quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Memória - pronome relativo

                                                                   


    Tem coisas que a gente nunca esquece, outras que não consegue lembrar. Tem gente que fica na memória da gente, outras que preferimos apagar. Tem momentos arrebatadoramente inesquecíveis, e aqueles outros que não são assim tão marcantes... A nossa memória é mesmo um fascinante mistério.

    E, curiosamente, é também muito maleável. Curiosamente porque, à primeira vista, ela é um registro seco, único, feito à caneta, que tão logo engrava-se no cérebro ou coração da gente, eterniza-se ali do jeitinho que foi feito, perene e estático, permanente. Pensando melhor, porém, vemos que, na verdade, o registro da memória é uma obra de arte completa - tem toda a graça e o encanto de uma, e também todos os seus defeitos.

    A memória é um escrito que pode ser apagado, alterado, rabiscado, e sofre borrões diversos ao longo do tempo. Como toda coisa viva, a nossa lembrança sofre metamorfoses. Passa por vários processos. Nasce, cresce - expande-se, encolhe-se ou estaciona-se - reproduz-se e morre. Morre morte súbita, de uma vez, ou vai deteriorando-se, empalidecendo, aos pouquinhos, lentamente. Torna-se menos clara, mais opaca. Ganha novas cores - às vezes pastéis, às vezes mais quentes e vivas. A memória é feita, refeita, desfeita, refeita de novo, configurada em diferentes momentos, como uma pintura de várias camadas. Camadas que às vezes vão se sobrepondo, às vezes vão se fundindo, em relação de oposição ou complemento...

    A memória é o tipo da coisa difícil de explicar e descrever, mas instintivamente fácil de entender e sentir. Pois, quem nunca experimentou a vaga tristeza de perceber aquele momento bom, lindo, maravilhoso que se viveu com alguém passar a ser lembrado, de uma hora para a outra, com menos suspiro e nostalgia e mais melancolia porque esse alguém que dividiu o momento contigo deixou de ser especial para se tornar uma mágoa, e assim acabou maculando todas as suas boas lembranças relacionadas a ele, aquelas das quais fez parte?

    E o contrário, também. Quem nunca fez positiva releitura de negativa experiência, e passou a considerar aquele período difícil, desagradável, doloroso como um momento importante da vida, necessário até? Isso acontece...

    Assim como outras reavaliações fundamentais também. Pense só, se a gente só lembrasse das belezas e delícias da infância, custaria a aceitar a passagem para a idade adulta, e todo jovem viveria a lamentá-la. Se a gente só lembrasse das qualidades do ex-namorado, seria muito difícil esquecê-lo. E esquecer também é muito saudável, esquecer pode ser muito bom. Se a gente não esquece e se liberta de algumas certas coisas e pessoas, é muito difícil seguir em frente. E todo mundo precisa seguir em frente. A nossa memória é também misteriosamente sábia...

    Você pode estar se perguntando por que o título do texto é “Memória - pronome relativo”. A parte do relativo, acredito, é fácil entender. A nossa memória, longe de ser estática e fixa, é viva e dinâmica, está em mutação e reescrita constante. (E, em termos de memória compartilhada, coletiva, basta perguntarmos para duas pessoas a lembrança que elas têm acerca de um mesmo evento para percebermos o quanto a memória não só altera-se continuamente como, às vezes, é pura questão de perspectiva. Ponto de vista.)

    A parte do pronome, por outro lado, pode parecer capciosa. Óbvia e oficialmente falando, “memória” é substantivo, palavra que delimita alguma coisa, dá nome a ela. No dicionário, “memória” realmente consta como substantivo. Mas, já que no reino das palavras - como naquele da memória - tudo é relativo, pode ser reinventado, então eu posso reinventá-las à minha maneira.

