quarta-feira, 10 de junho de 2015

Entre a padronização e a diferença

                                                                    
                                                                 


    1.491.721 cirurgias plásticas no total, entre
    * 228.000 lipoaspirações
    * 226.000 implantes de silicone nos seios
    * 63.925 implantes de silicone nos glúteos
    * 77.224 cirurgias de correção do nariz
    * 8.319 transplantes de cabelo
    foram realizadas no Brasil - líder mundial na realização desse procedimento - no ano de 2013, de acordo com dados da Sociedade Internacional de Cirurgias Plástica Estética.

    Vamos conversar um pouquinho sobre isso?

    Os números assustam. Chocam até. Entre tanta gente que celebra - a existência na atualidade de recursos para as pessoas “consertarem” aquilo que não gostam em si mesmas e assim poderem viver melhor consigo; o fato de as pessoas terem acesso a esses recursos; das clínicas especializadas e dos cirurgiões se multiplicarem, muito satisfeitos pelos bolsões de dinheiro que ganham com isso - eu acredito que há mais razões para temor e reflexão nesses números do que para comemoração.

    A modernidade trouxe melhoras à vida das pessoas, mas também trouxe armadilhas. As mulheres (87, 2 % do total de pessoas que fizeram as tais cirurgias) não são mais escravas da casa ou dos maridos, mas são escravas do espelho - como eles também estão se tornando. Não vivemos mais cárceres políticos ou, em dominante escala, o cárcere da pobreza, mas vivemos uma aprisionamento que talvez seja pior - aquele psicológico, interior, incrivelmente mais sorrateiro e mais danoso e mais difícil de identificar como mais difícil de combater.

    Apesar de já haver uma melhora no quadro - dadas as mais frequentes presenças de, por exemplo, modelos plus size, “minorias” étnicas, religiosas, de orientação sexual, em suas telas e outdoors - a mídia ainda faz papel problemático na questão ao predominantemente escolher pessoas muito bonitas (num padrão e tipo comum, tradicional e muito específico de beleza) e aparentemente perfeitas para participar de suas exibições, sendo retratadas numa avalanche de positividade, como as gostosonas do pedaço, heroínas da vida que devem inspirar o restante de nós, reles mortais cheios de defeitos.

    A maioria das próprias pessoas que estão sob os holofotes não ajudam e - ao invés de terem ciência de seu lugar público, do poder que elas assim ganham de influenciar as massas e procurarem fazer algo bom desse seu poder -, por conta própria, fazem seu marketing-tipo, postando venenosas fotos de si mesmos enfocando aspectos belos e admiráveis de suas ilustres pessoas e da vida que levam, que seja seu corpo escultural (e como investe na melhora de seus já lindos traços em malhação) ou uma vestimenta bombástica ou a viagem dos sonhos que está fazendo a um lugar paradisíaco.

    (Engraçado, o que há de mais belo e admirável para mim numa pessoa é sua sensibilidade. E nós muito raramente vemos esses pobres coitados, temporárias estrelas sem real brilho, clicando si próprios em situações de aprimoramento e exercício dessa sensibilidade, como na calma leitura de um livro ou no singelo ato de cuidar de um jardim. Engraçado, não é?, como uma imagem de simples bom moço/boa moça não vende.)

    Mas, eu acredito, o maior problema não é esse. O maior problema não é algo externo, que vem a nós, pelo qual somos afetados; mas algo interno, que está em nós, parte de nós, e que nos permite sermos afetados. Pois, meu leitor, se todos tivéssemos consciência da grande palhaçada digna de desprezo que todo esse circo é, e das pessoas especiais que nós - reles mortais cheios de defeitos - somos, sem a necessidade de copiar ninguém, tudo isso seria sim lançado a nós, mas seria na mesma hora rebatido ou ignorado, sem gerar a menor inquietação. Tudo isso chegaria, pelo menos, fazendo bem mais fraco efeito do que o terremoto que causa hoje.

    Igualmente, é por esse problema de consciência que cada vez mais é difícil topar com alguém que tenha a configuração original de seus dentes. Na primeira oportunidade - muitas vezes sem necessidade, por pura estética - a pessoa os corrige, deixando-os alinhadinhos, perfeitinhos, normaizinhos.

    É por esse problema de consciência que o número de pessoas encaixadas na categoria dos depressivos só cresce. Ninguém tem mais direito a um pouquinho de tristeza. Ninguém parece perceber a simples verdade da vida de que todos inevitavelmente passamos por períodos e momentos muito bons, mais felizes, mais tranquilos, e por outros não tão bons assim, mais turbulentos, mais tristes, e que cada um de nós deveria poder ter tempo e espaço para desenvolver seus próprios jeitos de levar a vida, passando por cada um desses momentos da melhor forma possível, tendo maneiras de aproveitar ao máximo os primeiros, e mecanismos para lidar bem com os últimos. É questão de sabedoria. Não de medicação ou terapia.

    É por esse terrível problema de consciência, meu Deus, que cada vez mais crianças, cada vez mais cedo, são diagnosticadas com transtornos como hiperatividade, ansiedade, deficit de atenção. Qualquer agitaçãozinha maior da criança e os pais - tão pacientes com seus filhos - os levam logo ao especialista, que logo bate o martelo e, adivinhem, prescreve remédios.

    Como se houvesse um eixo de normalidade da qual aquela criança está se afastando perigosamente e ao qual precisa ser restituída. Como se as crianças sapecas não fossem aceitáveis, e até mais simpáticas, perto das quietinhas quietíssimas - aquelas que, certamente, todos desejamos. Como se cada uma não pudesse ter seu próprio tempo de aprendizado, não pudesse desenvolver-se plenamente em sua particularidade. Como se ninguém pudesse ser diferente.

    Por tudo isso, nós precisamos trabalhar essa consciência, resolver o problema - coisa que não que não pode ser feita com nenhum aparelho, terapia ou remédio. Precisamos desenvolver e deixar crescer, disseminar-se, uma maior aceitação de nós mesmos e dos outros, em sua completa singularidade, em seus defeitos e suas qualidades. 

    Precisamos largar essa noção besta de padronização, de adequação, de tentarmos “ser como fulano de tal”, pois “só quando tivermos um corpo igual a esse” seremos felizes. Precisamos aprender que não existe perfeição; todo mundo é imperfeito. E se o seu defeito não é aparente, isso não significa que ele não existe, só que é oculto. E esse oculto pode ser muito pior que o aparente.

    Precisamos aprender a viver a vida como ela é, sendo bem como nós somos, naturalmente, originalmente. Aprender a aproveitar melhor a era da liberdade que vivenciamos e toda a margem para diferença que ela dá. Uma diferença celebrável. Uma diferença preciosa.

    Meu recado por hoje é este, bem bobo mas surpreendentemente necessário: com narizes grandes ou pequenos, corpos magros ou não tão magros, olhos claros ou escuros, inteligência aguçadíssima ou um pouco lenta, que todos sejamos felizes. Felizes assim, bem como somos, sem cirurgicamente procurar mudar nada. A diferença é divertida, e não deve ser remediada. A diferença é uma benção. Pois, convenhamos, se toda gente fosse igual, o mundo seria muito sem graça...
   

Um comentário:

  1. Esse texto me lembrou de uma discussão que tivemos um dia a respeito da perda do sentimentalismo que estamos vivendo... Porque é justamente essa padronização e foco na beleza física que faz com que esqueçamos o que há de mais bonito em cada um: o mais que complexo universo interior.

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