quarta-feira, 12 de abril de 2017

A lição do valete de copas

                                                          

  Era tarde, uma agradável tarde de verão alongada pelo comprida luz natural do dia e pelo esperto horário humano que se ajusta para aproveitá-la. Eu ainda tinha lá a idade em que o grande gosto da vida era brincar junto da molecada da rua e apostar pra ver quem ia pular o muro do vizinho e enfrentar seu pouco simpático cão para recuperar a bola. Ou, quando a coragem ajudava, para roubar um punhado de mexericas que chupávamos como se fosse o néctar dos deuses e, quando sobrava, exibíamos em casa como troféus de grande aventura.

    Devia ser fim de ano, época em que a família se ajunta. Depois do café com pão e conversa fresquinha, sentamos para jogar baralho: eu, minha irmã e duas tias da minha invejável coleção delas. Cada tia parejada com uma de nós, meninas, claro, para dar um páreo bom. Lembro da ocasião com detalhe, com a viveza típica de memória de criança e de momento marcante.
   
    Certa rodada, minha mão veio com uma sequência de jogo admirável. K,Q-10,9. Rei, dama, dez e nove de copas. Faltava o valete. Quem joga buraco sabe que jogo com números baixos no contar final vale menos, acima de 7 vale mais. Fora que a carta desenhada é mais bonita que aquela só com números. Eu era uma criança encantável e gostava de ganhar. Queria o valete. Estava determinada a conseguir o valete.
   
    E fiz por onde achá-lo! Evitei lixar durante toda a rodada, para não encher a mão de muambas enquanto podia estar comprando e conseguindo o valete. Deixei passar descartes desatentos da minha irmã que completavam o jogo da minha parceira porque precisava comprar o valete. Aliás, até esqueci que tia Zinha era minha dupla, e eu precisava jogar em dupla.

    Também não prestei atenção que minha irmã e tia Lourdes foram avançando no jogo, pegando o morto e podendo logo encerrar a rodada muitos pontos à nossa frente. Nem preciso dizer que ao comprar, e seguidamente não ser premiada com o valete, descartei partes de pequenos joguinhos que se formavam, talvez um 5-4-3 de espadas. Mas eles não valiam o que meu jogo grande valia. Ou valeria, se tivesse acontecido. Se o bendito valete tivesse dado as caras. Não deu.

    A rodada logo terminou com saldo minguado pra nós. Pontuamos muito pouco, quase nada. Porque tia Zinha jogou sozinha e eu joguei fixada no fantasma do valete, o que lamentei abertamente, com direito a carranca emburrada e muxoxos variados. Não deixando passar a ocasião para valoroso conselho, minha tia-parceira se pronunciou. Perguntou se eu tinha entendido porque perdemos tão feio, e percebido que deixei passar várias oportunidades, deixei escorrer o jogo inteiro por causa de uma única carta. Que nem encontrei.

    Então, eu corei. O rosto ardeu e os olhos procuraram o chão como acontece com quem sabe que a lição cabe, é bem dada. Nunca esqueci aquele dia. Mas, passados alguns anos da minha era de moleca, de novo eu quase me peguei remoendo um valete de copas - que não era carta de baralho. Felizmente, percebi a bom tempo. E quis abrir aqui essa conversa.

    Quantas pessoas não sofrem com valetes de copas? Quanta gente não quer tanto ir a um determinado show, ou viajar a um evento específico, tão longe no futuro, que se fecha a qualquer oportunidade de diversão para poupar dinheiro para a meta e deixa de aproveitar as presenças da vida?

    Quanta gente não se encasqueta com um caminho pré-definido de carreira, um concurso, e passa batido por várias outras opções que aparecem e não raro descaradamente se oferecem, se insinuam? E deixa os anos passarem num estupor sem mesmo aproveitar a escolha? Quantos de nós não cismamos tão doentiamente com um par maravilhoso que não conhecemos mas mentalmente criamos que nem enxergamos a talvez igualmente maravilhosa pessoa que divide conosco elevador todos os dias?

    A falta de foco produz imagem de reduzida qualidade e um caminhar vagueante, de que tiramos pouco proveito. Mas o excesso de foco tampouco resulta num harmônico conjunto. Deixa borradas partes da vista que subtraem dela o seu possível sublime. Deixa a gente blindado, impermeável, ensebado de certeza e obsessão. Barrando com um escudo revestido de burrice o encanto do inesperado.

    É bom deixar espaço para o inesperado. Para as várias possibilidades. Não condicionar o olhar buscando um só elemento do horizonte. Não estreitar a visão, perfeitamente capaz de abarcar primeiro, segundo e terceiro plano, centro e periferia, com sábia perspectiva. É apenas sensato não se esconder da oportunidade ou bloquear sua aparição. Alforriar o espírito da fixidez e a vida do roteiro traçado.

    Às vezes, o universo sabe melhor que nós o que é melhor para nós mesmos. E o que visualizamos não nos convém tanto quanto aquilo que se intromete, que improvisa, que surge antes de qualquer expectativa, qualquer plano. Ou contra eles.

    Quando precisamos deles, sinais aparecem. Alternativas. O universo pode ser, se quisermos, um multiverso. Mas é imperativo nos permitirmos perceber. Tirar a venda e a anestesia que o valete de copas pode nos colocar. Cuidar para que ele não nos enfeitice para a vaziez da linha reta, acabe trancando portas e janelas. E nos fazendo perder rodadas tristonhas de um jogo de baralho, indo para o buraco...

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