    Na minha maneira de ver, a memória não nasce nem existe por si só. Ela só tem sentido por que é parte de nós, que a temos, cuidamos dela, a reverenciamos. Nós, que com ela sentimos, nos emocionamos, lemos e analisamos o mundo. Necessariamente, a memória se refere a alguém, é parte de alguém, ou de vários alguéns. É uma projeção, pertence e diz respeito a “eu”, a “tu”, a “nós”, a “eles”. Sem “eu”, sem “tu”, sem “nós”, sem “eles”, o que é a memória? Uma linguagem esfumaçada que nada diz, um idioma que não se aprende... Palavras soltas de uma frase zonza, grãozinhos de poeira esparsos de uma escultura que... nem foi feita...

    Assim, eu a considero pronome. Pronome da gente, pronome de ser humano, de humanidade. Seguindo a gramática, dizemos que pronome é aquele que acompanha ou modifica, indica ou refere-se à um nome. A memória nos acompanha, nos modifica; a memória é uma representação da gente, tanto quanto a nossa expressão contida numa obra de arte. A memória é uma forma de existência indireta.

    Mas, principalmente, o pronome é aquele que substitui o nome, quando ele se torna repetitivo ou desnecessário, sua presença não mais cabível. E é aí que a memória é mais pronome que tudo. Quando a gente vai, só a memória fica.

    Memória - pronome relativo.

sábado, 22 de agosto de 2015

Nuvem

      Privilegiando a música brasileira hoje, trago o gaúcho Humberto Gessinger com uma dessas canções que têm o poder de embalar e ao mesmo tempo cutucar a gente, fazendo curiosas cócegas no pensamento.

                                                                  

      Insular é o primeiro álbum solo do líder dos Engenheiros do Hawaii, e traz tanto antigos sucessos quanto faixas inéditas, na mescla sempre sábia do velho com o novo.

       Pertencente ao grupo das antigas, "Nuvem" fala daquelas situações em que nós - seguindo umas filosofias cautelosas do tipo "é melhor não trocar o certo pelo duvidoso" ou "vamos deixar como está para ver como é que fica" - nos acomodamos a cenários já desgastados, que também já nos estão corroendo. Cenários dos quais precisamos nos desatar.
       
      Mudar é difícil, é incômodo, dá medo. Mudar sacode a gente; e depois de uma mudança, é normal perder o rumo, precisar recobrar o equilíbrio, avaliar sua posição e olhar bem em volta para achá-lo de novo. Mas, às vezes, a mudança é necessária. Às vezes, mais sábio é abrir mão do que já foi ou deveria ter ido e abrir-se para todo o novo que pode vir do que agarrar-se àquilo que nunca mais será como já foi, àquilo que não mais vale a pena. Insistir em continuar agarrado aquilo que claramente se esvai por seus dedos.

       Afinal, "a vida não pode ser um conta gotas na tua mão". Para podermos vivê-la como merece ser vivida, é sempre bom que tenhamos perto energias e pessoas e presenças e enredores que nos façam bem, que não nos amarrem, que não nos empaquem. Sobretudo, é sempre bom que nos deixemos livres, que libertemo-nos a nós mesmos quando a alma pede para ser libertada...

        Não vou falar mais. Deixemos que a voz sempre aconchegante de Humberto fale por nós.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Identidade

      
  Você já percebeu o quanto nós somos inquietos? Como nunca estamos satisfeitos com o que temos, a vida que levamos, o sucesso que já conquistamos? Como nada do que já fizemos até aqui parece o bastante e nós nunca paramos para celebrá-lo, e ao invés disso continuamos olhando sempre para frente, querendo mais?

    Eu acredito que esse seja um mal da modernidade - ou não da modernidade em si, mas dos valores e ideais que acabaram consolidando-se com ela. Pois, já que vivemos numa democracia, um sistema em que todos são iguais, têm o mesmo poder, um sistema meritocrático (sublinhem as aspas), em que todos temos a mesma chance de fazer algo de nós mesmos, realizar o nosso potencial, então quando não conseguimos, quando “não vencemos”, a culpa só pode ser toda nossa.

