quarta-feira, 15 de março de 2017

O que será que seria? ou O moderno arquipélago dos encontros perdidos

                                                             
 
  Hoje, encontrei um desconhecido no ônibus. Dentre muitos com quem estive e me desencontrei, encontrei este rapaz. Estava com uma discretamente encantadora camisa mostarda, tinha óculos de moldura original que decoravam bem seu rosto viçoso de moço. Cabelo aparado com asseio, esboço de barba agradavelmente despreocupado.

    Seu chamariz principal, porém, não estava em si: ele lia Madame Bovary, cativado. À espreita, por sobre seu ombro, reli com ele as derradeiras páginas: a morte de Emma, a contemplação do cadáver, da tragédia, o fechamento certeiro com curioso sabor do inevitável. Queria abordá-lo.

    - Bom esse livro, não é?
    - Sim. estou quase acabando, mas já posso dizer que adorei.
    - Do que gostou mais?
    - Ah, não sei... De tudo. A linguagem é ótima, com suas pontadas naturalistas;  a história é bem conduzida; as personagens são densas e reais...
    - Também senti isso. É impressionante como a gente consegue empatizar com eles, embora sejam tão diferentes entre si e tão, tão imperfeitos...
    - É bom, né, quando a gente lê um livro que envolve e cujas personagens respiram, criam corpo dentro da gente...
    - Sim! Já leu Anna Karenina, ou O retrato de uma senhora? Têm o mesmo tema e a mesma concretude.

    Ele lia, absorto. Como podia, com tanto sacolejo? Mas como não poderia, com tão hipnótico material literário ante os olhos? Ele prosseguia sua leitura, eu prosseguia meu teimoso silêncio. A hesitação me carcomia o espírito, e numa manhã tão bonita!
   
    Conversava com ele, apenas mentalmente. Ensaiava o timbre imaginário de sua voz, sua insistência irritantemente correta em dizer “as personagens”, ao invés de “os”, que é o que sempre me soou mais natural e agradável... Via um simpático entusiasmo tingindo seu rosto diante da inesperada abordagem, de tom inesperadamente literário....
   
    Mas será? Será que assim será? Ele tem tanto os ouvidos quanto os olhos ocupados, afinal. Esqueci de mencionar esse detalhe... O fone é um sinal vermelho à conversa? E a fascinância que as páginas claramente lhe causam? Tenho eu o direito de quebrá-la, de me intrometer ali com meu potencial incontestavelmente menor de fascínio que a obra de Flaubert?

    Pigarrei, clareei a voz. Molhei os lábios. Está começando a ficar ridícula essa tormenta. Quero fazer isso, e agora tenho que fazer isso, ou nunca saberei o que será que seria, e serei perseguida pelo lampejo desse pensamento por dias.

    Quem não desespera com o que não foi, mas poderia? Abri a boca. Engasguei e mordi a língua. Fui empurrada. O nosso caríssimo levador automotivo cuspiu gentes, e as que restaram queriam desespremer-se. Naturalmente, fui empurrada. Arredada. De modo até gentil, é verdade. Fui separada do meu desconhecido, por muitos outros desconhecidos. O pé bateu, pisando a frustração.
   
    Não acredito! Demorei tanto pra vencer a hesitação civilizada, o limiar convencional e cerimonioso da solidão compartilhada... e quando enfim ia fazê-lo...  Fui levada pelo fluxo a voltar à ilha de mim mesma. Ao meu normal e, parece, pavorosamente inviolável retiro.
   
    Daqui a pouco mais uma leva grande de ilhas vão sair, eu posso nadar até ele outra vez. Vou dar um jeito de falar com esse moço! Agora está na janela, não no corredor, ele também empurrado pelo espetacularmente vasto e ansioso desfile insular. Mas isso não será impedimento.

    Saíram as pessoas. Fui. Abordada por uma pessoa, uma colega que não tinha visto, que tampouco tinha me visto até então. Nosso ponto é o próximo. Ai, mas logo agora! Posso deixá-la com uma desculpa e adiar minha descida. Mas a conversa adiada confinada num curtíssimo tempo não vai render. Seu começo já será terminal e eu ficarei amargando na boca a avalanche do tempo, que pagará minha indecisão com sua fuga e cobrará o doloroso tributo do não vivido. Eu ficarei amargando na boca a força da social correnteza, com sua textura acelerada, que é de uma fortaleza com a qual a individual fraqueza - o titubeio, o receio, as pequenas timidezes - não pode lidar.

    O consolo? Não somos nós, eu e o moço-leitor-de-Flaubert-vestindo-camisa- mostarda, as únicas ilhas que se desgarram pelo oceânico empurrão das gentes modernas, apertadas e apressadas, coletivamente separadas no mesmo espaço pelo hábito do cordial silêncio. Somos partes de um todo, que padece do mesmo mal do encontro perdido, e rara vez é presenteado com o respiro do encontro acontecido. Saber que não se sofre sozinho é sempre um carinho culpado que suaviza o sofrer.

     Outro consolo? O encanto não foi quebrado. De pensar que eu poderia tê-lo feito, ao abrir a boca e deparar-me com ouvidos relutantes em ouvir-me, ao tocar seu ombro e deparar-me com olhar murado, pouquíssimo receptivo à minha aproximação indesejada, penetra naquela leitura tão feiticeira, tão reservada...

     Por não ter concretizado o que o devaneio conjurou, nunca saberei de fato o que a concretude me reservaria. Se a conversa real seria mais rósea ou mais cinza que aquela que imaginei, a atitude do rapaz mais aberta ou mais cerrada que aquela que visualizei, sua voz mais calorosa ou mais fria que aquela que em matinal sonho ouvi. E assim posso brincar com a ideia do que será que seria... E deixá-la tão viva e mutante, tão bela ou tão feia, tão engraçada, ridícula ou catastrófica quanto minha imaginação desejar...

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