quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Simplicidade complicada

                                                                    

  Possibilidades. Expectativas. Aspirações. Multiplicidade. Excesso. Confusão.

    São algumas palavras que podemos tranquilamente associar ao estilo de vida da maioria de nós, seres humanos generosamente alocados no século XXI.

    Quero dizer, se contrastarmos os nossos dias àqueles das pessoas nos tempos de ontem, veremos que o presente que nos pertence é muito mais cheio, mais variado, diverso. Desde as pequenas coisas até as grandes decisões da vida, nós temos muito mais possibilidades dentre as quais escolher.

    Numa mera ida ao supermercado, é possível ficar zonzo ao tentar comprar apenas um litro de leite. A prateleira reservada ao artigo é enorme, larga e comprida, comporta caixinhas incontáveis, é leite que não tem mais fim, todos e cada um deles tentando mostrar (em suas ilustres inscrições enfeitando e emperiquitando a caixinha) o quanto é diferente dos demais, embora o produto seja, no princípio e no fim das contas, o mesmo... Leite com reduzido teor de lactose, leite sem lactose, leite integral, leite desnatado, leite semi-desnatado, leite vitaminado, leite de soja, leite de arroz... Leite... Montes e montes de leite.

    Na época de nossas avós, se uma comadre chegasse à casa da outra para uns dedos de prosa e perguntasse “ó, comadre, que tipo de leite é este que estou tomando?”, a única resposta que receberia (provavelmente acompanhada de um desconfiado franzir de cenho) seria “ora, de vaca!”. Ou, no máximo, caso um dos filhos da casa fosse alérgico a ele, ou a criação de caprinos fosse muito farta, “de cabra”. Vejam só, meus amigos, simplicidade pura! Pura mesmo!
   
    Quanto ao que fazer na noite para variar seus dias e encontrar outras pessoas, nós - ou aqueles de nós que residem em lugares que os oferecem - também temos muitas possibilidades. São bares, restaurantes, shows, clubes, cinemas, shoppings... Restaurantes de comida tradicional, ou pouco tradicional, vegetariana, vegana, mineira, baiana, gaúcha, brasileira, árabe, japonesa, italiana... Shows de rap, MPB, rock, pop rock, punk rock, rock alternativo, jazz, blues, samba, pagode... Ir ao cinema, ver o quê? Drama, melodrama, comédia, épico, ação, aventura, animação, tragédia... Gente! São tantas opções!

    De pensar que, era uma vez, todos os jovens e todas as jovens numa cidade interiorana dos anos 30, que esperavam ansiosamente pelo mês de junho (ou qualquer outro destacado no calendário religioso), pelas festas da igreja e as quermesses que nessas ocasiões se faziam... Nelas, e também na eventualidade de alguém da comunidade se achar com parente adoentado, e sem muitas condições para custear o tratamento, em que toda gente montava a festa e tomava parte nela, nos leilões e nas pequenas atrações que gerariam o dinheirinho que seria dado a ele.
   
    Quando não era isso, só mesmo o circo que muito de quando em vez passava, com seus homens elásticos fazendo espetáculo, acrobacias de encher os olhos; e mais aquele que engolia fogo e não se queimava, e o sempre preferido palhaço, arrastando consigo para lá e para cá a criançada:
   
    - Hoje tem marmelada?

    - Tem sim, sinhô!

    - Hoje tem goiaba?

    - Tem sim, sinhô!
   
    - E o palhaço, o que é?
   
    - É ladrão de muié!

    Hoje, as crianças têm muitas coisas, muitos brinquedos. Bonecas, bonecos, (quase todos agora falantes, com chips, baterias, movimentos automáticos) bolas, quebra-cabeças, bichos de pelúcia e plástico, sem contar os tais tablets e videogames, que parecem ser seus preferidos... Os recursos são muitos, e de amplo acesso; ao passo que, antigamente, eram poucos e raros, e mesmo estes para muito reservada fatia da população. Mas, por outro lado, a falta de recurso justamente estimulava a imaginação, a camaradagem, o jogo ao ar livre. Se não se tinha com o quê brincar, inventava-se o que brincar... Viuvinha, a canoa virou, roda, corre-cotia, passa-anel, o mestre mandou, pique-isso e pique-aquilo, quem roubou pão na casa do João... Brincar era fácil, simples, uma alegria palpável e contagiante, e que não carecia mesmo de muitos ornamentos e aparatos...
   
