quarta-feira, 5 de agosto de 2015

As pessoas não podem ser incomodadas

                
   
    Há alguns dias, um prosaico incidente se sucedeu à minha volta num avião e me deu muito no que pensar. Estava num vôo de Brasília a Belo Horizonte - vôo bastante curto, que não completa uma hora -, sentada à janela, com dois homens ao meu lado, homem  n°1 adulto, imediatamente à minha direita, e homem n° 2, um rapaz de no máximo vinte anos, no assento seguinte, do corredor. Aconteceu que atrás de nós estava uma pequena família de duas simpáticas meninas gêmeas, de uns quatro anos, e seu pai.

    Na metade inicial da jornada, tudo esteve bem. As menininhas, deslumbradas com a primeira experiência, especulavam sobre como estavam altas, à qual altura deviam estar, por que dali de cima o céu não parecia azul (estava nublado) e qual seria o material que faz uma nuvem.
   
    - Será que é tipo algodão doce?

    - Hmm. Devia ser, seria bom se fosse. A gente não consegue abrir a janela pra ver? Tenta aí.

    (Menina tentando)

    - Pai, a gente não pode subir essa janelinha também?

    - ...

    - Por que a telinha pode subir se o vidro não? Não tem graça.

    - Acho que não a janela não abre. É melhor você parar de tentar, vai que estraga. E nem precisa pegar ela pra saber direito. Olha só. Quando ela chega perto, dá pra ver que parece uma fumaça.

    - Não, não é fumaça, boba. Fumaça é cinza, não é branquinha assim. E fumaça voa no ar, essa aí não tá voando. É porque é nuvem, nuvem não voa. Acho que tá mais pra um algodão doce ralo.

    Debateram também sobre a bonita revista atrás do banco, pra que serviriam as mesinhas que abriam, a maquiagem feia das moças feias, e, ocasionalmente, balançavam as pernas na alegria de sua infância, desferindo suaves golpes contras as minhas costas e as do sério homem n°1, que parecia não gostar. Eu não estava me importando, acompanhava o diálogo delas achando graça, lembrando como é bom ser criança, ver a novidade das coisas, poder falar o que vem na cabeça, inclusive sobre as atenciosas aeromoças.

    Na segunda parte da viagem, tudo se intensificou. A excitação das meninas passou e elas ficaram realmente agitadas, sacudindo nossa fileira, sem perceber chutando-nos com uma dignidade própria de karatekas experientes. 

    - Pai, já estamos chegando?

    - Vai demorar muito pra descer? Pai, eu quero descer logo.

    - Já está na hora de chegar?

    - ...

    O sério homem ao meu lado foi ficando irritado, e, em certo ponto, gentilmente me perguntou assim “moça, está te incomodando muito? Se estiver me fala, que eu vou pedir pra elas pararem.” Eu agradeci com educação, mas declinei sua proposta e sorri com ironia. Se eu estivesse muito incomodada, eu mesma poderia falar alguma coisa. Mas eu não estava me incomodando, estava me divertindo, apesar dos pontapés. Se era ele quem se sentia tão intensamente amolado, podia ter dito por si mesmo, por que não disse nada? Não disse, e permaneceu sério, irritado, insatisfeito.

    Eu tomei um momento para espiar o terceiro integrante da nossa fila, o jovem. Ele estava sentado em posição desleixada, escorregado pelo banco, com os braços cruzados, uma mochila sobre as pernas dobradas, e exalando um azedume tão grande quanto o do homem n°1. Resmungava "tsk, tsk", mostrava por modos guturais, faciais e sonoros que não estava feliz com a situação, e ainda assim não pôde levantar-se, se queixar diretamente às meninas, pedir que parassem. Calou-se, como o homem n°1, ainda que imensuravelmente incomodado. No desembarque, uns quebrados de quarto de hora depois, ouvi-o falando com uns colegas. “Elas não calavam a boca, nem paravam de chutar. Insuportável.”  Tudo isso me fez atinar para duas verdades seríssimas do nosso cenário, duas deficiências que acometem-nos calamitosamente: as pessoas não podem ser incomodadas. E, quando incomodadas, são hipocritamente passivas, se calam.

