quarta-feira, 13 de julho de 2016

Lições do renascimento

                                                             
                                                              
    Ah, minhas leituras acadêmicas! Elas furtam-me das minhas leituras literárias e dos escritos literários... Aliás, dos escritos todos − ou nem todos já que este está aqui. Mas elas fazem-me pensar. Cobram tributo do meu tempo, mas dão recibo em pensamento. Acho que está valendo.

    Dia desses, li cousa muito bonita, que me levou a pensar muito além da nuvem acadêmica. Um autor que gigantescamente me agrada, Peter Burke, ao perguntar sobre os possíveis porquês de a Itália ter sido o berço do renascimento, diz que um destes está no desprendimento italiano ao gótico. Ou seja, a arte na terra da bota desenvolveu-se magnífica, intensa e vastamente para frente porque tinha-se ligado menos aferrada e intimamente ao que houvera antes.

    Se não é isto uma escultura em palavras de uma verdade dispersa e opaca na realidade, nos corações e nas mentes da gente!

    Sempre pensando nesse respeito, não tinha até essa leitura tido sobre ele um estalo de compreensão tão claro, tão preciso. Só abre-se para receber (ou dar) abraço apertado e caloroso do futuro quem despediu-se bem resolvido e leve do passado. E só se põe nesse movimento também quem está inteiramente inteiro, em um único e concentrado pedaço, presente no presente.

    Cada vez mais acredito que esse é um dos mais importantes e decisivos − e talvez por isso mesmo um dos mais difíceis − desafios da nossa existência: aprender a lidar com essa belezinha mágica, linda, temperamental, esquiva e pirracenta que é o tempo. O tempo em suas várias esferas, seus vários planos, seus vários volumes e suas várias arestas.

    O tempo do relógio das obrigações; o tempo do calendário, das metas e dos balanços; o tempo do agora e das livres borboletas; o tempo dos corações, dos ferimentos e das cicatrizes; o tempo da realidade social da qual somos pequenina e vital partícula; o tempo da vida da gente, da história de cada um de nós. O tempo de lembrar, o tempo de esquecer, o tempo de somente - sem pensar - sentir e viver. O tempo: passado, presente e - quem sabe? - futuro.

    Mais especificamente falando do casamento entre o tempo do qual temos flutuante sensação de certeza (passado) e aquele que nos instiga perpétua certeza de dúvida (futuro), creio que, como em todas as relações, deve-se procurar aí um equilíbrio. Como nos chama a pensar Peter Burke, é preciso desvencilhar-se das sedutoras e confortáveis chamadas do passado para jogar-se nos braços do futuro, e vivê-lo magnificamente. É preciso, caso necessário, deixar morrer a morte do medíocre para viver o renascimento do sublime.

    Do contrário, corre-se o risco de prender-se ao passado numa amarra cega e fazê-lo durar mais tempo do que deveria. Corre-se o risco de - ao estar voluntária e conscientemente amarrado e vendado - não ver passar um futuro e um presente que... ó! passaram. Num instantinho terão passado. Serão passado, sem que nada de lindo se tenha feito deles, sem que nenhuma intensa vida se tenha vivido. Serão um passado que se acumulará pesado nas costas, como um fardo, fardo que grande tem volume, sem nenhum valor.

    Por outro lado, é também preciso deixar na ponta dos dedos, ao alcance dos olhos, alguns nós bem atados do passado, para jamais nos permitimos esquecê-lo por completo. Pois, quem se liberta muito rebelde e radicalmente do passado, torna-se justamente refém dele. Comete sempre os mesmos erros, cai sempre nas mesmas armadilhas, vagueia sempre pelos mesmos caminhos. Quem extremisticamente se desgarra, realisticamente se agarra. Empaca.

    Em suma, é preciso andar pra frente, ser para frente, fazer para frente. A fênix é parte de nós, o renascimento chama, é preciso renascer. E para tal, é mister esquecer e deixar o passado passar, ir descansar bem calminho nas profundezas de sua lápide. Contudo, não se pode querer demolir essa lápide para substituí-la por qualquer comum e virgem pedra. É para o fundamental ato de lembrar que servem as necessárias inscrições esculpidas na lápide.

    Todavia, acima de qualquer coisa, antes de tudo e de mais nada, não podemos deixar que passado e futuro em seu cabo de guerra, sua sedução altamente persuasiva pelos sussurros da lembrança e do projeto, vençam o apelo do presente e façam-no mumificado pelas cordas do devaneio.

    É preciso fazer do frustrantemente fugaz momento presente uma atração inelutável e perpétua. Um vício, sanado e alimentado contínua e constantemente, sem fim. É preciso sim, como nos dizem os sábios conselheiros num já muito sabido conselho, viver intensamente o agora. Viver intensa, descarada, exaltada, atrevida, curiosa, sedenta e regaladamente o presente. Ser insaciável por ele e fartar-se dele na mais indiscreta gula, na mais declarada paixão.

    Como não me deixam esquecer minhas volumosas leituras acadêmicas...
   

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