quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Carta aos amigos



  Dizem os práticos que nenhuma magia pode ressuscitar os mortos − nem mesmo a magia das palavras. Verdade? Não sei. Ninguém sabe. Quanto a mim, talvez discorde, talvez concorde. Francamente, parece-me que há muitos mortos enterrados mais vivos em nosso entorno do que outros mortos andantes oficialmente vivos.

    Dizem os sensatos que, sendo impossível o ressuscito, nada se ganhará em remexer consigo consumado fato, e melhor é deixarem os mortos em sua morte. Todavia, como sensatez é uma palavra que hesito muitíssimo em associar a mim mesma, estou aqui, não pagando tributo às amizades mortas, mas chacoalhando-as em seu túmulo. Pois, como disse Veríssimo filho em belíssimo texto, “embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu”.

    Primeiro, porém, convém que eu diga que posso estar cometendo ainda anterior desatino ao meramente atribuir a certos entes o ilustre título de “amigos”, quando nem certa estou que eles de fato o foram, e assim merecem ser chamados. Vivo tanto a imaginar que não sei se posso dizer afirmadamente que não imaginei o que vivi... Parte dele ou todo ele... Especialmente em casos como este, em que o sorriso alegre e entusiasta do coração neblina demasiado a análise da razão.
   
    “Amigo”, eu creio, é palavra que usamos muito levianamente.

    Amigo é alguém em quem se pode confiar. Confiar, fiar com, conversar fiado e à vista, na hora da celebração e da necessidade. Amigo é aquele com quem se troca, acima de tudo, sinceras palavras. Se profundas, se rasas; se compridas e longas, ou breves e curtas; se assuntando sério ou brincalhonas, primeiro e antes de tudo, sinceras. Entregues, expostas, verdadeiras, muito mais verdadeiras do que as que se diz a um apenas conhecido não amigo, ou a um pouco conhecido ainda estranho.

    Amigo é aquele em quem se pode fiar. Aquele que vem sem titubeio socorrer-lhe, mesmo quando ele próprio está em apuros. Aquele que guarda o segredo que você não conta, que escuta o que você não diz, que acalma a raiva que você não explode, que disfarçado e furtivo oferece a ajuda que você não pede, e aberto puxa-lhe para o abraço que estava prestes a pedir.

    Amigo é aquele que não mede suas palavras. Aquele que acredita em você, incondicionalmente, exageradamente. Não é aquele que debocha, deprime, suprime seus talentos e sonhos e fica para sempre a lembrar-lhe dos obstáculos e empecilhos − mas aquele que, muito menos com sua (às vezes, mui correta) lógica, que com suas animadas palavras, radiante sorriso, persistente incentivo, e com a inquestionável confiança que deposita em você fá-lo confiar em si mesmo, e jamais esquecer das dificuldades, mas colocá-las em perspectiva, numa perspectiva tal que elas se tornem pequeninas, frágeis, sopradas até desaparecerem de todo.

    Amigo é aquele que deixa-lhe saber quando está certo, celebra contigo o seu triunfo, reconhece a sua razão, seu argumento, sua justa conquista, e com eles sorri genuíno. Mais ainda, amigo é aquele que repreende-lhe quando está errado, que é quase mais duro com você do que você pode ser consigo mesmo; aquele que diz todas as palavras que você precisava ouvir, e não raro algumas que não precisava, também. Amigo é aquele que sofre com a sua dor e a toma de você, fazendo-lhe rir de alívio ou ridículo no momento aparentemente ao riso menos propício. Aquele que xinga junto, enfaticamente, acaloradamente “Safado, cachorro, sem vergonha! Vagabundo, imprestável, monte de estrume humano!”  − embora ele nem muito bem conheça a pessoa que causa sua mágoa, e esteja correndo algum risco de ser injusto com ela, ao escolher enxergá-la unicamente pelo reflexo dos seus olhos.

    Amigo, sobretudo, é aquele que não mede seus silêncios. Aquele que aponta-lhe persistentemente a trilha errada, perigosa, visivelmente fadada ao desastre; e que, quando você teimosamente ainda assim decide tomá-la, espera-lhe pacientemente do outro lado, no fim da travessia, para dar-lhe colo, confortante e seguro colo que silenciosamente tanto diz “Eu te avisei. Eu disse.” quanto “Pode chorar. Pode chorar, que eu estou aqui.”

    Amigo é aquele bem curtido na difícil arte da aceitação. Não é aquele que que desfaz de seu gosto, dolorosamente ironiza-o, tenta induzi-lo a outro, impor a você sua opinião, seu julgamento. Em contrário, é aquele que faz de tudo para você manter consigo o que é seu, especialmente em questão de gosto e desgosto, crença, opinião. Aquele que tenta melhor conhecê-los, faz um esforço singelo (e, por vezes, magnânimo) de entendê-los − e, mesmo quando não consegue entendê-los, respeita-os. Respeita-o. Respeita a você, seu amigo, e perante o destrato de outrem, defende-o, ou blinda-o, da melhor maneira que pode.

    Amigo é aquele que tem boa memória. Não é aquele que esquece, é aquele que lembra. Aquele que, sem nada dizer, repara uma vez para não mais olvidar que seu sabor favorito de comida é a mineira; de livros, o romance; de pessoas, a doce. Não é aquele que tudo despercebe. Ou aquele indiferente. Principalmente, amigo não é aquele que é aquietado com qualquer conveniente desculpa para esquecê-lo; é aquele que não é podado e parado com quaisquer pequenas barreiras que fariam-no deixar de lembrar.
   
    Amigo, por fim, é aquele que não desiste. Aquele cuja amizade não está condicionada à circunstância, à festa ou ao riso, ao tempo das vacas gordas ou das vacas mais esbeltas. É aquele que acompanha-o, mesmo nos períodos de intempérie, e através de toda ela. Amigo é aquele que não desiste de você, que está procurando-o, mesmo quando você mesmo já desistiu de se encontrar. Amigo é aquele que faz todo o seu quinhão de possível para não deixar desatar-se o laço, mesmo quando sabe que muito provável é que, em algum ponto, ele venha enfim a esfarelar-se ou romper-se no curioso curso da corda da vida.

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