    O primeiro dos aforismos acima sintetiza bem um mal do tempos de hoje: somos mimados, acostumados a um conforto extremo, à sublime necessidade de uma comodidade além da necessária, e não sabemos lidar amigavelmente com um mínimo incômodo, que seja a perguntação de uma criança, um cheiro diferente na sala de aula, escadas para subir quando o elevador está em manutenção ou a ocasional jurássica vagareza da internet, quando congestionada.  A nossa geração cresceu tão almofadada, cercada de agrados, confortos e praticidades por todos os lados, que se tornou fresca, sensível demais a qualquer coisa que minimamente lembre um aborrecimento. Para nós, tudo é amolação, e não podemos suportar com alegria parte ínfima dela, nem mesmo por alguns vinte minutos de viagem.

    E quem disse que as crianças eram amolação, afinal? É natural dessa idade a inquietação, a espontaneidade, a energia. Por que ninguém se lembra disso? Por que ninguém sabe rir disso? Levar a circunstância com bom-humor? Por que as pessoas estão sempre tão azedas? E tão nervosas, sempre no limite de suas paciências? E ninguém mais parece ouvir as crianças... Não é à toa que nos tornamos uma civilização tão séria, e tão aborrecida.

    Quanto ao silêncio dos homens frente ao “desagrado”, ao “incômodo” que enfrentavam, foi o que mais me irritou. E muito me entristeceu perceber que era apenas uma amostra de um mal maior. É uma síndrome tipicamente brasileira: todos sabem o que está errado, mas ninguém faz nada. Somos acomodados demais.

     Quando incomodados, o máximo que fazemos - e como fazemos bem - é comentar e resmungar, entre nós mesmos, e não tomamos a iniciativa de fazer cessar o incômodo. Ao invés disso, nos calamos, e aprendemos a conviver com ele, resmungando. Nos falta reação. É por isso que a minha rua de pedra não foi asfaltada até hoje, e provavelmente não será num futuro próximo. Os moradores se cutucam na rua, os compadres em seu churrascos, comentam e reclamam, mas não têm a decência de tomar uma atitude. De bater na secretaria de obras e perguntar onde está a secretaria de obras e o que pode fazer pelo trágico estado em que a rua está. De realmente tentar resolver o problema.

    É por isso que o país continua desse jeito, assolado por corrupção em dose intragável, por grave crise de representatividade política, por inúmeras carências sociais. Nós fomos às ruas e falamos tanta coisa que, no fim das contas, acabamos por não fazer nada. Nos perdemos em tantas reivindicações, tantos gritos indignados, e não fizemos realmente uma diferença. Nossas reclamações acabaram sendo só isso, reclamações. Não são atitudes, caminhos para mudança, saídas para o problema. São resmungos que se perdem no vento, e não adiantam nada.

    Estou falando, mas reconheço e admito que sou igualmente culpada desses pecados, o da negligência, da apatia face à um problema sério, ou a um pequeno incômodo. E do crime da intolerância, também, vez ou outra. Tanto é que não estou aguentando o brilho dessa tela do computador que faz arder meus lindos olhos. E venho reclamar ao senhor leitor, que não tem absolutamente nada com isso e nem pode me ajudar a consertar a situação.

    Estou falando, e pedindo a todos, inclusive a mim mesma, que pensemos. Porque é doído pertencer à uma nação que é conservadora não porque tem medo de mudança, mas porque tem preguiça de pensar em uma rota alternativa e de arrumar jeitos para colocá-la em prática. Que não tem iniciativa para pôr a mão na massa e aplicar um novo modo de fazer, mesmo sabendo que este está errado.

    Ah, estou reclamando muito. Acho que estou incomodada demais com tanto marasmo - e com duas pessoas guturalmente chiando durante vinte minutos por conta da agitação de duas alegres crianças. É melhor deixar pra lá. Não tem conserto, ninguém vai fazer nada mesmo. Ou vai?

2 comentários:

  1. Nossa, nunca tinha pensado por esse viés. Obrigado pela proposta de reflexão. Gostei bastante do texto. Principalmente do final, soou como um desafio. :3

    ResponderExcluir
  2. Obrigada, Léo! Fico muito feliz que tenha gostado!
    E topa o desafio? Acredito que cabe a nós, que somos jovens, ser a mudança que queremos ver no mundo...

    ResponderExcluir