletrônicos ao tão mágico par da caneta e do papel, ao ato simplesmente delicioso de bordar uma página com seus escritos, seus pensamentos, através da  sua letra... Gente, é tão mais gostoso, tão mais humano escrever à mão!

    E, ah, meninos, peloamordeDeus, ou pelo meu, escrevam uma declaração de amor. Não custa nada, não é tão difícil. É só uma carta, pode ser breve como a mensagem acima, não precisa ser longa. Desenhe um coração todo torto, mas que seja seu. Deixe pingar na página toda a sua emoção, tudo o que tem dentro de si. Escreva com carinho, dê voltinhas nas letras, perfume a página, sei lá, seja criativo. E, ao mesmo tempo, tradicional. O romantismo não morreu, ainda, meus caros, bem como não fecharam-se as fábricas de canetas, lápis e papéis.