quarta-feira, 22 de abril de 2015

Sim, eu sou feminista

                                                                  
    Eu sou feminista e com muito orgulho me declaro assim. (E não estou sendo pleonástica nessa frase, porque as duas coisas não são uma mesma.) Tenho ouvido muitas visões distorcidas e equivocadas acerca do que é feminismo, o que muito me aborrece e entristece, o que vou canalizar para um breve e sintético esforço de conserto e esclarecimento nas próximas linhas.

    Tem gente que acha que o feminismo é um machismo inverso, um machismo ao contrário, que busca uma “supremacia feminina” em lugar de uma “supremacia masculina”. Tem gente (estes são feministas sem perceber e sem entender) que diz que o feminismo é um enorme absurdo porque “todas as pessoas devem ser tratadas igualmente” ou porque, em contrário, “todas as pessoas são diferentes, homens e mulheres inclusive, e devem assim ser consideradas”. Tem gente que acha, ainda, que o feminismo é um “grande inimigo das mulheres” na medida em que reza uma bonita ladainha em favor da liberação da mulher e dessa forma vai contra a realização “do instinto natural da espécie, o sacerdócio feminino maior” da maternidade e da família. Ai, meu coração.

      Gente, vamos conversar. Feminismo não é nada disso.

    Antes de mais nada, primeiro e principalmente, porque não existe O Feminismo, doutrina dogmática unificada, imutável, perpétua, que defende um corpo de leis rígidas e severas e excomunga ou exila todo aquele seu “membro” adepto que “desrespeita” ou discorda de uma delas. Existem feminismos, feminismos diversos, e algo mais amplo que escolhemos chamar de feminismo, que nada mais é que um conjunto de ideias que giram em torno de um eixo e culminam, mais ou menos, em um objetivo aglutinador e conjunto, em motes de luta semelhantes e comuns.

    Esse feminismo do qual estou falando (com o qual muita gente se identifica ou o qual dispensa muitas vezes sem nem saber bem o que é) não prega um novo sorrateiro sistema de dominação, não é um machismo invertido. Pelo contrário, ele rejeita toda e qualquer coerção, dominação e submissão, opõe-se a elas, e não busca implementar uma nova. O feminismo é contra o machismo, sim, mas não é um pólo oposto a ele. O feminismo é contra o machismo enquanto mentalidade que "legitima" opressão e subjugação e manipulação, mas não é contra homens - algo a que, muitas vezes, infelizmente, o movimento está associado. Até porque, meninos, nós amamos vocês, e queremos vocês do nosso lado, pensando, lutando e protestando. Homens podem (e devem) ser feministas também.

    (A única postura radical que o feminismo de fato adota em relação aos homens, e sua relação com as mulheres, é esta: em vocês, nós não queremos senhores, queremos companheiros. É pedir muito? É tão revolucionário assim? Não, é feminista. E é apenas justo, afinal.)

    A nossa luta (a luta feminista) não precisa, nem deve, ser uma luta só de mulheres. E muito mais facilmente ela alcançará as justiças que almeja se tiver homens, também, junto, dentro e ao lado. Pois, muito mais efetivo é o trabalho de um time se ele não divide forças, mas soma; se não coloca, entre si, uns contra outros, mas todos juntos, aliados, parceiros, principalmente em vista daquilo que é um bem e um avanço para todos.

    E não estou blefando quando digo que o feminismo é para todos: o feminismo considera o homem, também, muito mais justa e gentilmente que o machismo. Se alguns dizem que homem não chora, que isso é sinal de fraqueza, nós dizemos que homem chora sim, e nem por isso é fraco. É sensível, e é humano. Pois, homem também é gente, chora, tem medo, tem angústias, tem limites, tem forças e fraquezas. E qualquer tentativa de negar isso só aponta para um psicopata ou um ogro brutamontes - nenhum dos quais, aliás, é muito bem visto ou desejado por olhos femininos...

    O feminismo nasceu visando principalmente à igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres nas esferas sociais, econômicas, políticas - civis, todas as possíveis - o que pode ser explicado também pelo contexto de seu nascimento. Em fins do século XIX, a disparidade de direitos entre os gêneros era muito grande, muito maior do que é hoje, inclusive. A mulher não podia votar, participar do cenário político de forma alguma; trabalhar era visto com maus olhos e severas reservas, era restrito a certos postos aos quais “a natureza feminina” era adequada, e sempre recompensado com salário abismalmente menor que o do homem, ainda que, igualmente a ele, ela tivesse que prover para a sua casa e sua família. Em termos legais, ela era literalmente um ser inferior, em muitos países, sendo considerada incapaz de gerenciar seus próprios bens, de tomar decisões por si própria, estando submetida à tutela e assinatura e boa-vontade de seu pai ou marido. A universidade era praticamente território proibido, e mesmo a escolaridade básica não era de amplo acesso ao “belo sexo”, entre quem um “exemplar” que fosse culto ou sabedor de muitas coisas era taxado de “pouco feminino”. Em suma, a mulher não era independente, não vivia em iguais condições às dos homens, e ficava na frustrante dependência deles para, oficialmente, tudo.

    Hoje, muitos obstáculos e desigualdades já foram superados, enquanto muitos outros, em contrapartida, ainda restam a ser vencidos - e por isso a conquista dessa igualdade ainda é um objetivo principal, um forte mote de luta.

