sexta-feira, 14 de julho de 2017

A vida, as cartas e o grid de largada

                                                                

    Ultimamente, tenho passado algum tempo a cartear. Sim, a jogar cartas. Além de ser um passatempo potenciador de sociabilidades, ao intermediar simpaticamente contato entre pessoas, o jogo de cartas é exigente e divertido professor de paciência e vigoroso estímulo à imaginação.

    Dia desses, me peguei pensando como o movimento e desenvolvimento existencial da gente não é muito diferente de uma partida de qualquer carteado. Pois, a menos que alguém trapaceie muito misteriosa e eficazmente no tabuleiro cósmico, ninguém tem poder de eleger as cartas que virão em sua mão. O lugar donde viverá, a situação socioeconômica, o acesso cultural, o esteio familiar - ou a falta dele. Seus atributos físicos, dotes artísticos, talentos e destalentos, tendências de temperamento, personalidade espiritual. A vida distribui as cartas de partida de modo alheio a nós, nossa vontade, decisão ou intervenção. Faz isso acidentalmente, dirão alguns, conforme o embaralhar do acaso; seguindo cuidadosamente as coordenadas de um plano, dirão outros. Mas, inevitavelmente, a despeito de nós.
   
    E, no entanto, é raro que o resultado final de um jogo seja determinado pela mão inicial com que os jogadores saem. Não é necessariamente vitorioso quem foi favorecido pela ciranda primeira das cartas, nem sempre termina perdedor aquele cujas cartas primeiras a sorte atraiçoou.
   
    Há vários fatores orbitando poderosamente no entorno, de maneira possível a cambiar as rotas do jogo. Há quem seja hábil jogador, conservador, cauto, ou mui amigo do risco, que tenha senso de oportunidade e faça o melhor de sua humilde origem, contrariando magistralmente as probabilidades de seu início, motivado pelo desafio do adverso. Há quem, pelo contrário, desperdice suas vantagens de partida com jogadas imprudentes, descartes tolos, apostas soberbas, uma atitude de preguiça para com o jogo, subaproveitando suas opções.

    Há quem seja o jogador-dançarino, que saiba improvisar e afine sua tática acorde ao jogo que se apresenta, ganhando em sua capacidade de adequação à situação vantagem intransponível. Há quem seja o jogador do ritual, que tenha seu jogo de antemão todo coreografado e se veja desconcertado quando as contingências pedem outro ritmo, outro rebolado, outra estratégia.

    Há quem seja exímio trapaceiro e termine com mais pontos por meios escusos; há quem seja tão escrupulosamente honesto que renuncie a uma vitória que ocorra desta moda, ou se recuse a ver o artifício daquele que o ultrapassou ilegalmente porque crê que foi enganado por seus olhos, não pelo outro, de quem não espera outra conduta senão uma gêmea da sua.

      Há quem preze mais pelo momento do jogar que pela sua culminância, seu resultado, e nessa sua atitude carregue já os louros, a satisfação e o sorriso de uma vitória inconteste.

    À medida que o jogo corre, ambas as partes podem transfigurar completamente sua mão, através de jogadas que escolhem ou das quais se abstêm, daquilo que o capricho do baralho lhes reserva, de um bom ou mau trabalho em equipe. Este que ora soma e constrói, suprindo mutuamente carências, equilibrando faltas e erros, potencializando lances e possibilidades doutra forma apenas bons; e ora diminui e naufraga, contrabalançando pequeno ganho com grande perda, momentânea desorientação com permanente desnorteamento.

    Às vezes, um completo desentendido faz um comentário embriagado milagrosamente oportuno que esclarece o que fazer a seguir e dá um rumo belo e acertado àquilo que parecia não ter nenhum. Outras vezes, o conselho bem intencionado e carregado de precisão lógica daquele querido e sabido amigo sopra sobre si os ventos do buraco e o leva ao erro. No decorrer da jogatina, sinais do adiante aparecem e desaparecem, e as percepções e leituras diferentes que cada um faz deles conduz suas jogadas, concentra ou diverte a atenção e a energia no jogo.

    É claro que tanto mais argúcia, fortaleza e persistência são necessárias quanto mais desfavorável for a distribuição inicial das cartas. É claro também que é exatamente nesta circunstância do desprivilégio que uma pessoa tem a maior oportunidade de se revelar, construir-se melhor jogador - pois é feito muito mais comum jogar bem com boas cartas que com más. E é ao preterir o choramingo pela ação, o resmungo pela atividade consciente e bem direcionada com as cartas que se têm que uma pessoa constrói um jogo, senão absoluto e último vencedor, digno, prazeroso e bonito - de se ver e jogar.

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