    Nossos parâmetros de sucesso e fracasso, fortuna e pobreza, grandeza e mediocridade são construções. Como todos os outros parâmetros, são relativos, réguas que adquirimos com base no que vemos e vivenciamos, quase sempre fazendo comparações, comparações entre grupos de iguais. Quero dizer, ninguém se considera menos rico ou mais pobre quando vê um certo Zuckerberg comprar uma nova mansão, ou todos os terrenos em volta de sua casa, para manter sua privacidade, porque ele não é nosso “igual”. Mas, quando um vizinho, de mesmo estilo de vida que o nosso, similar nível de renda e possibilidades, consegue um emprego melhor ou um aumento, nossa inveja não tarda a vir pinicar. A nos fazer pensar em jeitos de conseguir acompanhar os “avanços” do outro, e não ficar para trás.   

    E o que é que tudo isso tem a ver com identidade? Aparentemente nada, não é mesmo, já que estamos falando da inquietude que o querer mais nos traz, a constante insatisfação com o que temos e somos, justamente porque os objetos de desejo e os tipos mais prestigiados mudam e mudam e nós tolamente os seguimos, querendo ter e ser um a um, pensando que é com este que estaremos satisfeitos, o que nunca acontece...

    O que tudo isso tem a ver com identidade é o seguinte: já que, na teoria, tudo está nas nossas mãos, só depende de nós, para não precisar provar da culpa do fracasso, a gente se esforça cada vez mais e passa a topar qualquer parada para conseguir a atenção, o reconhecimento e respeito que estamos querendo receber, desejando merecer. O ser humano é carente e vaidoso, quer se sentir amado, respeitado (e de preferência superior a seus semelhantes). Ele quer ser aplaudido.

    E é exatamente aí que mora o perigo, e a tragédia. Pois, se para ter respeito você precisa embarcar na profissão do momento, aquela que promete mais altos níveis de cifrões e reverências em retorno; se para ter sucesso e visibilidade e prestígio como escritor, você precisa dar ao público o que ele quer ler, o que está vendendo (e assim também para artista de modo geral, seja músico, ator ou desenhista), então o jeito mais fácil de “chegar ao seu lugar ao sol”, ou sob a luz dos holofotes, é tornar-se mais uma moeda de troca nesse nosso comércio de almas: vender-se. Apagar o que há de mais especial em si mesmo, a sua identidade, sua individualidade; deixar de ser quem é para tornar-se... o que querem que você seja. Mais nada.

    É quando esse medo de ser um fracassado, e por sua própria conta, se torna avassalador que ele faz muitos de nós engolirmos princípios e reservas e passarmos por cima de nossos valores e da nossa identidade. É quando a vontade de ser amado e respeitado sobrepõe aquela de ser autêntico que nós passamos a dizer que é melhor ser um vitorioso sem identidade que um fracassado original. Que nós esquecemos que, mais importante do que atender aos padrões - que vivem mudando - de fracasso e sucesso é ser você mesmo, em primeiro e último lugar.

    Meu coração dói de constatar umas coisas dessas, e de ver quantas pessoas rendem-se, capitulam-se, aceitam que a correnteza carregue sua identidade em favor de aceitação e reconhecimento. E, ao mesmo tempo, ele resiste, faz seu motim, suscita suas perguntas impossíveis de reprimir: será que vale a pena um sucesso à qualquer custa? À custa da sua integridade? Será que é válido um empreendimento que não é verdadeiro, genuíno, que desrespeita os princípios daquele que o faz? Será que, por mais confortável que seja uma posição de prestígio, não é imensamente desconfortável o sopro da consciência no fundo que se revolta contra os artifícios usados no caminho até ali? E o arrependimento, no final, de perceber a própria vaziez? Será que, realmente, os fins justificam os meios? Quaisquer que sejam esses meios? E quaisquer que sejam esses fins, mesmo vazios de qualquer valor; fins que, por si mesmos, não se justificam? Quero dizer, desde quando sucesso é um objetivo por si só, e não uma consequência?

