quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O amor nos tempos modernos

                                                            

    “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro possuidor de boa fortuna deve estar à procura de uma esposa.”

    Outra vez, inicio com uma frase marcante, abertura de um clássico mundial - este, ‘Orgulho e Preconceito’ , de Jane Austen. Desta vez, porém, dela não venho discordar, e sim com ela fazer paralelos.

    Recentemente, assisti ao filme ‘Ela’, que confirmou o pensamento, uma verdade tão verdadeira que, de 1814 até aqui, perdura-se, e parece não se aproximar de uma data de validade. A película, uma severa e certeira crítica à loucura que tem havido das pessoas com o universo virtual e sua mascarada vaziez, trata da nossa muito humana necessidade de nos conectarmos, nos conectarmos com gente - de carne e osso, nariz para respirar, sensibilidades para sentir, defeitos e qualidades - em interações reais.

    Não vou nem tentar comentar o filme em si, porque não me sinto apta. Saí tão embasbacada dele que está difícil sacudi-lo de mim, e pôr em ordem ou em palavras as tantas e tão diversas sensações, o turbilhão de intensidade, que ele traz e provoca. Mas, as reflexões às quais ele é ponto de partida... Delas eu não posso me esquivar.

    O cenário mostrado é o seguinte: um mundo onde pessoas se encostam mas não se comunicam, onde dividem o mesmo espaço, no mesmo espaço de tempo, mas não interagem, nem mesmo se enxergam, cada um estando isolado em seu próprio virtual universo, preferindo uma telinha em sua mão às pessoas a sua volta. Alguém identificou alguma semelhança, alguma verossimilhança com o nosso mundo (real)? Sim?

    Pois é. E conforme as cenas avançam e o protagonista, um homem extremamente solitário e cheio de internos conflitos inresolvidos, se apaixona por seu sistema operacional (?!), um outro filme vai também rolando em nossa cabeça, as tantas vezes que vimos gente distanciando-se de gente que está perto, dividindo com elas a mesa enquanto fazendo um lanche, mas sem conversar, sem trocar palavra ou olhar, sem perceber a sua presença, pois compenetrados em seus smartphones. E a solidão, a solidão moderna, baseada em relações ilusórias travadas através do triste engodo das telas.

    Meus amigos, nenhum relacionamento, nenhuma convivência ou vivência virtual substitui a interação real, intermediada por ar, sentidos, toque. Não existe desafio maior que a densidade de uma pessoa, de tentar decifrar seus pensamentos, suas emoções num dado momento, de analisá-las e discutir com elas ideias em tempo presente e espaço real. Não existe magia maior que sentir as mãos de alguém nas suas, conforto maior que um abraço, delícia maior que a de perceber uma pessoa em sua totalidade, a expressão de seus olhos, o ritmo de sua respiração, o tom de sua voz, seus gestos e jeitos, tranquilos ou agitados, o modo como ela se mexe - em desconforto, alegria ou embaraço -, ou organiza e verbaliza seus pensamentos, de uma vez ou pausadamente. Nenhum aplicativo pode nos proporcionar tudo isso, porque nada disso se percebe na muito limitada dimensão de uma tela.

    Eu sempre me perguntei como funcionariam os relacionamentos à distância, mantidos apenas pelas tecnologias de informação. Quero dizer, e quando seu par está triste e você, na intenção de consolá-lo, de demostrar sua proximidade e transmitir seu afeto e sua empatia, estende a mão para tocar seu rosto e encontra apenas o frio monitor de um computador? Isso deve ser agonizantemente frustrante. A pessoa estar ali tão perto, aparentemente ao alcance do toque, e ao mesmo tempo simplesmente não estar... Ao meu ver, não há laço - ou sanidade - que assim se sustente. E o que me diz o leitor daqueles que embarcam nesse tipo de interação voluntariamente, sem mesmo a distância que a torne necessária?

    Além do viés amor, em suas inúmeras variâncias, além do canalizar para um ilusão sentimentos que deveriam ser investidos em pessoas, há outras esferas da vida que experimentam problemas relacionados ao mundo virtual, do qual tão perigosamente nos aproximamos e nos tornamos dependentes. Quantas pessoas, jovens especialmente, não conhecemos que têm linguagem corporal deturpada, confusa, enquanto parecendo presa e amarrada, e simplesmente não conseguem olhar nos olhos dos outros? Expressar um pensamento, em claras e audíveis e articuladas palavras, então? Tomar parte numa discussão, num debate? A timidez, ou anti-sociabilidade por forças de internet, chega a ser doentia.

    E quantas empresas e serviços não têm tido seu rendimento lá embaixo, devido a funcionários que, insistentemente, estão ativos online em tudo quanto é coisa no horário em que, dizem, estão trabalhando? E quem consegue trabalhar, estudar, concentrar-se continuamente numa tarefa com a droga do celular apitando toda hora avisando a chegada de novas mensagens, de outras gentes desocupadas, às quais você sente uma ansiedade muito grande em responder imediatamente, sem deixar transcorrer minuto sequer?

    Eu não vou sugerir a ninguém que exclua - por hoje, pelo menos um - algum de seus tantos artifícios de social 'existência' por meio virtual, ou se desligue, um pouquinho que seja, desse mundo. Sinto que as pessoas são muito mais receptivas aos nossos apelos quando eles não vem de forma direta, com verbos no imperativo. Mas deixem-me dar aqui um testemunho. Eu não tenho nada disso, nenhuma rede 'social' e semelhantes. E não porque já tive e ao perceber o dano que eles constituem, acabei excluindo. Não tenho porque nunca tive mesmo. Não sinto necessidade. A humanidade viveu milhares de anos sem esses negócios aborrecidos e pode muito bem continuar assim. E eu também. Não dói, nunca morri por isso - pelo contrário, vivo muito bem. Não fico tomando conta de vida dos outros, porque tenho a minha, muito excitante e cheia e plena, da qual cuidar. E é uma liberdade imensa esquecer o celular descarregado de vez em quando, não lembrar de ligar o computador por dias seguidos, enquanto cozinhando, escrevendo com lápis num papel, lendo um livro, fazendo música, passando tempo com pessoas reais, quem realmente importa, e no mundo real, de um modo pleno e ininterrompido.

    Aliás, alguém aí já parou pra pensar por que usamos as palavras ‘real’ e ‘virtual’ como opostas? Porque são opostas, antônimas inconciliáveis; o que é virtual não é real, e o que é real não precisa da plataforma virtual para existir, pois é real.

    Jane Austen não viveu nos tempos do chuveiro, da luz elétrica, do sufrágio universal, nem da tecnologia, ou mais especificamente dos derivados de internet. Não viveu nos tempos modernos. E, no entanto, o seu tempo era povoado por pessoas, pessoas como nós - criaturas complexas e fascinantes, feitas não de placas-mãe e sim de tecidos vivos, com celulites e estrias, braços e pernas, miolos que raciocinam e pensam (ou não); pessoas que, sim, devem estar à procura de cônjuges, assim como de bons amigos, colegas próximos, porque precisam relacionar-se com outras, com outras pessoas. Pessoas que tornarão a convivência por vezes muito difícil, que nos farão arrancar cabelos da cabeça, e provavelmente nos cortarão o coração em algum ponto do caminho. Pessoas que serão irritantemente burras para umas coisas, lentas para outras, que terão manias que incomodam, hábitos que magoam, peculiaridades que as fazem únicas, uma densidade própria que as define. Defeitos e imperfeições que as fazem seres humanos, completos.

    Nossa cara Jane disse bem, não podemos negar o quanto precisamos de nos conectarmos, ou privarmo-nos dessas conexões - reais. Nem nos escondermos atrás de telas, por comodismo ou falso conforto, por medo ou despreparo. Não podemos deixar que a dependência em tecnologia nos aliene de pessoas de verdade, daquelas que estão perto. Não podemos deixar de viver as complicadices do orgulho e do preconceito, da razão e do sentimento, da virtude e da maldade, pois é esse conjunto que nos faz humanos, e as experiências e vivências por meio dele que nos faz dizer “Vivi. Vivo. Penso e sinto, tenho boas lembranças de boas reais vivências, logo existo. E como isso vale a pena!”

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