quarta-feira, 1 de abril de 2015

O poder da arte - música ao longe

                                                                 

    Às vezes, topamos com perguntas que nos apertam enquanto nos abraçam. São perguntas como aquelas que tão frequentemente nos fazem as crianças, perguntas que parecem bobas e contudo se mostram as mais profundas e mais difíceis - de imediato percebemos e em posterior concluímos que a elas não temos respostas. Às perguntas mais simples, nós simplesmente não temos respostas.

    Uma dessas perguntas - capciosas ao passo que (parecendo) rústicas - eu me fiz recentemente: por que fazemos arte?

    Eis o mistério da arte. Qual é seu porquê, a sua razão de ser? Por que perdura entre nós o seu apelo e a sua tentação? O que explica seu poder, sua perenidade? É algo a se pensar sobre que, em um mundo tão corrido, nós ainda nos prestemos gratamente a parar o tempo por alguma porção dele para nos dedicarmos a algo tão ‘supérfluo’ quanto a arte. Algo que, paradoxalmente, enquanto tão acessório, é também tão necessário, tão fundamentalmente essencial - aparentemente, nós não podemos viver sem ela, mesmo que, no estrito sentido da palavra, não precisemos dela para viver.

    Pois, meus amigos, uma casa não é ainda uma casa sem a firula do desenho ou a fissura do detalhe? Se desprovida de qualquer incremento sutil que de nada realmente serve senão para agradar os olhos, ou tocar a sensibilidade? Se furtada - ou libertada - de qualquer pequeno encanto, talvez um jardim ou uma graça no gesso, que no fundo só possa prover, além de mais beleza, mais trabalho? Por que, além de projetar uma edificação, em seu esqueleto, um arquiteto também desenha sua decoração e seu corpo, nos mais infimozinhos elementos, de menor e menor instância em termos de necessidade?

    Não se poderia rezar da mesma forma num galpão imenso que numa suntuosa, trabalhosamente pensada e construída catedral?

    Não se poderia vestir da mesma forma um grande pano encapando-nos que um conjunto de roupas escolhidas, particularmente selecionadas?

    Por que enfeita seu bolo o cozinheiro, se poderia deixá-lo simples? Por que borda sua prosa o escritor, se poderia deixá-la mais sóbria, serena, fácil até, por abstêmia?

    Por que passamos - gastamos, desperdiçamos, deixamos escorrer - tanto tempo de nossa vida ocupados com música, essa tão maluca coisa que nada inteligivelmente significa para a grande maioria de nós leigos na sua ciência, que não conseguimos decodificá-la enquanto linguagem, compreendê-la racionalmente, ao passo que, apreciadores da arte, podemos entender o sentido que a move, os sentidos que dela emanam? Por que, meu Deus, deixamo-nos invadir e preencher por horas a fio, talvez meses acumulados ao longo de uma vida, por sons que nada nos ensinam, em nada acrescentam, de nenhuma palpável prática forma nos ajudam a viver, servindo?

    E, nesse pensamento, por que não extingue-se, decreta-se de uma vez o fim daquilo que talvez seja o cúmulo da objetiva inutilidade, o ápice da beleza que nada significa, nada quer significar, e de nada serve - a poesia? Por que vivem e reproduzem-se e sucedem-se, e jamais morrem, os poetas? Esses artistas que torcem, retorcem, distorcem o sentido primeiro das palavras, instituindo a irrelevância última de toda e qualquer tentativa de racional entendimento, a dificuldade hercúlea porque múltipla, perdida de todo o sentido e viúva de qualquer propósito, da interpretação sistemática; esses artesãos - ourives - que criam versos que sustentam, melodiosas sequências que cantam e encantam, organizados ou caotizados, aglomerados ou esparsos, conjuntos de palavras que espaçadamente se derramam e que - em nua e crua e seca análise - não servem para absolutamente nada?