    O mundo muda o tempo todo, e são justamente as pessoas que mudam o mundo e as outras pessoas. Mas, será que não é melhor ser um novo tipo de modelo ao invés de encaixar-se no já existente? Será que a melhor vitória não é aquela que alcança-se sendo fiel a si mesmo, jogando limpo o tempo inteiro? Até que ponto nós estamos dispostos a ir para conseguir aplausos, e até que ponto que, dados os sacrifícios que são feitos na jornada até ele, mesmo o conceito social de sucesso não pode ser relativizado? E de “mérito” também?

    De minha parte, eu creio que não conseguiria viver comigo mesma se me tornasse outra pessoa para ser aplaudida. Prefiro fazer as coisas do meu jeito, seguindo o que eu acredito, independentemente do retorno que tiver, do que conseguir este por um preço muito alto, alto demais. Porque menos importa o destino do que a caminhada. Menos a festa de encerramento do que o todo dia, em sua lenta e alegre marcha, cada um após o outro. Menos o resultado do que o processo - e os nossos sentimentos e vivências ao longo todo dele.

    Prefiro ser alguém - eu mesma, constantemente, seguramente, em qualquer nível de aceitação e popularidade - do que nadar conforme a onda e, a todo momento sendo pessoa diferente, não ser ninguém na verdade. É melhor ser você mesmo do que não ser ninguém. Não ter rosto, individualidade, marca registrada. Ter sucesso e não ter... identidade.
   

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Homens e homens

                                                           
  
   O que faz um homem homem? Literalmente falando, é o tal do cromossomo Y, que todos eles ganham de seu pai quando ainda estão em estágio de pré-produção, certo?
  
    Certo. Mas, agradeçamos a existência da linguagem figurada, porque eu sou grande desconhecedora dos mistérios da genética, e não é nesse sentido que eu venho falar de homens hoje. Pois, um homem de verdade é muito mais do que apenas um indivíduo do sexo masculino.
  
    Homem não é aquele que briga, é aquele que conversa.

    Homem não é aquele que esbraveja, mas que expõe.
  
    Homem não é aquele que ordena, mas que pede.
  
    Homem não é aquele que parte para cima. É aquele que senta e põe as cartas na mesa.
  
    Homem não é aquele que dirige, mas que coopera.
  
    Não é aquele que precisa sempre ter as rédeas na mão, mas que também sabe se deixar ser conduzido quando não conhece o caminho. Sobretudo, é aquele que sabe conduzir em conjunto.
  
    Homem não é aquele que valoriza sua imagem e faz tudo por ela, tornando-se dela escravo exibido. É aquele que a constrói e zela por ela naturalmente, sem nem perceber.
  
    Homem não é aquele que nunca precisa de ajuda. É aquele que sabe que precisa, e não tem medo de pedir por ela.
  
    Homem não é aquele que não admite rebaixar-se a fazer trabalhos que - acha - o diminuem. É aquele que se abaixa, sim, monta e desmonta, cava a terra, planta a semente, recolhe o lixo, colhe o resultado.
  
    Homem de verdade é aquele que não tem medo ou vergonha de sujar as mãos. Aquele que sabe que não existe trabalho que seja degradante.
  
    Homem não é aquele que - falando em trabalho - ajuda a mãe, irmã ou esposa no serviço doméstico. É aquele que divide com quem quer que seja o trabalho.
  
    Homem não é aquele que não chora. É aquele que chora.
  
    Homem não é aquele que é sempre forte, inabalável. É aquele que sabe que até as mais sólidas rochas se desgastam e sofrem dores e danos. É aquele que não se envergonha em mostrar-se fraco, e não esconde ou enterra as suas fraquezas.
  
    Homem não é aquele que se mede pelo tamanho, mas pela grandeza.
  
    Homem de verdade é aquele que adquire maturidade e discernimento sem, contudo, deixar de ter a leveza que existe em um menino.
  
    Homem não é aquele de ferro, que não se machuca. É aquele que não tem medo de se machucar. E, machucado, não oculta suas feridas como dignas de vergonha.
  
