quarta-feira, 22 de março de 2017

O orientalismo do século XXI

                                                              
        
   Minimalismo. Mindfulness. Meditação. Yoga. Silêncio da mente. Pipocas que estão estourando quentinhas no recipiente do tempo presente. Estejam seus sons despontando percebidos ou impercebidos, fato é que seu olor destila-se no ar em nosso redor com força estonteante. E os por quês de nossa avidez por respirá-lo pululam interrogantes no horizonte de quem tem mania de detetive.

    Creio ter topado com um possível ensaio de resposta.

    A vida nativa digital coloniza nosso imaginário, nosso corpo e nosso espaço. As coisas nos possuem, nós não as possuímos. Temos que ter. E temos que fazer. Não temos mais a ousadia de reivindicar o direito ao tédio. A monotonia e a contemplação rareiam, tornam-se fator de alergia que inquieta e irrita a alma da gente. 

     Estamos sendo artificialmente adestrados todo o tempo. Passamos larga porção dele em espaços condicionados, salas de cinema ou parques de diversões ou academias, que tentam simular em nós percepções e sensações que mais genuína e arrebatadoramente poderíamos sentir ao ar livre, exercendo nossa liberdade, a plenitude de nosso corpo, nossa imaginação.
   
    O horário de trabalho é o nome fantasia que batiza a mão cheia de horas que passamos por dia no local determinado de labor. Contudo, ele jamais termina. O celular acusa o email que se recebe com o compromisso que se tem; as férias são passadas planejando o trabalho a ser feito na volta; o final de semana é interditado pela possibilidade de concluir, através de dispositivos infelizmente móveis aos quais contraímos vício, pedaços inconclusos da semana anterior. Ou adiantar serviços da próxima.
   
    Não temos mais corda no pescoço ou chicote nas costas, mas a cobrança introjetada na cabeça perpetra crueldades de grandeza aproximada. O estado de alerta nunca nos deixa. A sensação do dever “devia estar estudando, devia trabalhar mais, devia estar ocupado em vez de perdendo tempo com nada” é uma ladra que sequestra nosso momento presente sem deixar sequer margem para resgate.
   
    Não desfrutamos do que vivemos, da companhia daqueles que estão a nosso lado. Nossos sentidos parecem anestesiados para às pequenas belezas cotidianas, como uma brisa acariciando as folhas das árvores ou o rosto da gente, a meninada saindo da escola em algazarra, o sol dizendo seu adeus ao céu maravilhosamente nostálgico...

    Diante de tudo isso, do frenesi, da auto-tortura, da vida passando borradamente sem que possamos de fato percebê-la... A gente pára. Felizmente, a gente pára. Repara que qualquer organismo vivo maltratado - com energias ruins ou substâncias pouco nutritivas -  sucumbe. Adoece, perde o viço e a cor, expira. Se até a máquina, que consideramos quase imbatível, se rende, murcha, cai enferma por uso abusado, exagerado, descuidado... Nós com certeza não somos menos vulneráveis.

    Venturosamente, começamos a entender que, se corpo e mente e espírito estão em desalinho, e de modo tão constante, a existência se torna fraudulenta. Farsante. Uma obrigação que nos impomos e que cumprimos mal, sem gana ou gosto, sem inteireza. Uma ação mecânica que realizamos sem presença. Por inércia.

    É neste momento, eu acredito, do tímido mas importantíssimo despertar, da consciência de si mesmo e da loucura que é a tentativa de seguir o fluxo sob a custa da própria saúde, da própria potência de viver... Que nossos olhos se voltam à sabedoria do leste. Ao oriente.

    É historicamente registrado que o exercício que por lá mais se aprecia é aquele que torneia o pensamento, não o corpo. Aquele que enleva o espírito a uma beleza transcendente, a um silêncio pleno, ao seu infinito interior, sem ruídos ou interferências. Aquele que conecta o ser consigo, e o ensina que ele é capaz de ignorar toda a perturbação que levam-no a rumo contrário. Porque ele tem toda a força em si, só precisa descobri-la.

    Esse exercício, essa filosofia de paz, nos convida ao desapego. Porque não precisamos de uma coleção vultosa de coisas ou de multidões cercando-nos, quanto fazemos boa companhia a nós mesmos, sintonizados com nosso "eu". Assim, além da correria e da cacofonia diária, das pretensas obrigações que nos cerceiam, aprendemos a nos emancipar das posses. Daquilo que mais entulha nossa vida do que a ela acrescenta. Daquilo que esconde os escombros de nossa alma, desbota as nossas emoções ou delas nos afasta. O essencial está dentro de nós. O resto é resto.
   
    O orientalismo deste momento do século XXI, portanto, creio, é uma reação. Uma adaptação evolutiva que desenvolvemos para sobreviver salutarmente à cadeia predatória da modernidade acelerada. Da ditadura das coisas. Elas que nos distraem de nós mesmos, nos engolem, nos sufocam.

    A adesão ao orientalismo é uma decisão que um crescente número de nós escolhe tomar, no lugar de remédios. É um carinho que nos fazemos, um caminho que trilhamos em busca de silêncio, calma, equilíbrio. Uma opção que, depois de ser bóia de salvamento, se torna modo de viver. Um modo surpreendentemente tranquilo de viver, mesmo nesse mundo tão tresloucado.

2 comentários:

  1. Salamalanca!
    Você pode descobrir em breve o que é fugir desse mundo. Basta negá-lo conscientemente quando tiver que fazer aquelas escolhas que nos fixam em deveres "jesuíticos", como diria um nosso sábio mestre.
    O problema é que vai querer isso para sempre!

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    1. O "para sempre" nem sempre é um problema, Quixote...
      Obrigada pelo comentário!

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