domingo, 1 de fevereiro de 2015

Família, três pontos e uma certeza

                                                                     
    “Todas as famílias felizes são parecidas, as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira."
    Essa frase - talvez uma das mais célebres da literatura universal, a abertura do trágico ‘Anna Karenina’, obra prima do grande Leo Tolstoi - contém um pensamento que já me pareceu acertado, mas do qual, hoje, eu preciso veementemente discordar. Desculpe, Tolstoi. Eu continuo admirando-o fervorosamente, e se estou discordando e questionando nesse momento, só me provo mais ainda uma tolstoiana, tendo desenvolvido faculdades suficientes para, a partir do embate de ideais, parturiar a minha própria. Então, não se zangue comigo.
                                                                 

    Recentemente, caro Tolstoi e queridos leitores, assisti ao filme ‘Boyhood’, e ele me fez pensar que não, nem todas as famílias felizes se assemelham umas às outras. As famílias felizes, também, são felizes cada uma de seu muito diverso jeito próprio.

    No filme, o menino protagonista tem uma família, digamos, moderna. Seus pais nunca foram casados; sua mãe passa por vários relacionamentos problemáticos, numa aparente extrema necessidade de autoafirmação, e é a provedora da casa; enquanto o pai, em contrário, não é o que dá o sustento, mas o que dá a alegria, o principal humano suporte, um verdadeiro ‘cool dad’ que conversa, brinca, ri, está realmente envolvido com os filhos. Ele demora a se assentar, conhecendo seu par - anos mais jovem - apenas anos depois, e tendo com ela mais um menininho, o irmão pelo menos uma década e meia mais novo que os outros dois.

    A minha família - e a maioria daquelas com as quais tenho conhecimento e convivo na minha muito aristocrática Barbacena - se encaixa no modelo tradicional: papai, mamãe, filhinhos, morando numa casa fixa ao longo de sua existência, vivendo um casamento que muito lembra uma pecinha de lego - frágil e sólida, ao mesmo tempo, um cubinho que se desgasta com o tempo, tem as arestas danificadas, a cor e o brilho um pouco desbotados, mas se sustenta, simplesmente não se dissolve ou quebra, e é tão pequenina que parece insignificante, um detalhe normal ao qual nos acostumamos e que não parece ter muita importância, embora, no conjunto da obra, a vida, depois perceba-se que ela é essencial e que sem ela, a pecinha pequenina, o espetáculo não existiria, sua montagem seria fraturada, incompleta, um vazio preenchendo espaço.

    Esse meu tipo de família, eu creio, está em franca extinção. Mas A Família, não. O conceito se expandiu e diversificou, se reinventou, está mudado e mais amplo, sim, mas não morreu, nem caiu em desuso. Porque a Família, em si, permanece, continua, para sempre.

    O que estou querendo dizer com todo esse enrolê é o seguinte: uma vez, ouvi alguém dizer que a vida é como um trem, que tem estações e estações nas quais vai parando, onde gente vai embarcando e gente vai nos deixando, umas pessoas saltando para dentro, outras para fora, num ciclo que só se encerra quando o trem para e a gente morre.

    Pois é, a vida é mesmo um trem (que não necessariamente vai nos atropelar, viu gente? se, é claro, não nos enfiarmos embaixo dele), um trem no qual todos são passageiros, exceto o motorista e o trocador - e a sua família. Porque ela é a teimosia mais chata e mais importante que existe, o exemplo maior de uma força que não se extingue, aquela que os faz ficar grudados ao trem, sempre empurrando-o para frente, atravessando toda e qualquer intempérie com ele, numa constância quase inexplicável, de nome amor. Às vezes, você, no seu trem, vai até querer jogar a sua família para fora, colocá-los num vagão para deixar para trás. Ou, então, torcer o pescocinho deles de uma vez, ou mandá-los para a fila de execução na Indonésia, em regime de urgência. Vai fazer todas as cachorradas do mundo com ela, aprontar todas, e erradamente esperar vê-las voltando-lhe as costas, apenas para vê-la, ainda assim, apesar de tudo, pronta para você - pode até ser que seja com um chinelo -, mas ela estará ali, para você, por você, ao seu lado, para sempre.

    No filme, vemos exatamente isso. Tantos personagens passam à medida que o filme corre, e o menino vive. Todos vêm, e invariavelmente vão. Os únicos que estão ali o tempo todo, em cada cena, acompanhando episódio por episódio, a completa trajetória, são os pais dele, e a irmã. A sua família.

    Eu, que não estou muito longe nada da fase na qual Mason termina o filme, vi quanta verdade estava encravada ali, naquela longa sequência de cenas tão real, ao mesmo tempo extremamente simples e simplesmente extraordinária, como a vida de cada um de nós. Todos vão passando, aquele que chamou de melhor amigo, o companheirão de videogame na infância, o colega de futebol, o professor que inspirou. A pessoa a quem deu a primeira piscadela, com quem teve o primeiro beijo, a primeira vez. Os filhos das pessoas com quem seus pais se relacionaram, de um modo ou de outro, e essas pessoas também. Todos, todos, todos vêm, fazem parte da sua viagem por um tempo, e depois vão embora. Somem, somem mesmo, num processo natural. Menos a sua família, que ainda está ali, que está sempre ali, e estará ali para sempre, mesmo quando em memória. Essa força que eternamente nos empurra para frente e nos traz de volta. A mágica real que, igual ou diferente, moderna ou tradicional, feliz ou não tão feliz assim, permanece, continua, transcende o tempo, junto com o tempo, em todas as suas badaladas. A família, a única certeza que temos.

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