quinta-feira, 9 de junho de 2016

Os perigos da beleza

                           

    Beleza é algo que todo mundo tem. Ponto. Feiura também. Hoje, para seguir a ordem alfabética e naturalmente atrativa, falemos da primeira.

    Há belezas que não se pode ver, belezas que só se pode não ver, belezas que só existem para ser vistas. Há belezas para sentir, belezas para ouvir, belezas para tocar. Há tão diferentes belezas quanto existem diferentes pessoas - belezas em diferentes aspectos, com diferentes presenças, diferentes efeitos, belezas nos olhos de quem vê, a partir de seu olhar. Não há ser humano que não tenha beleza tanto quanto não há dia que não amanheça, mesmo sem a benção do sol ou com luzinha apenas minguada dele. Mesmo entre nuvens que o camuflem. Isso é bom, belo, deliciosamente inevitável - embora haja algumas tristes pessoas incapazes de enxergá-lo.

    Hoje, contudo, estou aqui para falar da beleza mais aparente, mais imediata e rasa, aquela circunscrita na definição mais comum e (talvez) imprópria da palavra. A beleza que salta aos olhos, torce o pescoço, mobiliza um suspiro e arrepia o corpo. A beleza daquelas poucas eleitas pessoas que comumente batizamos de indecentemente bonitas, possuidoras da beleza de traços e figura que faz toda a gente parar um minutinho para devidamente apreciar e deixar-se acreditar no feitiço.

    Essa beleza tem um perigo espetaculoso. Ou dois perigos espetaculosos, para ser mais precisa.

    O primeiro afeta o sujeito, ou os sujeitos, em redor do coração (ou do rosto) que bombeia encantos. Pois, as pessoas que cotidiana ou ocasionalmente vivem e convivem com um epicentro fenomenal desta definição de beleza podem ser seriamente prejudicadas por isso: o ser humano, esquecido e burrinho como é, tende a se esquecer ou ignorar impercebidamente os avisos mais sábios dos quais mais carece, como aquele que nos diz que “aparências enganam”. Ou aquele que diz “a beleza não é tudo”. Ou aquele que diz “quem vê cara não vê coração”. Em suma, aqueles avisos que nos dizem para não deixar de considerar a importância do conteúdo em detrimento da sedução da embalagem.

    As pessoas bonitas hipnotizam. Têm um efeito de neblina nas outras pessoas em volta. Aquelas que não têm uma força para dissipar essa neblina e enxergar através dela podem achar-se demasiadamente veneradouras de pessoas que não merecem toda essa veneração - nem, talvez, uns minutos a mais de cuidados atenção. Entendo que estar ao lado de uma pessoa bonita tem certo atrativo: você (o acompanhante), sobretudo no caso de estar em relacionamento romântico-amoroso com o muso/a musa, é olhado com pontuda inveja. E quem é aquele que não saboreia-se distintamente com a sensação, ou a certeza, de ser olhado com inveja por um semelhante?

    O segundo perigo tem alvo muito outro: direciona-se à própria pessoa que é excepcionalmente bela. Por ser excepcionalmente bela - e por nada mais - essa pessoa recebe muita atenção. Sem fazer qualquer esforço, somente por existir e estar, essa pessoa é procurada, é admirada, é cobiçada, é objeto de interesse e olhar e desejo de muitas outras. Assim, se não for muito cuidadosa ou bem orientada, ela pode não desenvolver mais nada. Não ser nem se tornar nada além de uma pessoa muito bonita.

    Pois, nós, reles mortais de semblante relativamente agradável e figura não de todo desconjuntada, (e, mais importante, reles mortais que não ainda alcançaram o nível de consciência e plenitude de quem prescinde da aprovação do outro para aprovar a si mesmo) desenvolvemos atributos e habilidades para agradar. Talvez de maneira inconsciente e até inelutável, em grande medida, por mais incômodo que seja admitir isso, o que queremos ao aprender a tocar violão, dominar várias línguas, um esporte ou uma dança, a arte de cozinhar é arrumar modos de agradar. De se fazer interessante, se tornar atrativo para o outro, possibilitando a vida em sociedade, e uma vida em que não se é completamente desprezado ou, pior, simplesmente ignorado.

    O belo, portanto, corre o risco de ser extremamente interessante à primeira vista, aos olhos, e extremamente vazio e desinteressante à segunda vista e conversa, à convivência, ao coração. Esse não é um dado absoluto, certo e fatal; nem todos os muito belos são tão rasos. Pelo contrário, alguns podem ser indivíduos de brilho enfatuante e magnético por serem duplamente atraentes - pela embalagem e pelo conteúdo. Porém, só aponto esse perigo porque vejo que ele existe e não poucas vezes é concretizado.

    Em suma, admiremos. Tratemos nossos olhos sempre que pudermos com exemplares ímpares de visual lindeza exorbitante. Como disse Vinicíus, “que me desculpem os feios, mas a beleza é fundamental”. Olhar não tira pedaço, e é bom manter os olhos saudáveis. Até para que possam, também, enxergar além do visível.

    Não deixemos, porém, que a beleza cegue e seja o entrave para uma humanidade estanque e vazia. Não deixemos os perigos da beleza se tornarem seus flagelos, seus cupins corrosivos, o círculo vicioso que pode ser tão danoso a vida das gentes. Não deixemos de dizer, ao contrário do poeta, “que me desculpem os belos, mas a feiura também pode ser fundamental.” Pode ser um ingrediente muito mais nutritivo para uma vida mais saudável e plena e interessante. Pois, a beleza é uma substância de efeito duvidosíssimo e, se mal ministrada, pode fazer mais mal que bem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário