quarta-feira, 25 de março de 2015

Admirável mundo novo - saindo de casa

                                                                    

                                                     
    Recentemente, ouvi um ridículo debate entre duas mães quanto a se era devido cobrar aluguel dos filhos com mais de 30 anos que retornavam à casa da família - ou que de fato de lá jamais saíram. Elas estavam rindo de fulano ou ciclano, seus conhecidos, que com 30 e poucos anos ainda moram na casa dos pais e desses pais, que os ‘aguentam’ dentro de casa e não os põem para correr, mesmo sabendo que eles são financeiramente independentes e têm plenos meios de morarem sozinhos, viverem por conta própria. Também comentavam do panorama geral da questão “filhos saindo de casa”, e como essa saída tem se dado cada vez mais tarde - coisa que é muito errada e lamentável na visão delas. Enquanto ouvindo, eu me segurava para não responder e sair com as duas no arranco. Alto lá, minhas senhoras, nem tudo é bem assim como estão pintando.

    Eu acho que há dois quadros bem distintos para serem analisados nessa questão. Um é o quadro da turma dos ‘nem-nem’, nem trabalha nem estuda, e conclui o ensino básico (ou, muitas vezes, nem ele) apenas para iniciar uma vida de escandalosa ociosidade, tocando dias sem propósito nem perspectiva. Nesse caso, a meu ver, é sim absurda a conivência dos pais - se ela existir. Nesse caso, sim, eles devem dizer “Meu filho, eu não vou deixar que você viva desse jeito, porque não é certo, e eu não sou eterno. Você trate de levantar desse sofá e estudar, ou trabalhar, ou os dois” e, se necessário, incentivarem-nos a sair de casa, indo até onde a oportunidade está. Nesse caso, sim, não se pode tapar o sol com a peneira para a existência de um problema, pois chega-se um ponto em que os pais não podem mais dar o peixe, devem ensinar o filho a pescar. Um ponto em que deixá-los no conforto da casa e da dependência, em vários sentidos, é não só incentivar um parasitismo exploratório sem cabimento como ajudar a atá-los a uma mesmice perigosa, falhando na sua missão de responsáveis pais no sentido de auxiliar o filho a construir-se, construir a própria vida, dar o final salto na transição da juventude para a idade adulta, e atingir sua plena maturidade.

    Em contrapartida, um outro quadro bem distinto - e é esse sobre o qual me proponho a discutir hoje, no viés do qual eu preciso discordar das duas senhoras maldosas - é aquele das pessoas que vivem todo esse processo enquanto residindo com os pais. Pessoas que acabam de cortar o cordão umbilical e amadurecem-se, que correm atrás das próprias conquistas e constroem a sua independência junto com os pais, inclusive estando sob o mesmo teto deles. Condenar esse tipo de situação e lamentar as mudanças que realmente vêm ocorrendo e retardando “o dia em que eu saí de casa e minha mãe me disse ‘filho, vem cá’...” é, para mim, uma atitude que se baseia numa leitura anacrônica do mundo.

    Anacrônica porque não é como se o mundo fosse o mesmo de vinte anos atrás, e todas essas graduais mudanças, então, absolutamente incompreensíveis por análise de contextos e externos fatores. Não é como se fosse, em mais profundo exame, perfeitamente absurdo esse cenário para com o tempo em que vivemos. O mundo mudou, e não podemos ignorar esse fato.

    Pois, antigamente, as pessoas saíam de casa (da casa dos pais) diretamente para formar a sua. Estabeleciam sua própria casa, adentravam e se integravam a uma vizinhança que passava a fazer parte de sua vida. As pessoas se conheciam quando morando na mesma rua, ou no mesmo bairro; bons amigos e compadres e comadres se faziam por convivência desta forma. Encontravam-se também já que seus filhos frequentavam a mesma escola, e, esperando-os sair, conversavam. Batiam na casa uns dos outros para conversar, jogar fofoca ou futrica fora, assistir o último capítulo da novela, pedir para usar o telefone (que nem todo mundo tinha) ou pegar uma xícara de farinha que faltou para o bolo que se estava fazendo. As pessoas deixavam o seu nascedouro para construir aquele de seus filhos, deixavam a casa da família de seus pais para constituir a sua própria. A maioria das pessoas se casava cedo, se mudava para um lugar novo - ou nem tão novo assim - onde fazia novos amigos, tinha próximos conhecidos. Logo vinham os filhos, os amigos de seus filhos, a brincadeira e as artes de seus filhos, os namorados de seus filhos, os netos... Que preenchiam o espaço e o ambiente, deixando-o agitado e cheio de vida. A casa nunca estava vazia (realmente nunca), e silêncio prolongado raramente se fazia. Era fácil sentir-se confortado, e mesmo cansado, com as tantas vozes em volta, e era difícil estar sozinho.