    Homem de verdade não é aquele que suporta qualquer dor calado e sozinho, e a desvela das maneiras mais intempestivas. É aquele que, de seu modo, fala e pede apoio. Aquele que não se impede de falar que certas dores não passam sem doer.
  
    Homem não é aquele que incessantemente insiste. É aquele que sabe ouvir um não.
  
    Homem não é aquele que acredita dever fazer de todas as suas vontades uma lei a ser cumprida. É aquele que sabe que não é o centro do mundo, avalia consigo a razoabilidade de sua vontade. É aquele que sabe desistir.
  
    Homem não é aquele que precisa estar sempre perto. É aquele que sabe a importância da distância. E que, na distância, confia.
  
    Homem não é aquele que sai, sem fazer barulho, na mais simples ou complicada das situações. É aquele que fica. É aquele que não foge. Aquele que fala e ouve, argumenta e discute, apoia e pede apoio, sabe fazer seu barulho quando necessário e sabe calar quando a caravana do silêncio pede sua sábia passagem.
  
    Homem não é aquele que orgulha-se em ser um persistente tormento. É aquele que sabe também ser calmaria. Homem de verdade é aquele que cuida.
  
    Homem não é aquele que está sempre certo. É aquele que admite-se errado, confessa seu erro.
  
    Homem não é aquele que sabe de tudo. É aquele que não tem receio de admitir sua ignorância.
  
    Homem não é aquele necessariamente bem relacionado, que está em todos os grupos. É aquele que, às vezes, prefere estar sozinho.
  
    Não é aquele que somente trabalha o seu corpo, mas, principalmente, aprimora sua alma. Homem de verdade é aquele que possui consigo as várias espécies de sensibilidade.
  
    Homem não é aquele que faz jogos, mas que joga limpo.
  
    Homem é aquele que esclarece, sem iludir nem desiludir. Homem de verdade não faz vazios discursos. Ele respeita, expõe abertamente.
  
    Homem de verdade não é aquele, porém, somente de palavra. É, sobretudo, aquele de ação.
  
    Homem não é aquele que promete um mar de rosas. É aquele que tem a sensatez de saber e a coragem de dizer que não existem rosas sem espinhos, nem mares sem tempestades ou ondas turbulentas.
  
    Homem, aliás, não é aquele que muito promete. É aquele que cumpre.
  
    Homem de verdade não é aquele que faz espetáculo para mostrar-se macho, mas aquele que o é e demonstra na solidez de sua postura e, às vezes, de seu silêncio.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

As pessoas não podem ser incomodadas

                
   
    Há alguns dias, um prosaico incidente se sucedeu à minha volta num avião e me deu muito no que pensar. Estava num vôo de Brasília a Belo Horizonte - vôo bastante curto, que não completa uma hora -, sentada à janela, com dois homens ao meu lado, homem  n°1 adulto, imediatamente à minha direita, e homem n° 2, um rapaz de no máximo vinte anos, no assento seguinte, do corredor. Aconteceu que atrás de nós estava uma pequena família de duas simpáticas meninas gêmeas, de uns quatro anos, e seu pai.

    Na metade inicial da jornada, tudo esteve bem. As menininhas, deslumbradas com a primeira experiência, especulavam sobre como estavam altas, à qual altura deviam estar, por que dali de cima o céu não parecia azul (estava nublado) e qual seria o material que faz uma nuvem.
   
    - Será que é tipo algodão doce?

    - Hmm. Devia ser, seria bom se fosse. A gente não consegue abrir a janela pra ver? Tenta aí.

    (Menina tentando)

    - Pai, a gente não pode subir essa janelinha também?

    - ...

    - Por que a telinha pode subir se o vidro não? Não tem graça.

    - Acho que não a janela não abre. É melhor você parar de tentar, vai que estraga. E nem precisa pegar ela pra saber direito. Olha só. Quando ela chega perto, dá pra ver que parece uma fumaça.

