quarta-feira, 8 de março de 2017

Solteirona - o direito de escolher a própria vida

 
   Uma mulher adulta sorri um sorriso que rebrilha a um só tempo a jovem maturidade e energia. Está sentada num sofá dourado, relaxada e elegante. Traja um vestido de caimento delgado e seguro. Tem numa das mãos um par de xícara e pires adornado com requinte. Esse par, juntamente a seus sapatos confiantes, o caloroso estofado, o pequeno móvel ao lado com um busto em miniatura, relógio e porcelana, sugere bom gosto, apreço pelos detalhes, e a suficiência financeira - de dinheiro e tempo - que permite desfrutá-los.
   
    Seus olhos estão fechados, no crepúsculo de um piscar. A expressão transparece o pensamento arrebatado por uma lembrança engraçada. Ela está voltada para si mesma. E, num enquadramento fechado, ocupa o centro exato da imagem. É a ela que todo olhar imediatamente converge.

    O conjunto é harmônico e agradável, mas nada específico em sua composição nos diz em absoluto que se trata de uma mulher solteira. À exceção, é claro, da mão esquerda pousada suavemente sobre o joelho em decidido destaque, no front visual da cena: seus dedos nus são a evidência gritante da solteirice.

    Como a feliz ilustração de capa, assim também é o livro. Seu foco é menos na escolha do status civil do que na escolha da vida que a autora queria para si, e sua jornada até descobri-la e aceitá-la. De modo algum uma evangelização do “jeito solteiro de viver”, a obra é um apelo poderoso e certeiro ao autoconhecimento, à autonomia das nossas escolhas face à massa de ar social que tenta controlá-las, soprando nossa vida a um lado ou outro, por vezes para longe de nós mesmos. E sem que nos demos conta.

    Kate Bolick inicia passeando por sua infância e juventude pelo carrossel das palavras de maneira agradável, confessional, reflexiva. Leve, e levemente profunda. Revisita conosco suas primeiras experiências de solidão prazerosa e de fases enamoradas, a concepção de intimidade e companheirismo de que sempre foi cercada e como ela moldou suas necessidades emocionais.

    Rumo à idade adulta, começa a perguntar-se como pode entender a si mesma, conhecer-se, tornar-se madura e independente realmente se sempre foi (e continua sendo) cuidada e acompanhada por alguém, ou vários alguéns. Seus pais, seu irmãos, seus namorados. Começa a perceber como sente falta da sua própria companhia, em regime de exclusividade, e como anseia pelo desenvolvimento de seu eu, pelo reconhecimento de sua identidade. Como, sobretudo, suspeita que esse desenvolvimento não casaria bem (casaria?) com um compromisso incondicional a uma pessoa, e às futuras pessoas advindas desse compromisso.

    Embora o mais saboroso do livro, para mim, tenha sido mesmo esse desvelo da sua trajetória pessoal - os questionamentos de si consigo ao longo dos anos de quem era e de quem queria ser, os contínuos sinais de que o script universalmente aceito para mulheres como ela não lhe cabia particularmente - isto não é o que torna Solteirona uma preciosidade.

    Seu maior trunfo, pois, é a aliança deste desnudamento pessoal à história de cinco “despertadoras” e a um exame apurado e pertinente das condições histórico-sociológicas da solteirice feminina ao longo de diferentes momentos dos séculos XIX e XX. Sim, buscando entender seus desejos em relação ao casamento, à solteirice, à autonomia, a autora procura inspiração na história - na história de certas pessoas e da sua coletividade.

    Ela encontra, ao longo dos anos, mulheres norte-americanas solteiras (e escritoras) de outras épocas cujas reflexões lhe fazem companhia e dialogam com as suas próprias. Pesquisa a progressão das condições das solteiras através do tempo, as circunstâncias sociais que propiciaram sua ascensão ou bloquearam seu florescimento, a concepção da sociedade em relação a elas nos diferentes momentos.

