quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Aos nossos heróis...

                                                                  

    Outro dia, parei para examinar o verso de nossas moedas. Nada mais indicativo de uma enorme falta do que fazer. Mas, não me xinguem, leitores, pois não é que a falta do que fazer se mostrou imensamente produtiva? É o ócio criativo, como gostava de pontuar Bertrand Russell, meu admirado filósofo, e como gosto de pontuar eu mesma, adepta de sua filosofia, que advogo a todos uma porçãozinha de ócio diária para o bem estar e a criatividade. Meia hora passada todo dia a humanamente vegetar - sem fazer nada, sem voluntariamente pensar em muita coisa - é o suficiente para relaxar o cérebro e depois vê-lo pipocar de boas ideias.

    Mas, enfim, sabem o que verifiquei no outro lado das moedas? Que lá estão encravadas figuras que deveriam ser - ou assim erradamente são consideradas, até pelo privilégio de ganharem essa posição - os nossos heróis.

    Ressoem os tabores, e que faça-se ouvir, nas próximas ilustres linhas, toda a minha reverência.

    Na moedinha de 5, “Tiradentes”, o homem morto careca e sem barba que, com a invenção da República, ganhou feições e cabelos de Jesus, e status de mártir; o alferes que queria tornar Minas Gerais livre de Portugal, para ficar livre de seus incômodos impostos e suas leis engessadoras e arbitrárias, apenas para fazer as suas próprias, e poder governar o Estado como bem entendesse, servindo aos próprios interesses.

    Nos 10 centavos, D. Pedro I, nosso exímio imperador, que nos tornou independentes de Portugal apenas para nos vender à Inglaterra - dependência da qual ainda penaríamos por décadas a fio -, que contratou corsários por verdadeiras, e brasileiras, fortunas para acabar de expulsar portugueses (um português expulsando portugueses!) daqui, nas guerras de independência... Governante realmente inspirador, que, além de tudo, ainda era safado e sem vergonha, tendo vários affairs notórios, entre eles o mais famoso, com a Marquesa de Santos, e tantos outros, talvez nem todos ainda devidamente identificados por historiadores.

    Na moedinha de 25, junto ao brasão da República, Deodoro, o marechal que proclamou-a sem, contudo, realmente acreditar nela. Isso mesmo. O homem que nos fez República era conhecido monarquista, que dizia “O único sustentáculo do Brasil é a monarquia; se mal com ela, pior sem ela". Mas, que, mesmo contrariado, para o bem de todos e a felicidade geral das forças armadas, menos de parte da marinha, concordou em dar o brado retumbante. Declarou a república e governou-a provisoriamente de modo bastante desastrado, muito aproximando-se de nomes monarquistas, conduzindo relações de atrito com grupos de fazendeiros, elites políticas estaduais, que lhe fizeram oposição, derrubaram, e depois apoiaram a dura presidência florianista.

    E, por último, o Barão do Rio Branco, na moeda de 50, e dando nome à uma das principais avenidas de Juiz de Fora, do Rio de Janeiro, de sabe-se-lá-mais-onde, além é claro, à capital do estado que anexou ao país e à nossa escola formadora de diplomatas. Não estou aqui desmerecendo os feitos do homem, que foi um inegável marco na diplomacia brasileira, mas além de conduzir as negociações de compra do Acre, e de trabalhar, com muita destreza, no nosso Ministério das Relações Exteriores por muito tempo, ele nenhum outro grande bem fez ao Brasil e aos brasileiros.

    Não me entendam mal. O que estou querendo com esse deboche não é denegrir a imagem ou diminuir a importância que, apesar dos pesares, todas essas figuras tiveram na história brasileira. O meu objetivo com ele é, sim, dizer que, embora importantes e marcantes, essas pessoas não foram, não são, e jamais serão os nossos heróis.

    Os nossos heróis, nossos verdadeiros heróis, que merecem toda a reverência, toda a homenagem e todo o nosso respeito, são os heróis ocultos. Pessoas cujo nome não constará no registro histórico, cujo trabalho é formiguesco e aparentemente pequeno e insignificante; pessoas que vivem uma vida escondida e viverão uma morte discreta, restando em túmulos comuns, que não serão muito visitados ou badalados, não tendo estátuas ou bustos que os acompanhem.

    Os nossos heróis são os nossos professores, pessoas que trabalham em transmitir o seu conhecimento, semear cultura e informação na cabeça e na alma dos nossos pequenos - trabalho que fazem, muitas vezes, sem as básicas condições necessárias, sem um material em bom estado, sem um salário que seja equivalente à importância do que fazem ou mesmo dignamente suficiente para sua confortável sobrevivência e, sobretudo, sem o reconhecimento que pede tão nobre trabalho.

    Os nossos heróis são os nossos médicos, principalmente aqueles da rede pública, verdadeiros gladiadores da saúde, que têm que trabalhar dia após dia com um excesso de pacientes para uma escassez de recursos, com sobrecarga de horas, com indevidas condições de aparato para exames, diagnóstico, tratamento, de remédios e outros elementos imprescindíveis para o adequado atendimento, e, mesmo assim, se esforçam em dar o melhor cuidado que podem oferecer, de forma mais humana e sensível que muitos médicos de rede particular.

    Os nossos heróis são os homens do campo, que com pouco ou nenhum incentivo - e muito menos reconhecimento -, levantam cedinho, todos os dias, faça chuva ou faça sol, e trabalham duro por horas seguidas para pôr a comida na mesa de todos nós.

    Os nossos heróis são os assistentes sociais, que muitas vezes, na mesma insofrível escassez de suporte e apoio, tentam dar um lar, um melhor destino, às nossas crianças abandonadas, ou órfãs mesmo tendo pais e casa, trabalhando pelo futuro delas. São aqueles que trabalham pela agricultura, a educação e a saúde, pelo esporte, por nossa literatura, pela sustentabilidade, por essas e outras áreas tão negligenciadas por nossas autoridades, tão sucateadas e desvalorizadas por esta “ordem” maluca que vivemos. São pessoas, enfim, como o Guilherme, o Maicon, o Marcelo, o Darlon, ou o Vicente - que trabalha em dias alternados numa loja, e nos dias de folga abre sua garagem, cheia de livros, gibis e alguns violões, para ensinar música e inglês para jovens que queiram, ou apenas para eles ali passarem o tempo de forma construtiva e sadia, e diz que “não estou ganhando nada não, mas enquanto eles estão comigo, não estão perdidos na rua, talvez mexendo com drogas”. Pessoas que trabalham pelo futuro, e pelas pessoas, servindo aos interesses de algo maior que seu bem próprio, numa doação enorme e sincera, para o país progredir e não retroceder. Essas pessoas que, como eu disse, fazem tanto, merecem tanto ou mais, mas recebem de volta tão pouco, em todos os sentidos.

    Eu dedico este texto (como dediquei meus minutos de hoje de reflexão e puro e produtivo ócio) a essas pessoas. É uma homenagem parca e insuficiente para vocês que merecem todo o nosso aplauso e agradecimento, a oficial reconhecença, e as moedas, que em tão triste quantidade lhes passam pela mão, preenchidas por figuras que, ao meu ver, têm seu merecimento heroico que pode ser relativizado, e recebem uma homenagem da qual vocês são muito, mas muito, mais dignos. Pois, mais dignos vocês são de serem chamados “nossos heróis”.

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