    - Não, não é fumaça, boba. Fumaça é cinza, não é branquinha assim. E fumaça voa no ar, essa aí não tá voando. É porque é nuvem, nuvem não voa. Acho que tá mais pra um algodão doce ralo.

    Debateram também sobre a bonita revista atrás do banco, pra que serviriam as mesinhas que abriam, a maquiagem feia das moças feias, e, ocasionalmente, balançavam as pernas na alegria de sua infância, desferindo suaves golpes contras as minhas costas e as do sério homem n°1, que parecia não gostar. Eu não estava me importando, acompanhava o diálogo delas achando graça, lembrando como é bom ser criança, ver a novidade das coisas, poder falar o que vem na cabeça, inclusive sobre as atenciosas aeromoças.

    Na segunda parte da viagem, tudo se intensificou. A excitação das meninas passou e elas ficaram realmente agitadas, sacudindo nossa fileira, sem perceber chutando-nos com uma dignidade própria de karatekas experientes. 

    - Pai, já estamos chegando?

    - Vai demorar muito pra descer? Pai, eu quero descer logo.

    - Já está na hora de chegar?

    - ...

    O sério homem ao meu lado foi ficando irritado, e, em certo ponto, gentilmente me perguntou assim “moça, está te incomodando muito? Se estiver me fala, que eu vou pedir pra elas pararem.” Eu agradeci com educação, mas declinei sua proposta e sorri com ironia. Se eu estivesse muito incomodada, eu mesma poderia falar alguma coisa. Mas eu não estava me incomodando, estava me divertindo, apesar dos pontapés. Se era ele quem se sentia tão intensamente amolado, podia ter dito por si mesmo, por que não disse nada? Não disse, e permaneceu sério, irritado, insatisfeito.

    Eu tomei um momento para espiar o terceiro integrante da nossa fila, o jovem. Ele estava sentado em posição desleixada, escorregado pelo banco, com os braços cruzados, uma mochila sobre as pernas dobradas, e exalando um azedume tão grande quanto o do homem n°1. Resmungava "tsk, tsk", mostrava por modos guturais, faciais e sonoros que não estava feliz com a situação, e ainda assim não pôde levantar-se, se queixar diretamente às meninas, pedir que parassem. Calou-se, como o homem n°1, ainda que imensuravelmente incomodado. No desembarque, uns quebrados de quarto de hora depois, ouvi-o falando com uns colegas. “Elas não calavam a boca, nem paravam de chutar. Insuportável.”  Tudo isso me fez atinar para duas verdades seríssimas do nosso cenário, duas deficiências que acometem-nos calamitosamente: as pessoas não podem ser incomodadas. E, quando incomodadas, são hipocritamente passivas, se calam.

    O primeiro dos aforismos acima sintetiza bem um mal do tempos de hoje: somos mimados, acostumados a um conforto extremo, à sublime necessidade de uma comodidade além da necessária, e não sabemos lidar amigavelmente com um mínimo incômodo, que seja a perguntação de uma criança, um cheiro diferente na sala de aula, escadas para subir quando o elevador está em manutenção ou a ocasional jurássica vagareza da internet, quando congestionada.  A nossa geração cresceu tão almofadada, cercada de agrados, confortos e praticidades por todos os lados, que se tornou fresca, sensível demais a qualquer coisa que minimamente lembre um aborrecimento. Para nós, tudo é amolação, e não podemos suportar com alegria parte ínfima dela, nem mesmo por alguns vinte minutos de viagem.

    E quem disse que as crianças eram amolação, afinal? É natural dessa idade a inquietação, a espontaneidade, a energia. Por que ninguém se lembra disso? Por que ninguém sabe rir disso? Levar a circunstância com bom-humor? Por que as pessoas estão sempre tão azedas? E tão nervosas, sempre no limite de suas paciências? E ninguém mais parece ouvir as crianças... Não é à toa que nos tornamos uma civilização tão séria, e tão aborrecida.