    Na idade adulta, menos mistério ainda a vida tinha. Seus pais escolhiam com quem você se casaria e contra isso, não se tinha vez ou voz. Se desse errado e a combinação fosse ruim, você teria a eles para culpar pelo resto da vida, sem dúvidas; se não desse tão errado assim e o arranjo se tornasse um bom par, “Deus escreve certo por linhas tortas”... Quanto à profissão, e ao que se podia conquistar com ela, as possibilidades não eram muitas, e assim também diminutas eram as expectativas, e inquietações. Nem tudo era possível para todos, e isso era algo aceito sem contestações ou problemas por (quase) toda gente. As divisões eram mais firmemente marcadas, cada um sabia o “seu lugar” e que a possibilidade de ele se alterar ao longo da vida era pequenina. Quem nascia entre a terra, nela permanecia; um lavrador de pouca monta queria antes ser uma lavrador de maior monta que um comerciante ou bancário. Os meninos com um pouco mais de instrução seriam bacharéis, ou engenheiros, ou médicos; as meninas, professoras, com o diploma do magistério...

    Nos nossos dias que correm, em contrário, os arranjos que podemos fazer para a nossa própria vida são muitos. Casar, juntar, não juntar nunca, separar e casar de novo, viver com amigos. Relação aberta, relação fechada, várias relações de diferentes cunhos. E quantas profissões não se pode ter, quantos cursos não existem! São milhões de faculdades para atender todo mundo, pois todo mundo vai à faculdade (quem não quer ver o filho “estudado”?). E para aqueles poucos que não vão (para quê inventar moda, meu pai?) as opções também existem... Inclusive, muitos desses poucos parecem acabar se dando melhor do que os mais afortunados poucos daqueles muitos que vão estudar... Pode-se trabalhar em vários regimes, período integral, meio período, presencialmente, à distância... São tantas as opções que podemos ficar até meio perdidos...
   
    Não se engane com o meu nostálgico argumento, leitor. Reconheço que essas opções todas são algo bom, representam algo positivo. Mesmo! São ótimas, extremamente comemoráveis, na verdade, na medida em que com elas existem várias trilhas para vários trilheiros; alternativas que se encaixem aos vários perfis de pessoas, ao objetivo e gostos de cada um, que podem ser muito diferentes uns dos outros. A multiplicidade visível e permitida e aceita é celebrável. É uma conquista, e magnífica!

    No entanto, eu me pergunto... Sou só eu que às vezes me pego querendo um mundo mais simples? Um mundo em que, quem não casa, por exemplo, não vive a deitar olhares suspirados aos casais que passam na rua; enquanto quem casa, por sua vez, não adora lamentar as alegrias perdidas e agora impossíveis de sua solteirice de outrora? Um universo em que não é dada permissão e - entusiástico estímulo - a sonhar mais alto a quem, por outro lado, são negadas condições viáveis de lutar por esses sonhos? Por mais igual que a nossa sociedade pareça, ela não é ainda exorbitantemente desigual?

    Será que não havia um curioso conforto no lugar cômodo que se ocupava antigamente? Na realidade escancarada, e não velada, das coisas? Justamente na falta de perspectivas, na paradeza, na quase certeza de que não haveria mudança? No concentrar-se em apreciar o que se tem, ao invés de resmungar pelo que não se tem? Na simplicidade da ordem, da segurança, da firmeza, da garantia do previsível e do estável e de enxergar o impossível e ser feliz com o possível assim mesmo?

    É preciso ter uma sabedoria fora do comum para transitar nas turbulentas águas do hoje ou é impressão minha?

    “A canoa virou/ Pois deixaram ela virar/ Foi por causa de Maria/ Que não soube remar”

     É possível termos calmaria e simplicidade hoje também? Será que a questão não é a época, mas o jeito de levar a vida das pessoas? Será que basta saber remar? E saber em antecipado qual tipo de leite se quer comprar? E só lembrar que, apesar das pequenas varianças, leite é leite de todo jeito, e o seu sabor é ainda o mesmo de sempre?

    Quentinho e com canela, ainda... Hmmmm... Delícia!


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