quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Ganas

                                                         
                                                                           
    Tenho ganas de me desfazer do que tenho. De fazer o que ainda não tenho e preciso, em vez de ir à via da compra. De me divorciar das posses. De só possuir o vento e ser possuída inteiramente por ele.
   
    Tenho ganas de me desfazer do que sou. De me demitir do meu cargo. De me desenquadrar da dedicação exclusiva de mim mesma.

    Tenho ganas de trabalhar como vivem os pássaros, desconhecendo no solo morada. Flexível. Com pousos leves e partidas tão leves quanto. Carregando como única certeza a viagem.

    Tenho ganas de ter mais ganas. De sonhar mais sonhos. E mais ilusões também. A utopia para nada serve senão ao mais importante: o movimento. O encanto colorido, brilhantoso e aconchegante do imaginar engravida a alma. Fertiliza a mente. Dá luz a reais realizações. É fecundação necessária.

    Tenho ganas de hipnotizar o tempo. De torcê-lo a meu capricho e majestade. De passear por um atraso, abrir brechas em suas voltas. De cirandar à vontade. De me enveredar moleca pelo (re)aberto campo da infância e o bosque da quase adolescência. Passei mui pronta por eles, deixando joelhos com ralados poucos demais para meu gosto.
   
    Tenho ganas de evaporar calendários e ignorar horários. Ter como única urgência os pedidos e chamados do corpo. Emergência, a minha paz. Banir a pressa por decreto. Condenar o cronograma a exílio perpétuo. Ele com seu cúmplice, o planejamento.

    Tenho ganas de despreocupar da história, ou de ocupar-me poderosamente dela. De não precisar confiar, apenas, que as linhas tortas escrevem certo. De conseguir não confiar desconfiando.

    Tenho ganas de superpoderes laboratoriais. De experimentar com minha constituição, fazê-la reagir doutra maneira. Misturar minha pureza, arredar minhas ideias, demover minhas paragens. Anestesiar minha cerebral hipertrofia. Esticar as minhas asas e os meus abraços, abrir os voos para mais longe e os braços para mais gente.

    Tenho ganas de arreganhar o coração, permitindo a todos a entrada. Sem restrições, condição de idade ou maturidade. Sem esgotar as vagas, dilatando para sempre a capacidade das cardíacas câmaras. Sem respeitar o quanto comporta, o quanto descomportam.

    Tenho ganas de enxugar minhas ganâncias, enxaguar minhas gangrenas, desganhar meus ganhos, gandaiar minhas perdas, engrandecer meus gametas e minhas gargalhadas. Tagarelas minhas gagueiras, sem vergonha, glorificar minhas desditas. Tenho ganas de aprender a sabedoria de viver despegada, de tudo e de todos, ao léu da existência, guarnecida apenas e sempre de gratidão.

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