    Hoje, em contrário, a solidão é uma das armadilhas que não raro vêm com a independência, ou o construir dela. A maioria das pessoas deixa o seio de suas famílias para ter que viver somente e apenas com o seu, por vezes apertado, por vezes ainda incapaz de lidar com todo o novo que chega, e o velho que se perde. Vai morar onde a oportunidade está, em um lugar maior, a cidade grande - entre cuja multidão, a solidão é, frequentemente, a única companhia. Talvez vão morar em prédios, onde talvez contam com dezenas de vizinhos, pessoas com quem compartilham o endereço, mas entre as quais não conhecem nenhum. A maior das interações, quando ela existe, é a casual conversa de elevador “Bom dia, tudo bem?” “Tudo bem” “Como está quente hoje, né?” “Pois é, o calor castiga” e o vazio que isso traz, a carência, é enorme. A superficialidade das relações, sua repetitiva e frustrante abundância, chega a ser desesperante, e o silêncio dos corredores, enlouquecedor. Cada um entra em sua jaula voluntária e segura, o apartamento e, no virar da chave, aparta-se dos outros, realmente.

    Amiúde, paga-se uma academia porque não se sente seguro em exercitar-se ao ar livre, cidade afora, e se entra no estabelecimento - mais uma vez, um aglomerado de paredes, um cercado de tijolos e silêncio e isolamento - apenas para nele estar, todo o tempo, e dele sair, com o fone no ouvido, sem interagir com ninguém, ou interagindo com poucas pessoas - as poucas que, igualmente, permitem essa abertura. Na academia, ou no prédio, é difícil fazer amizades, ou permitir-se proximidades, também, porque você não sabe em quem confiar. E assim, você dirá bom dia, repetidamente, para pessoas que jamais conhecerá. Hoje, infelizmente, vivemos num mundo em que felicidade enorme e extraordinária é estar num lugar qualquer, rodeado de pessoas, e não sentir medo.

    Portanto, é um erro achar absurda a maior e mais longa ligação dos filhos com os pais, e com a casa dos pais. Afinal, quem - em uma circunstância que o permita - voluntária e alegremente trocaria um lugar onde se tem colo e segurança, onde se é amado e é importante, para um em que não se conhece ninguém, e provavelmente em profundo poucos conhecerá, um mundo que é hostil e competitivo e cruel, no qual dezenas de milhares de outras pessoas querem um seu lugar tanto quanto você; um mundo no qual, dessa forma, a sua vida - ou com efeito, a sua morte - não faz a menor diferença, vez que é só mais uma? Quem deixaria o afago e o aconchego, o conforto e a delícia que é estar em meio às pessoas que mais lhe querem bem, para um lugar em que as pessoas nem lhe querem bem, nem mal, mas simplesmente não lhe querem?

    À vista de tudo isso, eu concluo, as duas senhoras deviam reconsiderar suas palavras. Não podemos tentar entender o mundo de hoje através dos valores de ontem. Não podemos esperar que as realidades das pessoas de épocas diferentes se equivalham, quando é claro que, com o tempo, as circunstâncias e as estruturas do mundo em seu redor mudam, pedindo consigo, necessariamente, ajustes de comportamento e vivência que o acompanhem. Tampouco, acredito, podemos julgar pessoas e situações arbitrariamente, sem compaixão, com o olhar e a tranquilidade que caracterizam a visão de quem se está ‘de fora’, e observa sem viver o gostoso e o difícil, as alegrias e as complicações daquilo que o outro vive, e somente esse outro sabe descrever ao certo. Se os filhos de seus conhecidos vivem na casa deles, e todos ali dentro estão felizes assim, vivem bem com isso, então, por favor, minhas senhoras, os deixem em paz, sem lhes prestar o desfavor de suas línguas batendo em maldoso deboche. Como bem disse Caetano, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
  

Um comentário:

  1. Adoro a envergadura emocional dos seus textos. É bacana ver uma discussão que torna-se cada vez mais frequente vestir uma capa não-convencional e não-utilitarista. Me entende? Adoro suas análises que fogem do clichê, que são inesperadas e leves. Parabéns, "minha nega", estou me tornando (mais) fã do seu cantinho.

    ResponderExcluir