    Quanto ao silêncio dos homens frente ao “desagrado”, ao “incômodo” que enfrentavam, foi o que mais me irritou. E muito me entristeceu perceber que era apenas uma amostra de um mal maior. É uma síndrome tipicamente brasileira: todos sabem o que está errado, mas ninguém faz nada. Somos acomodados demais.

     Quando incomodados, o máximo que fazemos - e como fazemos bem - é comentar e resmungar, entre nós mesmos, e não tomamos a iniciativa de fazer cessar o incômodo. Ao invés disso, nos calamos, e aprendemos a conviver com ele, resmungando. Nos falta reação. É por isso que a minha rua de pedra não foi asfaltada até hoje, e provavelmente não será num futuro próximo. Os moradores se cutucam na rua, os compadres em seu churrascos, comentam e reclamam, mas não têm a decência de tomar uma atitude. De bater na secretaria de obras e perguntar onde está a secretaria de obras e o que pode fazer pelo trágico estado em que a rua está. De realmente tentar resolver o problema.

    É por isso que o país continua desse jeito, assolado por corrupção em dose intragável, por grave crise de representatividade política, por inúmeras carências sociais. Nós fomos às ruas e falamos tanta coisa que, no fim das contas, acabamos por não fazer nada. Nos perdemos em tantas reivindicações, tantos gritos indignados, e não fizemos realmente uma diferença. Nossas reclamações acabaram sendo só isso, reclamações. Não são atitudes, caminhos para mudança, saídas para o problema. São resmungos que se perdem no vento, e não adiantam nada.

    Estou falando, mas reconheço e admito que sou igualmente culpada desses pecados, o da negligência, da apatia face à um problema sério, ou a um pequeno incômodo. E do crime da intolerância, também, vez ou outra. Tanto é que não estou aguentando o brilho dessa tela do computador que faz arder meus lindos olhos. E venho reclamar ao senhor leitor, que não tem absolutamente nada com isso e nem pode me ajudar a consertar a situação.

    Estou falando, e pedindo a todos, inclusive a mim mesma, que pensemos. Porque é doído pertencer à uma nação que é conservadora não porque tem medo de mudança, mas porque tem preguiça de pensar em uma rota alternativa e de arrumar jeitos para colocá-la em prática. Que não tem iniciativa para pôr a mão na massa e aplicar um novo modo de fazer, mesmo sabendo que este está errado.

    Ah, estou reclamando muito. Acho que estou incomodada demais com tanto marasmo - e com duas pessoas guturalmente chiando durante vinte minutos por conta da agitação de duas alegres crianças. É melhor deixar pra lá. Não tem conserto, ninguém vai fazer nada mesmo. Ou vai?

sábado, 1 de agosto de 2015

Cantando de sonhos

      De volta com a canção do sábado, a de hoje é bastante especial. Eu queria colocar algo que combinasse com o texto de quarta-feira, com o astral dos sonhos, a energia do sonhador. Achei!

                                                                 

      Da série Glee - que conta histórias de pessoas que ousaram acreditar - vai essa música, que eu dedico a todos os sonhadores natos. A todos que não têm medo de sujar as mãos, colocando-as na massa, e que têm a coragem de fazê-la com carinho e paciência e esperá-la crescer, mesmo quando há observadores (sem a mesma ousadia ou coragem) sussurando que vai dar tudo errado.
      A todos que já tiveram que ouvir algo como "por que você se importa tanto com esse jornalzinho da escola? Ninguém lê!" ou "onde você acha que vai chegar com essa companhia de teatro da cidade? Na Broadway? Acorda, colega".
      A todas essas pessoas, como a mim mesma, eu digo: leia a letra da música. E não desanime. Não permita que a pequenez de outras pessoas abafe a sua grandeza. Esse é o pior dos fracassos.
      Sonhos são assim chamados por uma razão. Eles levam tempo, e não são fáceis de conquistar. Mas só colhe a flor mais bela no cume da montanha quem não tem medo de chegar lá, quem arrisca a partida. E tem boa resistência contra os reveses do caminho.