    E no entanto, reparem, o feminismo almeja a igualdade de direitos entre homens e mulheres, não a igualdade entre homens e mulheres. Isso não existe. Isso, como eu já disse em texto anterior, é uma colocação equivocada de linguagem - para não falar de um completo e perfeito delírio. E o feminismo (como, realmente, qualquer pessoa com cérebro) reconhece isso. Homens e mulheres são iguais enquanto seres humanos, mas são essencialmente e felizmente diferentes enquanto... bem, homens e mulheres. Há diferenças marcantes, particularidades indeléveis e inescapáveis que caracterizam de modo distinto cada um dos sexos, e nada jamais pode (nem deve) mudar isso.

    Além do que, meus amigos, convenhamos, não é possível falar em uma identidade feminina - bem como não é possível falar de uma identidade masculina. Isso é algo heterogêneo e não pode ser considerado como o contrário. Não existe um bloco uniforme, algo único que está presente em todas as mulheres do mesmo modo e que as define de jeito absolutamente igual. Não existe a mulher, existem as mulheres. Mulheres diversas, variadas, diferentes entre si, que se identificam particularmente com coisas diferentes. Há aquelas que adoram um futebol, aquelas que o detestam, aquelas indiferentes; como há aquelas que amam a cozinha, aquelas que fogem dela. Aquelas românticas, aquelas desapegadas; aquelas que se aquietam com um homem só, aquelas que desfrutam mais quantitativamente de sua solteirice.
    E o feminismo é muito centrado nisso também, nessas singularidades, e na luta pelo reconhecimento e respeito a elas, indistintamente. O feminismo é uma luta pelas igualdades necessárias e também pelo reconhecimento das diferenças, as diferenças entre os sexos e “dentro” dos sexos, dos indivíduos entre si. E as duas prerrogativas não excluem-se entre si - pelo contrário, se complementam e se completam.

    Por isso mesmo - por considerar as múltiplas identidades, a singularidade que há em cada mulher - o feminismo não é, nem pode ser, “contra a maternidade e a família”. Gente, para alguns de vocês pode parecer idiota (é!), mas tem uma galera considerável por aí pensando nesses termos, e eu gostaria aqui de desmistificar essa noção errônea. O feminismo não é nem “a ideologia das vagabundas” nem, com efeito, “a ideologia das ‘puritanas’”. Muitos relacionam a agenda feminista à “libertinagem feminina”, à liberação “exacerbada” da mulher, e assim, acabam tendo-a como uma “doutrina” anti-maternidade, anti-família, até anti-Deus. (?!)

    Nada disso procede. O feminismo busca e prega, sim, a emancipação da mulher - de modo que ela, assim, possa fazer o que quiser de si mesma, agir como entender melhor, se tornar quem quiser. O feminismo, no fundo e na verdade, tenta desconstruir a ideia de “natural” no que é cultural, convencionado, e dessa forma libertar a mulher dessas amarras para ela própria escolher seus caminhos. Para ela, livre, escolher como deve ser a própria vida.

    Por exemplo, só a mulher pode ser mãe. É verdade, homens não podem ser mãe (que pensamento estranho). Mas isso não significa que toda mulher nasceu para ser mãe, que toda mulher será mãe em alguma altura da vida. Ser mãe é uma escolha, deve ser uma escolha, uma opção que se decide por abraçar ou não.

    E é isso, em última instância, o que é o feminismo, o que o feminismo prega e objetiva: escolhas, o poder de escolher, a possibilidade de a mulher definir o que quer da sua vida e não tê-la definida, não ser definida por seu gênero, por simplesmente ser mulher.

    E, assim, ao contrário do que muitos pensam, mulheres que optem por serem mães e esposas em tempo integral podem ser feministas, e simbolizam muito bem o que é o feminismo. Como eu disse, o feminismo não prescreve uma receita, um caminho a ser seguido por todas, uma cartilha a ser obedecida - pelo contrário, ele liberta a mulher para que cada uma delas opte, decida, escolha por um ou outro caminho, nas várias ramificações que encontra ao longo da trilha da vida.

    O feminismo hoje, então, toca em questões como a saúde das relações que travamos, consentimento e abuso, os efeitos variados das variadas pornografias. Os salários (des)iguais pelo mesmo trabalho, a representatividade das mulheres, sexismo - por exemplo, no futebol.

    (Aliás, francamente, levantam-se bandeiras em oposição à homofobia e ao racismo, mas ninguém fala nada de sexismo, não é mesmo? E todos sabemos que ele existe, que uma jornalista esportiva infelizmente não vai trabalhar livre, leve, solta e tranquila como um jornalista esportivo, bem como acontece com as árbitras, as auxiliares, as médicas que entram no campo. As motoristas de ônibus, as engenheiras, as mecânicas. E os insultos, as provocações, os deboches afetam e incomodam, sim, mesmo que se passe por eles de cabeça erguida, como se fossem parte do vento; e eles não precisam ser tolerados dessa maneira, não podem existir com a aceitação ampla e geral como se fossem algo normal.)

    O feminismo, em resumo, é sobre a igualdade e sobre a diferença, sobre o respeito, o reconhecimento, a escolha, as escolhas. O feminismo, por si mesmo, é uma escolha, uma escolha em construção. Uma construção que eu apoio, cujas manchas eu tento clarear e esclarecer, uma construção na qual eu me orgulho de ser panfleteira e aguerrida operária.
    Porque eu sou feminista. Eu sou feminista, sim.

                                                      


Nenhum comentário:

Postar um comentário