    A consciência de Bolick do quanto as possibilidades das solteiras do presente deve às lutas das mulheres de passadas gerações que gradualmente abriram o caminho é louvável, exata, tocante. Sua percepção de como o contexto é absolutamente indissociável do percurso individual de cada uma, também sensível e precisa. A interlocução que realiza com suas inspiradoras ao longo de seus anos e suas questões, porém, me parece a mais esplêndida luz do livro.
   
    Ela nos mostra brilhantemente a potencialidade que a literatura tem de ser amiga da gente. Amiga que ouve, que dá conselhos, que sempre tem uma boa prosa (ou poesia) para nos dar, ajudando a amaciar (ou inflamar) diferentes indagações, angústias, anseios. Amiga à qual recorremos como guia, procurando lições, uma luz quanto ao caminho a seguir. Procurando o conforto do reconhecimento, da empatia, da proximidade.

    Ademais, essa deliciosa conversa realça a necessidade de positive role models em nossa cultura, não só de mulheres solteiras felizes e de sucesso, mas de pessoas em todas as condições minoritárias, diferentes, desviantes do padrão normativo. São esses exemplos que nos inspiram, que nos fazem acreditar que é possível, que nos expandem o olhar para caminhos alternativos e muito prósperos de vida. A ausência deles, muitas vezes, encaminha pessoas ímpares, singulares, a caminhos esmagadoramente comuns - simplesmente porque elas desconhecem outros. Infertiliza a imaginação da gente quanto a futuros possíveis, a opções disponíveis, em todos os aspectos da vida. Uniformiza destinos, empobrecendo venenosa e toxicamente a nossa natural pluralidade.

    Eu precisava ler este livro. Precisava degustá-lo com carinho e gosto, como fiz. Precisava de suas páginas a tocar a pele dos meus dedos e espetar a película de minha alma, como fizeram. Precisava da sinceridade tão sutil quanto brutal de sua narrativa, que permite perceber concretamente a insegurança, a hesitação, os passos cambaleantes de uma pessoa inteligente a escolher sua vida. A delinear sua identidade, sua individualidade, no embrenhado nebuloso de si mesma, em meio à voz social que se funde e se confunde com a sua, às expectativas que fazem sombra desagradável a suas decisões e indecisões.

    Eu precisava, porém, que mais gente lesse esse livro. O mundo precisava que todo o mundo lesse, senão este livro, um outro familiar desse. Ou vários outros. E lesse com frequência, com os poros abertos, com a alma às escâncaras. O mundo precisava ser um lugar onde toda mulher tem consciência de que é mulher e, antes disso, é gente. O feminino é adjetivo, não sujeito. Adjetivos caracterizam, não definem. 

    A mulher não precisa ser um "animal útil" no lar e ao lar, se não quiser, como tantas vezes refletem as inspiradoras de Kate Bolick. Não precisa ser esposa, mãe, avó, filha, somente.  Não precisa, por outra parte, deixar de viver cada uma dessas vidas, se as quiser. Mas precisa ser si mesma. 

    Antes de existir no feminino, a mulher existe no singular. Tem o direito, e deve tê-lo assegurado, a descobrir-se indivíduo. "Eu". Um "eu" afirmado, um "eu" interrogado, jamais um negado. Um "eu" diferente de todos os outros em redor, e ainda assim deles semelhante, com eles comungando. A exercer sua individualidade. A inventar-se, reinventar-se, desconstruir-se. Conhecer-se, desconhecer-se, reconhecer-se. Existir tão simplesmente como si mesma. Ou tão complexamente como si mesma. E não precisar aceitar que qualquer outro alguém lhe diga o que ser ou deixar de ser, o que fazer e não fazer, onde estar e onde não estar.

   Quer seja casada, quer seja solteira, divorciada, ou qualquer das nuances nesses ínterins, que seja LIVRE. Livre para escolher a própria vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário