quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Identidade

      
  Você já percebeu o quanto nós somos inquietos? Como nunca estamos satisfeitos com o que temos, a vida que levamos, o sucesso que já conquistamos? Como nada do que já fizemos até aqui parece o bastante e nós nunca paramos para celebrá-lo, e ao invés disso continuamos olhando sempre para frente, querendo mais?

    Eu acredito que esse seja um mal da modernidade - ou não da modernidade em si, mas dos valores e ideais que acabaram consolidando-se com ela. Pois, já que vivemos numa democracia, um sistema em que todos são iguais, têm o mesmo poder, um sistema meritocrático (sublinhem as aspas), em que todos temos a mesma chance de fazer algo de nós mesmos, realizar o nosso potencial, então quando não conseguimos, quando “não vencemos”, a culpa só pode ser toda nossa.

    Nossos parâmetros de sucesso e fracasso, fortuna e pobreza, grandeza e mediocridade são construções. Como todos os outros parâmetros, são relativos, réguas que adquirimos com base no que vemos e vivenciamos, quase sempre fazendo comparações, comparações entre grupos de iguais. Quero dizer, ninguém se considera menos rico ou mais pobre quando vê um certo Zuckerberg comprar uma nova mansão, ou todos os terrenos em volta de sua casa, para manter sua privacidade, porque ele não é nosso “igual”. Mas, quando um vizinho, de mesmo estilo de vida que o nosso, similar nível de renda e possibilidades, consegue um emprego melhor ou um aumento, nossa inveja não tarda a vir pinicar. A nos fazer pensar em jeitos de conseguir acompanhar os “avanços” do outro, e não ficar para trás.   

    E o que é que tudo isso tem a ver com identidade? Aparentemente nada, não é mesmo, já que estamos falando da inquietude que o querer mais nos traz, a constante insatisfação com o que temos e somos, justamente porque os objetos de desejo e os tipos mais prestigiados mudam e mudam e nós tolamente os seguimos, querendo ter e ser um a um, pensando que é com este que estaremos satisfeitos, o que nunca acontece...

    O que tudo isso tem a ver com identidade é o seguinte: já que, na teoria, tudo está nas nossas mãos, só depende de nós, para não precisar provar da culpa do fracasso, a gente se esforça cada vez mais e passa a topar qualquer parada para conseguir a atenção, o reconhecimento e respeito que estamos querendo receber, desejando merecer. O ser humano é carente e vaidoso, quer se sentir amado, respeitado (e de preferência superior a seus semelhantes). Ele quer ser aplaudido.

    E é exatamente aí que mora o perigo, e a tragédia. Pois, se para ter respeito você precisa embarcar na profissão do momento, aquela que promete mais altos níveis de cifrões e reverências em retorno; se para ter sucesso e visibilidade e prestígio como escritor, você precisa dar ao público o que ele quer ler, o que está vendendo (e assim também para artista de modo geral, seja músico, ator ou desenhista), então o jeito mais fácil de “chegar ao seu lugar ao sol”, ou sob a luz dos holofotes, é tornar-se mais uma moeda de troca nesse nosso comércio de almas: vender-se. Apagar o que há de mais especial em si mesmo, a sua identidade, sua individualidade; deixar de ser quem é para tornar-se... o que querem que você seja. Mais nada.

    É quando esse medo de ser um fracassado, e por sua própria conta, se torna avassalador que ele faz muitos de nós engolirmos princípios e reservas e passarmos por cima de nossos valores e da nossa identidade. É quando a vontade de ser amado e respeitado sobrepõe aquela de ser autêntico que nós passamos a dizer que é melhor ser um vitorioso sem identidade que um fracassado original. Que nós esquecemos que, mais importante do que atender aos padrões - que vivem mudando - de fracasso e sucesso é ser você mesmo, em primeiro e último lugar.

    Meu coração dói de constatar umas coisas dessas, e de ver quantas pessoas rendem-se, capitulam-se, aceitam que a correnteza carregue sua identidade em favor de aceitação e reconhecimento. E, ao mesmo tempo, ele resiste, faz seu motim, suscita suas perguntas impossíveis de reprimir: será que vale a pena um sucesso à qualquer custa? À custa da sua integridade? Será que é válido um empreendimento que não é verdadeiro, genuíno, que desrespeita os princípios daquele que o faz? Será que, por mais confortável que seja uma posição de prestígio, não é imensamente desconfortável o sopro da consciência no fundo que se revolta contra os artifícios usados no caminho até ali? E o arrependimento, no final, de perceber a própria vaziez? Será que, realmente, os fins justificam os meios? Quaisquer que sejam esses meios? E quaisquer que sejam esses fins, mesmo vazios de qualquer valor; fins que, por si mesmos, não se justificam? Quero dizer, desde quando sucesso é um objetivo por si só, e não uma consequência?

    O mundo muda o tempo todo, e são justamente as pessoas que mudam o mundo e as outras pessoas. Mas, será que não é melhor ser um novo tipo de modelo ao invés de encaixar-se no já existente? Será que a melhor vitória não é aquela que alcança-se sendo fiel a si mesmo, jogando limpo o tempo inteiro? Até que ponto nós estamos dispostos a ir para conseguir aplausos, e até que ponto que, dados os sacrifícios que são feitos na jornada até ele, mesmo o conceito social de sucesso não pode ser relativizado? E de “mérito” também?

    De minha parte, eu creio que não conseguiria viver comigo mesma se me tornasse outra pessoa para ser aplaudida. Prefiro fazer as coisas do meu jeito, seguindo o que eu acredito, independentemente do retorno que tiver, do que conseguir este por um preço muito alto, alto demais. Porque menos importa o destino do que a caminhada. Menos a festa de encerramento do que o todo dia, em sua lenta e alegre marcha, cada um após o outro. Menos o resultado do que o processo - e os nossos sentimentos e vivências ao longo todo dele.

    Prefiro ser alguém - eu mesma, constantemente, seguramente, em qualquer nível de aceitação e popularidade - do que nadar conforme a onda e, a todo momento sendo pessoa diferente, não ser ninguém na verdade. É melhor ser você mesmo do que não ser ninguém. Não ter rosto, individualidade, marca registrada. Ter sucesso e não ter... identidade.
   

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