    Porque, meu leitor, eu acredito, nem tudo o que fazemos é prescrito pela ordem da necessidade, pela lei do mínimo esforço ou da comodidade, na apenas visão da utilidade prática, serventia imediata. Nós somos humanos e, como tais, não viemos para apenas existir, e sim para plenamente viver. Cada um dos nossos movimentos não acompanha o passo da produtividade, o aspiro do retorno, o meticuloso deus da produção de cunho básico e vital, e é isso que nos diferencia das máquinas e dos outros animais. Nós vivemos de comes e bebes, e encantos. A todos os sentidos, em todos os tecidos. Nós temos necessidades naturalmente imperativas que devemos suprir, mas não só elas. Temos anseios e desejos e querências além. Temos coração.
                                                                    
                                                              
       

    Desta forma, a força da arte reside na sua condição de fornecedora de uma beleza (des)necessária. E ela tem, assim, um poder imensurável. Porque às vezes, ou quase sempre, muito mais nos faz feliz e satisfaz aquilo que apela à sensibilidade que à inteligência, aquilo que nutre o espírito em detrimento do imediato corpo. Porque tanto perecem de fome e carecem de alimento nossos estômagos quanto nossas almas e nossos corações.

    Momentos roubados de beleza como o pôr do sol ou o suave assobio de um pássaro tentamos reproduzir, e em distinta, humana, mídia mimiografar visto que eles nos encantam. Não raro dão sentido a todo um dia esses instantes pequenos de tão grande, imensa alegria, sensação de plenitude, que se expande, e se escorre.

    A arte se faz precisa e preciosa, exata e complexamente, então, por isso: ela pode ser destrutiva mas também, salva, resgata, nos torna únicos enquanto nos confere uma unidade sã. Quando você coloca em arte - que pode estar numa obra de arquitetura ou música, poesia ou contação de histórias - um sentimento, uma sensação, você a captura, segura, registra, fazendo-a eterna no mesmo instante em que ela se esvai. E ela passa a existir firme e forte e sólida, pois real, não mais somente em você, mas no mundo, para o mundo, doada por você. Você concretiza uma inspiração naturalmente morredoura e a torna inapagável, testemunho de uma existência e de um tênue átimo do belo, monumento próspero para a humanidade e seu passaporte para a idade do sempre.

    Enquanto expressão da identidade de alguém e fonte de identificação e conecto para outro alguém, uma nação, um povo, a arte é importante. Porém, enquanto fotografia e registro de um fugaz instante de beleza - e assim fonte de conforto e sustento -, ela é eterna.

    Posto tudo isso, o papel do artista, todo ele um também escritor, é - como disse Érico Veríssimo - segurar a luz. Insistir na vela contra a força da escuridão, fornecer a graça e o calor num ambiente que talvez seria doutra forma muito sério, muito triste, muito frio. O artista tem mais que um dom, mais que uma vocação - uma missão, um encargo de responsabilidade maior. Ao mesmo tempo que deleitando outros com o que produz, a produção da sua arte o deleita, e ele se torna, portanto, nos dois processos, um ser de luz. Enquanto se torna mais belo e é mais feliz, ele transforma o mundo, também, em um lugar mais belo e mais feliz.                                                                                                    
      O poder da arte é - bem provocou o mesmo escritor, em seu livro - como “Música ao longe”. Em uma serenata, ou numa peça de teatro, é a harmonia de fundo que complementa e completa e alicerça a melodia de vozes protagonistas que fazem a sua apresentação. A encenação, a homenagem, como a vida, até pode passar sem ela, mas com ela enriquece-se, engrandece-se, melhor agrada, mais profundamente toca, eterniza-se. Marca-se e marca.
  
    Nós fazemos arte então - depois de tanta volta e volteio, eu tento enfim responder - porque do modo mais bonito e fértil de todos ela é, sim, útil e extremamente necessária. Nós nos deixamos mover muito mais por aquilo que nos comove, e assim a arte é um combustível de vida, um motor poderoso da engrenagem complicada de viver. Condutora de energia, não só, mas de beleza. Uma beleza necessária. Música ao longe.

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